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Depoimento de Ana Cristina Costa Siqueira: Pequena Crônica

A imaginação é como a neblina  – limite entre a luz e o abismo. Diria que  é um mergulho no pólen mas sem a sutileza das abelhas que o transportam; mergulhar, indistintamente, como homens famintos farejam no lixo o que lhes apetece, ou como quaisquer animais se atiram sobre suas reses abatidas. A imaginação dos poetas tem sua carga de fome, como a gênese do corpo e a origem dos sonhos tem sua carga de universo: um poema em outro poema, mimetizados, extraídos de duas essências, limítrofes, tecidas as linhas entre uma e outra manhã, entre um texto e outro que, porventura, entrelace outras mãos, conduza os seus pássaros em rodopios, desfiando os medos e as prisões.

Nunca hei de saber o momento exato em que me apaixonei pela poesia, ou seja lá por que razão eu a tenha surpreendido em quase tudo o que fiz.

Quando era pequena, saía de mãos dadas com minha avó Maria Jesuína, e caminhávamos pelo bairro Bom Pastor. Nascida em Juiz de Fora, cercada por morros e vegetações, gostava de vislumbrar as manhãs mineiras de um dos pontos mais altos da cidade. Havia nos arredores da casa uma trilha estreita que levava até os barrancos, de onde se avistavam de um outro ângulo os bairros mais distantes.  Nada sei dos sonhos nem o tanto que recriei de universos, mas da vegetação me lembro perfeitamente: em sua maioria eram pequenas ervas, capim – gordura, mamonas, algumas árvores ornamentais de floração amarela, touças de capim fino crescendo ao longo das calçadas, plantados aos montes no jardim inclinado, sob a rampa que dava acesso à varanda de nossa casa.

Juiz de Fora é uma cidade fabril – talvez por essa razão, ou porque fossem comuns as tempestades no fim dos dias, era, para mim, uma cidade em preto e branco. Mas foi ali, exatamente em seu arco-íris cinzento, que descobri as primeiras pinceladas de cores, traçadas ou não pela pequena poetisa, surgindo dos jardins, entre o cheiro das dálias e dos gerânios, nos canteiros de hortaliças, perscrutando nas bananeiras ao fundo do quintal. Não raro saíamos mamãe vovó e eu para colher, entre as fartas ramagens, algumas abóboras, das mais novas, e eu me punha a olhar as aboboreiras, as flores dos quiabeiros com seu miolo de um vermelho escuro e raro. Muitas vezes as acompanhei, nesses passeios pelos terrenos além de nossa propriedade, enquanto colhiam as abobrinhas, trazendo junto um molhe de serralhas e outro de cebolinha. Minha avó crescera no campo e minha mãe, numa cidade pequena, em casa de assoalho e paredes rudimentares – no banheiro, sentia-se o odor do cimento molhado, absorvido com perfume dos sabonetes; da cozinha desprendia-se o cheiro fresco de temperos, de bifes regados a um caldo acebolado e gotas de pimenta, possivelmente nunca mais perceptíveis em nenhum canto imaginável deste mundo. Da avó vieram todos os nomes de planta, o odor indecifrável da marcela, as descobertas de pequenas ervas, e de todos os tipos de folhagens e flores.

Havia sempre um lugar para se explorar naqueles dias intermináveis. Da janela do meu quarto viam-se os primeiros raios da manhã, e o acender das luzes, ao cair da noite, às vezes misturado aos odores de plantas, aos aromas da cozinha e à música dos Beatles.

Os verões não eram tão longos e as férias começavam mais cedo, sempre associadas, na minha euforia, à florescência exacerbada das rosas e dos ipês, ao cheiro de carne assada e à visão dos bambuzais ao vento, em contraste com o azul quase impermeável do céu.

Semelhante a esse azul, algumas doses de alegria pontuavam dias perfeitos, no sabor das balas compradas na venda da esquina, nos ramos sortidos de brincos de princesa, nos tecidos novos dos primeiros uniformes escolares. Lembro-me de minha mãe sentada ao meu lado, de tardezinha, ambas recostadas em algum lugar ou fronteira de mundos, e ela lia “As mais belas Histórias” para mim. Quando me levava ao dentista, íamos a uma padaria do Centro comer sonhos. Eu atravessava as avenidas olhando os fios, os pardais, repetindo, baixinho, os versos de Henriqueta Lisboa: “Andorinha no fio contou-me um segredo…”, mais ou menos assim.

Comecei a escrever de fato aos dezoito anos, copiando capítulos inteiros da novela O Profeta, de Ivani Ribeiro. Copiava e recriava das cenas o que eu lembrava em detalhes os mais sutis. Depois comecei a escrever poemas líricos. Percebi, na minha ingenuidade, que eram profundos, mas não sabia o quando ainda mergulharia naquele universo indivisível, em sua linguagem e emoção. Quando iniciei os estudos na universidade, conheci segredos de lagarta; depois, um tempo demorado de casulo, até que se me desprenderam as asas úmidas.

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