Voltar às postagens

Descoberta

Os quintais eram ligados: o nosso e o de meus avós. Esse quintalzão ficou célebre (achava) porque foi nele que descobri o elevador. Exato. O elevador descoberto por uma criança de apenas seis para sete anos: eu. Houve insinuações ou mesmo declarações explícitas quanto a precursores. Na época não aceitava dúvidas, ainda mais que a autoria do invento foi confirmada por uma autoridade cuja opinião, para mim, era lei, como digo mais adiante. A confiança em minha capacidade inventiva levava-me até a acreditar que, mais dia menos dia, acabaria inventando o “moto-contínuo”. Mas é preciso explicar melhor isso. Naquele tempo o “moto-contínuo” era uma obsessão na montanha. De vez em quando vinham notícias como esta: “O Hans descobriu o ‘moto’ lá onde mora, no Chapéu. Está com medo de trazê-lo para cá por causa dos ladrões.” Notícias parecidas eram comuns. Algumas chegavam com outras informações: “O Fritz, aquele que vive lá na quebrada do Morro do Bautz, não só descobriu o ‘moto’ como botou ele para funcionar como motor no quitungo de farinha. Foi muito ótimo porque a nascente dele tá secando e tem dia que não pode mover a roda d’água. Agora a produção de farinha tá regulada.” Mas, pelo que soube, sempre que ia alguém visitar sua descoberta, o Fritz dizia que tinha escondido o “moto-contínuo” numa capoeira por causa de “uns home rondando a casa”. Ninguém sabia se ele estava contando a verdade. As opiniões se dividiam. Mesmo os que duvidavam não se mostravam muito enfáticos na desconfiança porque era melhor não fazer mau juízo de quem podia ter o segredo do motor que dispensava fonte de energia e teria a possibilidade de ficar riquíssimo de uma hora para outra. Na dúvida, barbas de molho.

Boatos para cá e para lá aumentando ou diminuindo ciclicamente. Foi num tempo de ciclo de boatos em alta que surgiu o outro Hans que não era o do Chapéu. Morava lá para os lados de Boa Sorte. Muito misterioso, chegou numa noite, logo depois do jantar, quando meu avô já estava sentado na cadeira de balanço lendo o jornal chegado à tarde, pelo ônibus. Lembro-me do detalhe porque ele aceitou um prato de sopa e comeu muitos pedaços do pernil de porco, sobras da refeição, e até pediu mais uns limões para colocar na carne. Antes de comer disse para meu avô que tinha um “particular” para conversar com ele, o que aconteceu mais tarde na sala de visitas. Eu, muito xereta, fiquei por ali e peguei um pedaço do que conversaram.

O Hans era também um descobridor de “moto-contínuo”. Mas diferentemente do usual, isto é de inventores que escondiam o invento, ele disse que havia trazido o “moto” no lombo de um burro amarrado ali na frente da casa. Obtida a concordância de meu avô, o Hans foi colocar o burro no nosso quintal dizendo que no dia seguinte ia fazer uma demonstração de sua descoberta.

Caramba, a coisa agora era séria. Um inventor que provava o que dizia.

Para encurtar a história, o Hans ficou uns quinze dias hospedado num quartinho dos fundos e durante todo esse tempo manteve a expectativa de nos apresentar o invento do século. “Do milênio” — aumentava o Joaquim da fábrica de móveis.

O Hans acordava tarde e comia como um leão. Logo na primeira semana deve ter engordado uns três quilos. Durante todo o dia — embora com generosos intervalos para o almoço, após o qual dormia umas duas horas —, justiça seja feita, ele, afanosamente, tomava as providências para colocar o “moto” para funcionar conforme sua promessa. Infelizmente, segundo ele, um conjunto de circunstâncias desfavoráveis se juntavam para frustrar seu objetivo. Não havia ainda encontrado um dia de temperatura ideal. Ou estava muito quente ou muito frio. Além do mais, quando começou a chover o Hans passou a exibir uma cara desconsolada. Com chuva é que a coisa não ia mesmo. Já sabia. Uma vez lá em Boa Sorte…

Mais uns dias e o meu avô lhe disse para desistir da experiência. Ele ficou todo ofendido com a demonstração de desconfiança, da falta de apoio aos inventores. Mas o avô foi irredutível apesar da promessa do Hans de colocar a engenhoca para funcionar dentro de “no máximo, trinta dias”. O avô pediu para que ele e o burro se retirassem.

De minha parte, o período que o Hans passou na casa de meu avô não foi perdido. Ao contrário. Acontece que, enquanto ele ficava lá dentro do paiol mexendo com as cordas e barbantes procurando fazer sua geringonça dar sinal de vida, acabei fazendo boa amizade com o seu burro, o glorioso transportador do “moto-contínuo”.

O “Pudim”, esse o nome do burro, passava os dias debaixo da mangueira, modorrando. Duas vezes por dia eu enchia o embornal de milho para alimentá-lo. Como era um burrinho muito manso, me aproveitava disso para montá-lo, rodando pelo quintal. Então, um dia, quando o burrinho estava descansando depois do almoço, joguei uma corda no seu lombo. Arrumei uma pedra e a amarrei numa das pontas da corda. Fui para o outro lado e puxei. Pronto. Imediatamente percebi que seria possível colocar coisas e pessoas de um lado e elevá-las puxando do outro lado. Enfim, estava inventado o elevador. Os já citados contestadores diziam rindo que aquilo era bobagem. O elevador já existia em Vitória no edifício Guimarães, na praça Costa Pereira, um prédio que tinha nada menos do que sete andares servidos pelo aparelho.

Quem me consolou foi o cego Couto, um agregado da casa de meu avô que desde o princípio não simpatizou com o Hans, “um conversa fiada”. O cego ficava o dia inteiro sentado na porta da cozinha fumando um cachimbo de barro, olhando o vazio e fornecendo palpites para o jogo do bicho.

— Que bicho vai dar hoje, seu Couto?

— Hoje dá cabra ou talvez carneiro. Pode dar avestruz e quem sabe, águia, pode ser…

Acho que muitos pediam a ele esses palpites só para ficar rindo porque o cego era muito prudente e acabava desfilando quase toda bicharada do zoo lotérico. Não era o meu caso. No dia em que sonhei com uma borboleta puxando um elefante pelos ares fui pedir-lhe para me dizer em que bicho devia jogar. Só podia ser em um único bicho porque eu só tinha um tostão. O ceguinho me fez repetir o sonho e me disse para jogar no elefante porque elefante era bicho de pele dura e se caísse do céu não se arrebentava. Não entendi absolutamente nada dessa explicação mas joguei no elefante. No final do dia, elefante na cabeça. Ganhei quatro mil réis. Depois disso, passei a ter muita confiança nas opiniões de seu Couto e não me importava muito com o que os outros dissessem. Foi aliás o que ele me disse: que não me importasse com os invejosos. “Por exemplo,” — disse ele — “tem quem diga que alguém inventou o avião antes de Santos Dumont. Veja só.”

Enfim, o cego Couto fazia justiça ou pelo menos amenizava uma desconfiança em minha capacidade inventiva que já começava a se instalar perfidamente em minha cabeça.

Quanto ao “moto-contínuo”, não cheguei a iniciar as experiências porque logo depois vim morar em Vitória, onde o quintal era muito pequeno. Não havia espaço suficiente para instalar todos os equipamentos necessários.

[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]

———
© 2003 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário