É o diabo tentar falar assim, de cara lavada e em corpo 12, sobre o quem fui, quem sou, um sujeito/personagem que não se considera à altura de tal autor, de tal leitor. Mas vamos ahead, quae sera tamen, mais tamen do que quae sera, o que quer o que pode esse cara chamado Bith, que organizou esse seminário e me impôs expor-me à língua cúpida de nossas meias dúzias de leitores cada, que esse negócio de literatura nunca mereceu mesmo muita atenção por parte do distinto grande público cá por essas bandas. E ainda bem.
Devo confessar que minhas leituras iniciais já me conduziam ao caminho que agora trilho com razoáveis serenidade e segurança (notaram a concordância, que bonita?). Antes de desaguar, impávido colosso, nos braços de Shakespeare, Bernard Shaw e Joyce (No original! No original! — graças ao Mário); dos românticos ingleses (graças à Aurélia) e de Edward Albee, Arthur Miller e Tennessee Williams (graças ao Carrozzo), pois, antes disso, eu já estava impregnado de Umberto Eco, Fernando Pessoa, Camões, Günter Grass, Machado de Assis, José J. Veiga, Drummond, Gilberto Mendonça Teles (o poeta) e arredores.
Mas meus dois autores favoritos de adolescente, os que me puseram no, ahn, digamos assim, caminho da boa literatura, foram (que Borges, que nada!) Marcial Lafuente (M.L.) Stefania e… sabe que esqueci o nome do outro? Agora, que os livros dele tinham uma heroína formidável, e isso é o que importa, lá isso tinham: Brigitte Montfort, filha de Giselle, a espiã nua que abalou Paris. Perdi a conta das vezes que me escondi debaixo do lençol, imaginando-me um daqueles espiões russos (eu sempre gostei de ser do mal) que ela seduzia com seu corpo sedento, seus olhos verdes, sua boca molhada… quantas vezes eu quis possuir um segredo atômico qualquer só pra ser perseguido por Brigitte Montfort, com aquelas coxas grossas, que, ao final, terminaria por usar, depois de abusar sexualmente de mim, para quebrar meu pescoço, com uma torção absolutamente precisa. Que época! Foi assim, sob a influência de Brigitte Montfort, aliciadora de minhas fantasias adolescentes, que descobri minha atriz favorita, logo que a censura foi defenestrada (“pela janela”, diria um amigo meu, todo cheio de pleonasmo): Georgina Spelvin. Aos cultores daqueles inteligentíssimos filmes tchecos e franceses, permito-me lembrar que se trata de uma atriz americana, protagonista de O diabo na carne de Mrs. Jones (co-estrelado por John Holmes, eu acho) e — um cult! — Garganta Profunda. Por este último, aliás, tal o grau de realismo que imprimiu ao seu personagem, ela deveria ter ganhado um Oscar (Frances McDormand não ganhou, só por ficar repetindo “yeah!”, em Fargo, com aquela cara da Família Buscapé dos hillbilllies americanos?).
Tá bom, voltando à vaca frígida, eu confesso. Minha primeira vez foi aos 6, 7 anos, mas acho que nem a idade me redime de ter lido então As aventuras de Tibicuera. E onde é que entra a tão ansiosamente aguardada parte de “construção” do poeta? Aí é que está. Não entra. Deixo isso aos meus biógrafos, se houverem (o plural foi de propósito, só pra chatear). Tomara que nenhum deles me pegue vivo. Eu sei lá do poeta, mas lembro bem de um professor de Geografia, desse eu me lembro, por duas razões: uma, que me livraria de uma prova final chatíssima, sobre aspectos geológicos sabe Deus de onde, se eu fosse capaz de dizer as capitais de uns tantos países esquisitos que ele escolheria aleatoriamente. Isso era no dia seguinte e, por conta de ter passado a noite em cima de um atlas velho e ensebado, é que sei até hoje que a capital do Laos é Luang Prabang. Pára de ler este parágrafo e pergunta a alguém aí do lado se sabe qual a capital do Laos. Ou do Chade. Duvido. Ninguém mais sabe. E a segunda coisa é que, um dia, o Ozílio Rubim (é o nome do professor), enquanto eu olhava distraído para o meu futuro pela janela da casa dele na avenida Santo Antônio, me joga nos braços um livro e diz: “Lê. Você vai gostar.” Que livro? Nada menos que Cem anos de solidão. Ele jogou uma obra-prima da literatura aos pés dos meus 14 anos. Te devo essa, Ozílio. Este talvez tenha sido o acontecimento mais importante da minha adolescência, exceto, talvez, o fato de ter testemunhado Jorge Reis, goleiro do Rio Branco, bater o recorde (eu prefiro record, mas vá lá que seja recorde) mundial de tempo sem tomar gol: 1.609 minutos invicto.
Pois é. O título (do livro, não do Rio Branco) me fascinou, a primeira frase me fascinou, as ilustrações de Carybé; o realismo fantástico me pegou no colo, me jogou na parede, me chamou de meu amor. Não consegui nunca mais desgrudar um olho desse tamanho de qualquer lugar onde vejo escritas as palavras mágicas Gabriel García Márquez. Se eu tivesse que plagiar um livro… se alguém, um conselho, tiver que plagiar um livro, ou parte de, que seja esse Cem anos de solidão, qualquer coisa menos não vale o esforço, meu bem. E pega mal.
