“Você viu?” perguntou Nanico mostrando o jornal a Pedro. Pronto para iscar o isqueiro e acender o cigarro, Pedro devolveu a pergunta: “Viu o quê?”
“O resultado do recal dos delegados de polícia… Digital ficou em primeiro lugar… Foi o mais citado de todos… Ele está pocando de vaidade… “
“Fizeram recal para delegado de polícia?” assombrou-se Pedro.
“Hoje em dia fazem recal de tudo. De delegado de polícia, de papel higiênico, de sabão de coco, de garota propaganda, de artista da Casa dos Artistas, e por aí afora. Qualquer dia vão fazer recal até para escrivão de polícia…”
“Estou fora dessa,” avisou Pedro expelindo a fumaça do cigarro num chumaço portentoso, como se saísse da chaminé de vapor do Lloyd, quando havia vapor e havia Lloyd.
“Está nada. Você é tido pela tchurma aqui da casa como nosso escrivão metido a intelectual. Isso pesa pra cacete. Na hora que a imprensa descobrir esta sua qualidade, você vai virar notícia no Jornal Nacional.”
“Vê se eu tenho a cara-de-pau de Digital…”
“Bem, aí também seria demais. Só neste mês ele apareceu doze vezes em entrevistas à TV. Sempre falando pelos cotovelos… Parece que engoliu uma agulha de vitrola, como dizia minha avó.”
“E sempre cuspindo as maiores sandices,” acrescentou Pedro.
“Bota sandice nisso. Lembra quando ele declarou que a investigação ia de vento em polpa?”
“Foi de doer…”
“O pior é que o inquérito nem tinha sido aberto… Mesmo assim ele afirmou todo emproado que, pelas ‘características do delito, só podia ser crime de mando, crime contra o patrimônio ou simples latrocínio…’ Quando eu perguntei como ele podia fazer uma afirmação daquelas, me respondeu que todo crime se ‘encapitula’ nessa situação, e jornalista gosta de explicação de delegado,” informou Nanico.
“Nesse ponto ele tem razão,” concordou Pedro. “Basta haver um crime hediondo que os repórteres seqüestram delegado para dar entrevista, com direito a chamada especial em horário nobre da TV. E não tem um puto de um delegado que seja capaz de pedir tempo para aguardar as investigações. Desembucham logo uma teoria que trazem na ponta da língua para um fato que aconteceu há menos de quinze minutos… Digital é um deles.”
“O principal deles,” corrigiu Nanico. “Sempre cheio de hipóteses e alternativas. Agora mesmo está debruçado sobre um relatório para o secretário de segurança oferecendo sugestões para desmontar o crime organizado no Estado. E vai acabar consultando você para corrigir as baboseiras que está parindo.”
Mal Nanico acabara de fazer a nefanda profecia, Lenilda, a faxineira, aproximou-se dos dois escrivães e sapecou o recado: “Seu Pedrinho, Dr. Digital pediu para o senhor ir até o gabinete dele.”
“Eu não disse?” cantou Nanico vitorioso.
“Boca de Cassandra!” reagiu Pedro, fixando o companheiro de trabalho com o olhar desconsolado de quem teria de pagar o mico. Apagando a bagana do cigarro no cinzeirinho sobre a mesa, foi atender ao chamado do chefão.
“Sente-se aí, seu Pedro,” acolheu-o Digital com as mangas da camisa cor de abacate arregaçadas até os cotovelos. “Precisamos conversar. Antes, porém, o senhor já soube o resultado do recal? Estamos em alta, na voz do povo, e a voz do povo é a voz de Deus”, pavoneou-se todo.
“Estamos, quem?” indagou Pedro de sacanagem.
“Todos da nossa tropa, o nosso time! Eu, você, Nanico, meu motorista Simão, até Lenilda… Ando tão animado com essas vitórias que se meu amigo, o deputado Ribeirinho, me der o apoio necessário, e o secretário de segurança concordar, vou introduzir aqui na delegacia o ISO 9000. Não apenas o 9000, mas também o 9001, o 9002, o 9003, o 9004… a série toda até o 9010, se me deixarem. Recebendo apoio, boto pra quebrar nesta porra de delegacia. E como você é dado a escrever literatura já podia ir preparando umas frasinhas de efeito para elevar a auto-estima dos funcionários. A ISO dá muita importância à valorização do material humano. Naquele escritor russo, que você gosta de ler… como é mesmo o nome dele?”
