O avô, David J. Cohen, na entrada de sua livraria/papelaria. Berlim, 1926. |
A história da minha família começa longe, muito longe, em lugares de nomes como Thé-Saloniké e Rhodos.
Atualmente, Thé-Saloniké é Salônica, na Grécia, mas, quando meus avós paternos nela nasceram, pertencia à Turquia, e a ilha de Rhodos, que em grego quer dizer rosas, ilha das Rosas, era possessão italiana quando meus avós maternos nasceram, pertencendo atualmente à Grécia.
E aí também começa o périplo da minha família, uma pequena diáspora familiar, que me faz constatar que literalmente faço parte do que se chama “judeu errante”.
Meus avós paternos, comecemos por eles portanto, saíram de Thé-Saloniké não sei bem por quais motivos — meu pai não tendo nunca explicado isso muito bem —, mas acho que por questões econômicas, radicando-se em Berlim. Também não saberia precisar a data, mas o fato é que meu avô deu-se relativamente bem na nova cidade, tendo aberto uma papelaria e livraria que levava seu sobrenome, Cohen.
Meu pai e seus dois irmãos, uma irmã mais velha, Lydia, que depois viria a morar em Santos, e um irmão do meio, Jacques ou Santiago, nome que tomou quando fixou residência em Buenos Aires, onde mora até hoje, sendo o único sobrevivente dos três irmãos; meu pai e seus dois irmãos foram educados em Berlim, numa escola que o ouvi mencionar muitas vezes num misto de saudade e admiração: a Mommsen Schule. Theodor Mommsen, que deu nome à escola, foi um historiador alemão bastante conhecido e importante e meu pai falava maravilhas da educação que lá recebera.
O pai, Richard Cohen, com colegas do jardim de infância. Berlim, 1919. |
Lembro-me também que, em algumas conversas com a minha tia, ela me dizia que aqueles anos, os anos antes da Segunda Guerra, foram anos de grande efervescência intelectual. Berlim fervilhava com conferências, teatro, música, enfim, devem ter sido anos de intensa formação cultural para os três irmãos.
Mas aconteceu algo que mudaria a vida dessas três pessoas, e a de meus avós paternos, para sempre.
A Alemanha passa por um período de inflação terrível, e novamente lembro-me que em conversas com meu pai ele me dizia que algumas daquelas fotos que vemos nos livros de história, de pessoas levando marcos alemães num carrinho-de-mão para comprar um item insignificante, ele presenciou aquilo e teve mesmo que enfrentar longas filas para comprar um mero tablete de manteiga.
A catástrofe econômica também atingiu em cheio meu avô, que foi obrigado a fechar sua papelaria e vender seu apartamento. Foram todos então morar num dos quartos do concierge do prédio em que moravam.
Meu pai falava muito pouco sobre essa época, talvez porque doesse demais relembrar, ou talvez por pudor, pois foi uma época particularmente difícil para todos eles.
Aparentemente, meu avô tinha parentes na América do Sul, pois foi de certa forma pressionado a deixar a Alemanha antes que a perseguição aos judeus se tornasse o que se tornou. Esse também é um ponto do qual meu pai falava muito pouco, mas ouvi-o dizer algumas vezes que essa perseguição foi algo que os judeus alemães nunca conseguiram entender (!), pois consideravam-se mais alemães do que os próprios alemães, ou seja, tinham orgulho de pertencer à Alemanha.
E foi assim que meus avós e os três filhos deixaram a Alemanha para sempre.
Inicialmente, foram para Buenos Aires. Devido à precária situação econômica do meu avô, dos três filhos (acho que à minha tia, por ser mulher e devido à mentalidade da época, não lhe foi dada escolha), somente um poderia continuar os estudos superiores, privilégio que coube ao meu tio Jacques, que se formou como engenheiro na Universidade de La Plata.
Meu pai, então, veio para o Brasil, onde minha tia já estava morando em Santos e havia se casado com um imigrante também judeu.
Em Santos, meu pai trabalhou numa firma de café de primos seus que já estavam no país há algum tempo, os Sion, e começou como uma espécie de faz-tudo, tomando contato com as coisas do café (exportação) e ganhando um dinheirinho para sua sobrevivência.
Foi então para Londrina, no Paraná, onde, numa grande fazenda de café, aprendeu a conhecer e selecionar os diferentes tipos e desenvolveu um amor à terra que o acolhera, amor esse que o fez naturalizar-se brasileiro e acreditar neste país.
Passado esse tempo no Paraná, voltou a Santos e, numa das suas idas ao Rio, onde outro ramo dos Sion também se dedicava à exportação, conheceu minha mãe.
E é preciso voltar atrás e começar tudo de novo.
Meus avós maternos, Violette e Robert, nasceram na ilha de Rodes, quando ainda era italiana. Depois, os gregos a incorporaram à Grécia e muitos anos depois levei minha mãe a Rodes, mais precisamente ao bairro judeu, onde, diante de uma sinagoga, uma placa de mármore listava todos os nomes das famílias que ali tinham vivido, muitas das quais haviam sido levadas para campos de concentração.
Ali estava o nome da família da minha mãe que, como a de meu pai, talvez por um milagre, ou talvez porque assim deveria ser, sobreviveram aos horrores do Holocausto.
Por uma dessas coincidências do destino, meus avós também saíram da ilha de Rodes e foram para… Buenos Aires, onde ficaram durante muitos anos e onde nasceu a minha mãe.
Também não sei devido a quais circunstâncias, minha mãe era muito pequena para lembrar-se, saíram de Buenos Aires e foram para o Rio de Janeiro.
Meus avós maternos moravam razoavelmente bem no Rio, num prédio antigo da avenida Atlântica, no Leme, prédio que até hoje existe, de seis andares, ao lado do Hotel Méridien.
Minha mãe estudou no Colégio Anglo-Americano, fez balé no Municipal, caminhava com as amigas pelo calçadão da avenida Atlântica de luvinhas, enfim, uma “típica” carioca que meu pai viria a conhecer.
Como foi esse encontro?
Um dos primos do meu pai, Alberto Sion, que já tinha uma excelente situação econômica, era casado com uma mulher avançada para a sua época. Norma Sion não se curvou às pressões e preconceitos do que se esperava de uma mulher e tenho algumas lembranças dela de quando eu era criança — cigarro na boca, calças compridas, meio desbocada, enfim, uma espécie de Lillian Hellman tropical.
Ao conhecer meu pai, que era um bonito homem, diga-se de passagem, uma luzinha se acendeu na sua cabeça e, dentre as moças solteiras que conhecia, veio-lhe a imagem de minha mãe.
Imediatamente, chamou minha avó e minha mãe e também outras pessoas, a fim de que não parecesse tão evidente, para um chá na sua casa e, obviamente, meu pai, que àquela época estava meio radicado em Vitória, meio no Rio.
Os franceses têm um termo para o que acontece quando duas pessoas se conhecem e se apaixonam subitamente, coup de foudre, numa tradução bastante literal, um golpe de raio, algo assim como se a pessoa fosse fulminada por um raio.
Se foi dessa forma, ou se Norma Sion, apesar de toda a sua modernidade, agiu como as “casamenteiras” das aldeias judaicas na Polônia, o fato é que conseguiu o seu intento.
Convite de casamento dos pais, Rita Lilian e Richard Cohen. Rio de Janeiro, 26/12/1946. |
Meu pai e minha mãe casaram-se meses depois numa cerimônia linda na Sinagoga da rua Senhor dos Passos, no centro do Rio, que eu iria visitar um dia, e, subindo os degraus da sinagoga, imaginei minha mãe nos seus dezenove anos subindo esses mesmos degraus, com seu vestido de noiva.
O que aconteceu depois?
Vieram para Vitória, onde nasci.
Bem, se o Rio de Janeiro já era o Rio de Janeiro naquela época, Vitória aos poucos começava a ser urbanizada.
Para meu pai, que estava iniciando sua firma de café, a Mercantil de Café, que viria a ser uma das grandes exportadoras do Estado, em sociedade com Elias Saadi e Marcos Chulam, este também judeu, tudo na verdade era estimulante, e as longas jornadas de trabalho eram, para ele, normais.
O mesmo não pode ser dito em relação à minha mãe, cuja mudança do Rio para Vitória foi um choque em todos os sentidos.
Sílvia Renata Cohen em seus primeiros anos. |
Apesar de tudo, conseguiram fazer uma vida bastante movimentada e divertida, pois havia um número muito grande de americanos e ingleses aqui, com os quais meus pais fizeram amizade, pois tanto ele como a minha mãe falavam inglês.
Fizeram boas amizades também com famílias daqui, como Bianor e Alice Machado, que moravam na Praia da Costa, e parecia uma viagem interminável para mim, em criança, chegar à casa deles, e alguns outros casais, como os Bley e Jolindo e Ivone Martins, Dr. Jolindo tendo sido o meu pediatra e acredito que de inúmeras outras crianças daquela época.
Passei minha infância entre os ingleses da Western Telegraph, cuja sede se situava na Pedra do Cauê, os americanos com quem meu pai jogava tênis e com quem fazíamos churrascos à noite na Praia da Costa, além das moquecas deliciosas feitas por Bianor Machado. Lembro-me das festas em casa, um misto de cheiro de cachimbo dos ingleses e músicas de Bing Crosby e Doris Day, cantadas pelos americanos nostálgicos, os amigos brasileiros dançando comigo de camisola, louca pra ficar na festa, mas tendo que obedecer ao horário de dormir…
Foi nesse encontro pacífico e maravilhoso de amizade entre essas pessoas, que depois desapareceriam da minha vida e da vida dos meus pais, que minha infância transcorreu.
Sílvia Renata Cohen. |
Havia também o Iate Clube, de onde se avistava o Morro do Moreno, cuja formação a mãe de uma amiga certa vez disse ser parecida à de uma coelha grávida deitada.
É essa “coelha grávida deitada” que vejo da minha janela enquanto escrevo isto, e de repente me bate uma certa angústia seguida de uma constatação que me faz rir: quem diria, cheguei naquela fase da vida em que tenho o que contar…
E, ao avistar as ilhas do Frade e do Boi, hoje em dia urbanizadas, lembro-me nostálgica quando saímos de barco do Iate Clube para fazer piquenique nas ilhas, e era uma aventura de um dia inteiro.
Mudou Vitória, mudamos todos os da minha geração. Mas creio que, atualmente, vejo essa ilha de forma diferente.
Cresceu muito, é verdade, ficou bonita também, talvez um pouco mais organizada com avenidas onde antigamente eram ruas de paralelepípedos e com grandes aterros urbanizados onde o mar batia ruidosamente na encosta de pedra da Praia do Canto, nos dias de vento sul.
Esse será o vento típico de Vitória, o vento sul da cronista capixaba Carmélia M. de Souza, que traz um pouquinho de frio para a ilha e reacende lembranças que pareciam perdidas.
[Depoimento auto-biográfico para o site ESTAÇÃO CAPIXABA. Reprodução autorizada pela depoente.]
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