Daí pra frente é mole. Quem se apaixona por García Márquez aos 14 anos não consegue ficar só olhando, impassível, para o Saara de uma folha em branco, tem que mergulhar nas dunas, sentir o sol, a areia nos olhos, na boca, nos dentes, e ficar frustrado com a imensidão intransponível, mais ou menos como o gato do Reinaldo [Santos Neves] que, ao se deparar com as dunas de Itaúnas, pensou que nem se vivesse eternamente conseguiria cagar o suficiente para usar aquele areal todo.
Depois de GGM, por linhas tortas, conheci o Oscar [Gama Filho] (acho tão chiques esses colchetes!). Ele estava experimentando uma linguagem poética meio maluca, mas tremendamente inovadora para o local (Vitória) e a época (fins de 78), baseado em estudos sérios (o Oscar sempre levou a literatura a sério, talvez um pouco a sério demais, em alguns momentos) sobre o stream of consciousness de James Joyce e Virginia Woolf. Enquanto Vitória nos olhava com espanto, sem entender nada (às vezes nem nós mesmos entendíamos, eu acho que), colhíamos um elogiozinho do Drummond aqui, de Jorge Amado ali (mas esse é suspeito), do Gilberto Mendonça Teles adiante, e sentávamos praça com Reinaldo Santos Neves, José Augusto Carvalho, Renato Pacheco, Marcos Tavares e Luiz Busatto no Grupo e na Revista Letra (sem esquecer do Luiz Guilherme Santos Neves, o membro de fora do Grupo).
Assim, como quem não quer nada, fui-me construindo, sem léu nem chapéu, este que excessivamente assim sou, já li isso em algum lugar. Deve ter sido em Dédalo, meu último livro. Ah, sim. Os meus livros.
Comecei plagiando e declamando uns poemas de Kipling no programa policial Ronda da Cidade, apresentado pelo então radialista Gérson Camata, vocês sabem, o marido da deputada Rita Camata (parece que ele também foi eleito pra alguma coisa aí), o qual, por não entender lhufas de literatura, nem desconfiava de que eu roubava aqueles poemas do Tesouro da Juventude, que lia aos borbotões na Biblioteca Pública da PMV, em tardes de nunca mais. Camata não entendia de literatura, mas logo, logo, arrumou um jeitinho de ficar rico, enquanto eu continuo ralando (e tendo dúvidas sobre se sei algo do assunto).
Depois disso, escrevi meus próprios poemas. Três livros vieram em mimeógrafo: De amor à política (o livro, acreditem, é bem melhor que o título), com Oscar Gama Filho; A fuga e o vento e Exercício do corpo, que uma garota uma vez me perguntou se se tratava de um manual de Educação Física. Aí, o Reinaldo, pra meu azar, era editor da FCAA/Ufes e se recusava terminantemente a publicar os amigos mais chegados, com medo de ser acusado de alguma espécie de sacanagem. De modo que precisei de uma menção honrosa em concurso para publicar Os mortos estão no living (contos). Para publicar os poemas de Lição de Labirinto, então, precisei vencer o concurso.
Então, que o espaço tá ficando curto, escrevi Tanto Amar, um livro com só l4 poemas falando sobre a paixão, meu tema de sempre favorito, que a Vera Viana, na Secretaria de Cultura da PMV, abençoada por Vítor Buaiz, publicou, junto com a CEF. Foi lançado em 91. Naquele ano, conheci uma mulher, ao redor da qual circulei, embevecido, apatetado, os próximos quase 5 anos, até que, em princípios de 96, o bom senso dela prevaleceu pela primeira vez e ela me deixou, o que me obrigou a voltar a escrever – para exorcizar meus fantasmas (pra me “imolar em público”, disse o Adilson Vilaça).
Ela me rendeu, ao menos isso, um livro: Sonetos da despaixão, que inaugurou, em julho, a minha editora, Flor & Cultura, logo seguido, em novembro, por Dédalo. A tal mulher? Dela nada mais sei nem me seja perguntado. Que a neve de Munique lhe seja leve.
In a nutshell, isso que era pra ser uma tomada de posição diante da literatura já virou um esboço de autobiografia. Mas literatura pra mim é oração sem sujeito nem objeto. Mal, mal, cabe aí uma interjeição atualmente. Tamos num vale-tudo desgraçado e eu é que vou ficar queimando pestana com isso? Neca de núncaras. Vou é parar de fazer o pé-de-alferes a essa senhora dama inacessível chamada palavra, dar-lhe umas bordoadas pra ela ver quem é que manda, como sugere o Luís Fernando Veríssimo, e pôr-me ao fresco, que eu quero mesmo é ir ver o Hale-Bopp todas as noites, às 18:32, senão, só daqui a 4.000 anos e eu não sei se estarei acordado até lá.
[In revista Você, nº 45, de maio de 1997. O depoimento faz parte de um conjunto de textos organizado pelo Prof. Wilberth Salgueiro, da Ufes, e intitulado “A poesia-perto e o punctum capixaba”. Reprodução autorizada.]
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Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira nasceu em Marataízes, ES, em 29 de setembro de 1959 e faleceu em Vitória, em 2009. Mudou-se com os pais para Vitória em 1964. Poeta, concluiu em 1996 o curso de graduação em Letras-Inglês na Ufes e cursou o mestrado em História na mesma universidade. Publicou diversos livros. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)