Depois que nasci em Acióli fui transferido para o norte de Colatina, com quatro meses de idade. Meu pai começou vida em Nova Itália, atual Novo Brasil, em 1938. Despertei para o mundo em meio à mata atlântica. Macacos, papagaios, onças, toda raça de bichos e pássaros, todo o rumor da floresta foram meus primeiros encantos. Com a morte do pai, antes de completar quatro anos, minha mãe retomou a Acióli. Vivia mais com os avós paternos e maternos do que em casa da minha mãe, por motivos óbvios. Eram famílias grandes e abastadas para a época, ao menos pela ótica de criança. Só fui alfabetizado depois dos oito anos pela professora Olga Iolanda Raizer. Era 1945, ano em que terminou a segunda guerra mundial. Em Acióli fiz a primeira e a segunda série primária. Para sobreviver de costura, minha mãe mudou-se para Colatina em 1947. Aí as professoras acharam conveniente que eu repetisse a segunda série no Grupo Escolar Aristides Freire. No dia 1 de janeiro de 1949 entrei para o seminário de Anchieta. Com dois meses de permanência fui premiado e transferido para o Colégio Anchieta de Nova Friburgo pelo meu aproveitamento nos estudos. Tinha só a terceira série primária. Fiquei oito anos interno em Nova Friburgo onde fiz todo o ginásio e o curso clássico. Com dezenove anos entrei para a ordem religiosa da Companhia de Jesus, jesuítas, onde permaneci mais doze anos, sempre estudando.
As lembranças da terra natal são as melhores possíveis. Na infância todas as coisas têm uma outra dimensão. O tempo é enorme, mas as cenas se gravam na memória de tal forma que nunca consegui errar a respeito delas. Primeiro foi a morte do pai, mordido de cobra, no norte de Colatina, depois a vida em Acióli. Nossa casa ficava na frente da estrada de ferro Vitória Minas. O progresso marcava presença com as atividades da Companhia Vale do Rio Doce. A vila regurgitava ao redor da estação e da igreja local. Só corri risco de vida uma vez quando minha mãe me salvou de morrer afogado no rio Pau Gigante. Eu devia ter seis anos. A infância na roça e no interior é uma coisa fascinante. Até hoje me considero superior aos meninos tecnólogos da cidade que precisam estudar ecologia. Gasto, atualmente, grande parte do meu tempo tentando salvar conhecimentos da vida dos primeiros imigrantes italianos, destes colonos que começaram o Brasil do nada. Tenho fundas lembranças de Nova Friburgo, de Itaici (SP), do Rio de Janeiro, de São Leopoldo (RS). Morei em Braga, Portugal, e três anos na Itália.
Meu gosto pela literatura foi despertado no colégio dos jesuítas. Primeiro, era obrigatório o exercício de redação. Depois, aconteciam de ser publicados artigos no jornalzinho ASA, do Colégio Anchieta. Com treze anos aprendi a metrificar. Antes dos dezessete anos saiu publicado um soneto meu no catálogo do colégio cuja primeira quadra dizia:
As letras do meu livro são finezas
bordadas com capricho de pintura
e os olhos vão buscar nas profundezas
vaticínios da imagem e da figura
Quando estava no primeiro clássico ganhei o primeiro e único concurso literário da minha vida, fazendo uma dissertação sobre o dia da pátria, 7 de setembro. No dia do desfile, o comandante do Sanatório Naval de Nova Friburgo, no palanque, me deu como prêmio a Vida de Jesus de Plínio Salgado. Li e reli o livro muitas vezes e descobri como ficou interessante o autor ter-se colocado no lugar de Jesus Cristo e Getúlio Vargas no lugar de Pilatos. O professor de português sabia incentivar os alunos a escrever e, sobretudo, a ler. Aquilo até que era fácil. O difícil era traduzir Homero do grego, Cícero, Virgílio, Horácio do latim. Lembro-me de um tempo em que com um Quicherat na mão devíamos traduzir uma ode de Horácio por noite.
Tenho saudades dos tempos em que ganhei um livro do Reco-Reco, Bolão e Azeitona como prêmio de melhor da turma em 1947 em Colatina. Isto ainda no primário. Os padres impunham um regime muito mais severo que o militar, no Colégio Anchieta, mas a partir de 1954 as coisas se abrandaram com uma liberalização e maior abertura. Íamos ao cinema da cidade, participávamos dos jogos escolares. Havia teatro. No final de 1955 escrevi a peça teatral Estilicão, uma espécie de praça da alegria, como despedida da turma que se formava. Todo mundo riu muito sem saber que o autor nunca fez graça em público. Só foram saber depois da peça consumada. Durante este tempo participava como desenhista e paginador da revista mimeografada Fulgens Corona cujos exemplares ainda guardo. Formei-me no clássico em 1956, um ano muito significativo por ser quarto centenário da morte de Santo Inácio de Loiola, fundador da Companhia de Jesus, início da construção de Brasília, lançamento de duas monumentais obras de Guimarães Rosa, data histórica do início do movimento da poesia concreta. Fiz o convite de formatura de nossa turma e elenquei os nomes dos formandos todos e tudo em letras minúsculas como mandava o gosto da época. A censura veio de cima com ares de bom senso. Em resposta trocamos as letras minúsculas por góticas. Naquela época não havia televisão e por este motivo se lia muito. A primeira vez que vi televisão foi em 1955 no Rio de Janeiro. Através das antologias entrei em contato com os autores chamados “clássicos”. Enriquecia-se o vocabulário com a explicação das palavras difíceis no final do trecho escolhido. Os padres impunham o tempo de vinte minutos para se decorar um soneto e depois recitá-lo na aula. Quem recitava por último tinha sorte porque tinha mais tempo e aproveitava-se dos colegas, dos seus tropeços, dos brancos da memória, das trapalhadas. Nunca mais me esqueci do ritmo, da cadência métrica dos parnasianos e de todos os mais autores da última flor do Lácio inculta e bela! Fui um apaixonado pela obra Nova Floresta de Manoel Bernardes e pelos Sermões de Antônio Vieira. Rui Barbosa era café pequeno com seu vocabulário “erúdito”, conforme pronúncia do inspetor oficial de ensino público e que nós gozamos até hoje. Euclides da Cunha foi digno de um grande certame público e encenação teatral. Guardo até hoje um exemplar do “Discurso no Colégio Anchieta” de Rui Barbosa, um monumento de oratória. É dele o famoso trecho antológico: a pátria é a família amplificada. Não sigo os parâmetros destes autores mas devo a todos eles o que só se aprende sozinho, lendo; devo a eles um legado e um patrimônio que não troco pelo saber tecnológico atual, pelos autores atuais. Talvez eu já esteja me iniciando na esclerose, mas não troco. Os clássicos são autores do sempre!
Há um fato marcante entre muitos na minha atividade poética. No dia 18 de outubro de 1956 eu devia dizer qualquer coisa em público na hora da janta, o refeitório lotado. Devia não, era obrigado a dizer. Retirei do bolso um poema e li. Fiquei assustado com o estrondo das palmas. Eu não era de ser aplaudido, mas parece que naquele poema eu resumia uma aspiração grupal. Disto me certifiquei mais tarde. Minha fama de poeta público nasceu naquele dia e naquela hora. No final do ano, eu e um colega coletamos nossos poemas e fizemos um caderno. O caderno começou a correr de mão em mão e a ser disputado. Foi subindo até o diretor e depois até o reitor do Colégio Anchieta. Nunca mais o vimos, mas nossos poemas estavam salvos individualmente. Supomos que a obra-prima adolescente tenha galgado os arquivos secretos da ordem religiosa na pessoa do superior máximo. Se isto não foi verdade, pelo menos em 1962, depois de formado em Letras Clássicas, fui estudar Teoria Literária em Braga, Portugal, com o padre e professor João Mendes, de quem me orgulho até hoje. Sua obra em diversos volumes circula no Brasil e Portugal pela Editora Verbo. Mas alguém pode estar curioso em saber qual foi o poema daquele dia. Era assim:
Teus dias:
A escolha de gênero literário diz respeito e muito à personalidade do escritor, basta ver os autores de textos teatrais. O gênero poético é um dos mais difíceis, embora seja um dos mais praticados pelos escritores iniciantes. Muitos já disseram que escrever poemas é um sintoma do primeiro amor e da primeira dor de cotovelo. Pessoalmente é um gênero de grande liberdade de temas. Cada poema tem um tema, ou melhor, um “motivo”, termo emprestado da música. Hoje em dia se escreve poema sobre qualquer tema, sobre qualquer motivo. Sendo professor de teoria da literatura durante muitos anos já parei para pensar a respeito da função da minha obra. Cada um inventa funções para a literatura, uns para denunciar as mazelas sociais, outros para transformar a sociedade, outros para declarar amor à humanidade, outros pensam que através da obra não morrerão nunca, etc. Escrevo como uma pulsão e necessidade de dizer, em primeiro lugar, a mim mesmo, o que sinto e penso. Dou mais importância ao escritor e à obra do que ao leitor, mas sabendo que nada se escreve sem que haja um desejo subjacente de ser lido. Minha obra é um espaço de liberdade: digo tudo o que quero e como quero dizer. Acho importante a autocrítica. Daí o ter eu publicado tão pouco. Procuro questões do momento, da minha época, aspectos que não vejo salientados e de que gostaria. Mas em poesia a minha obra é um fracasso, não fosse certo conhecimento do ofício de poesia.
Escrevo sempre e de forma muito irregular. Não gosto de método e não me imponho ordem a não ser quando se trata de organizar o livro. Arte literária não se improvisa. Às vezes escrevo um poema irretocável, outras vezes escrevo e reescrevo até por mais de vinte anos, como já me aconteceu. Tenho a impressão de que em épocas de angústia minha produção é regular, em épocas de felicidade não escrevo nem sinto necessidade disto.
Minha relação com a língua portuguesa é profissional, é meu instrumento de trabalho. Estudo-a diariamente e acho que ainda não a aprendi suficientemente. Qualquer língua é um monumento histórico secular diante da vida pequena de um homem, esse verme do cosmo. Acredito no sucesso histórico da língua portuguesa, da mesma forma que acredito no Brasil e na sua crescente influência entre as demais nações. O português é uma língua em expansão e não destinada ao desaparecimento, como tantas. Acho fundamental o conhecimento de outras línguas como uma necessidade vital.
Não faço concessões ao leitor em meus textos, a não ser em tê-lo, diante de mim, como um ser digno de respeito, de não perder o tempo de leitura, de não se sentir pior após a leitura. Não gosto de best-seller nem de ser um. Nunca li nenhum destes que encabeçam as listas e estou convencido de que não perdi nada. Não acredito na quantidade. Acho uma empulhação das livrarias a lista dos mais vendidos, dando a entender que são os melhores. Comerciar a qualidade artística é uma coisa muito delicada. Gostaria de ganhar dinheiro com livro mas, no Brasil, eu tenho vergonha. Quem ganha às nossas custas são as editoras e livrarias e o povo é inculto por fatalidade política.
Guimarães Rosa desprezou a crítica literária. Eu também, sobretudo esta crítica de concursos literários. Toda crítica literária aliada ao poder e ao dinheiro é, no fundo, venal, vendida. Dinheiro e poder tolhem a liberdade de expressão. As ditaduras totalitárias e teocráticas fazem isto. Por outro lado, a literatura precisa de gente que estude e explique aos estudantes e ao povo em geral o que ela é. Nesta crítica literária eu acredito. Agora é um fato que as grandes literaturas atingiram um ápice em épocas de prosperidade social. Todos os gêneros literários existentes e os que venham a existir têm futuro. A literatura caminha hoje para uma integração com outros sistemas sígnicos, para uma semiótica, sem perder jamais sua autonomia e identidade.
Não acredito numa literatura capixaba, isto é, provinciana. Acredito na literatura brasileira. Aprendi há muito tempo a distinguir a extensão dos adjetivos. Toda arte é ela mesma sem adjetivos. Aceito os adjetivos na literatura para expressar pontos de vista pessoais e até íntimos do cidadão. Faça um adjetivo com o meu ou o seu nome próprio e verá que coisa horrível! Ultimamente se tem escrito muito no Espírito Santo mas não o mesmo que nos países civilizados e assim considerados. Pior do que nós estão os povos indígenas e uma infinidade de nações inexpressivas.
Devo dizer aos iniciantes que não sigam o meu exemplo, nem as minhas idéias. Não sou profeta de nada, nem muito menos guru. Como professor tento formar opiniões na cabeça dos alunos mas me acho um verdadeiro Don Quixote, falso e arcaico. Cada um tem seu tempo e sua oportunidade. Um escritor só existe se escrever e publicar. O resto é conseqüência. As novas gerações estão perdendo muitos bons costumes e adquirindo outros. Entre os bons costumes a adquirir gostaria que estivesse o de se expressar por escrito e não como os macacos, só por gestos e uns terríveis sons guturais típicos dos conjuntos de rock. Quem ler muito pode não acabar sendo um bom escritor mas pelo menos contribuirá para que a raça dos escritores não se extinga e acabe. Ler é uma aventura do espírito, é um lugar do sonho e das utopias. Um dia me encostei no parapeito de uma janela, no terceiro andar do Colégio Anchieta, e li, de pé, todo o livro O avô, de Nuno de Montemor. Confesso que não sei o que disse o livro nem sei mais nada sobre o autor. Só me lembro do momento. Era jovem e feliz.
Luiz Busatto nasceu em Ibiraçu-ES, em 1937. Graduado em Letras, com cursos de especialização em Portugal (Teoria da Literatura e História da Literatura Portuguesa), na Itália (Filosofia), mestrado em Letras pela PUC/RJ e doutorado na mesma área pela UFRJ. Professor da Ufes e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Colatina (1969-1983). É membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e da Academia Espírito-santense de Letras. Foi presidente do Conselho Estadual de Cultura (1993/4) e vice-presidente (1986/7). Tem várias obras publicadas, sendo um estudioso da imigração italiana.
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