“Fédor Dostoiévski” disse Pedro com reverência.
“… pois é, neste Dostói não sei das quantas, que devia ser um comunista de carteirinha, não dá para você tirar umas citações bacanas, do tipo mantenha o seu coração aberto para o trabalho como um girassol da Rússia, ou coisa parecida? Separa umas duas ou três frases filosóficas, como esta que eu acabei de falar, e traz pra mim botar no nosso quadro de avisos, combinado? Mas vamos ao que é urgente. Eu lhe chamei ao meu gabinete para tirar umas dúvidas que surgiram na minha cabeça, num trecho do relatório que estou escrevendo. Não que eu não sei o que esteje escrevendo. Sei muito do bem, mas uma troca de idéias sempre clareia o horizonte da mente, não é verdade? Por isso gostaria de saber se a sua definição de desenvolvimento sustentável é igual à minha…”
“E qual é a sua, delegado?”
“Primeiro diz a sua, depois eu digo a minha…” estabeleceu Digital a regra do debate.
“Bem, para mim, desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento que se desenvolve sustentando-se no desenvolvimento que se sustenta a si mesmo, me fiz claro?”
“É o que eu pensava…” disse o delegado batendo na mesa com o dedo indicador aberto.
“Mas por que você está falando de desenvolvimento sustentável num relatório de polícia?” imiscuiu-se Pedro no coração da matéria, correndo o risco de ser mandado para o quíntuplo dos infernos.
“Aí é que está o bussílis, não é assim que se diz?” retrucou Digital.
“Mais ou menos…” disse Pedro, evitando perder tempo com ss e rr.
“Pois dentre as medidas que estou sugerindo para detonar o crime organizado uma é as delegacias poderem ter renda própria, aliviando o orçamento do Estado. Desta forma sobra mais verba para combater a bandidagem,” explicou Digital.
“E como isso seria possível?” lançou Pedro a indagação que o chefe desejava ouvir, pronto para pegá-la no ar com rede de caça-palavras.
“É muito simples, pícolas: tudo o que pode ser cobrado na delegacia deve ser cobrado. Quem entrar para fazer uma queixa, paga uma taxa; quem tirar impressão digital, paga taxa; quem prestar depoimento, paga taxa; quem mijar na nossa privada imunda, paga taxa, e assim por diante. Com o dinheiro arrecadado podemos melhorar nossas condições materiais, funcionais e parafuncionais. Isso não é desenvolvimento sustentável?”
“Um belo exemplo de DS,” reconheceu Pedro.
“E o que é DS?” perguntou Digital.
“Desenvolvimento Sustentável!…” disse Pedro.
“Gostei da abreviatura. Vou até usar no meu relatório, você se importa?”
“Use-a à vontade,” aquiesceu o escrivão, abrindo mão dos seus direitos de autor. “Mas, ao que parece, a expressão desenvolvimento sustentável já saiu de moda. A vez agora é de sustentabilidade. Sustentabilidade disso, sustentabilidade daquilo, sutentabilidade pra lá, sustentabilidade pra cá. Pode-se até cantar: uma sustentabilidade chateia muita gente, duas sustentabilidades chateiam muito mais…”
“E o que é sutentabilidade?” escapou a pergunta a Digital.
“É qualidade de sustentável,” respondeu Pedro tranqüilamente.
“Só isso?”
“Só,” confirmou o escrivão. “A não ser que estejam dando outro sentido ao termo, o que também é uma mania dos inovadores de palavras.”
“Pois eu prefiro desenvolvimento sustentável — o nosso bem bolado DS. É mais… como direi?” E Digital empacou no mata-burro.
“Mais expressivo,” empurrou-o Pedro para transpor a cancela.
“Mais expressivo,” repetiu ele, retomando a argumentação interrompida: “Pense bem: se cada delegado ficar autorizado pela Secretaria de Segurança a baixar uma MP estabelecendo taxas e a sua forma de cobrança…”
“O que é uma MP?” cortou Pedro.
“Uma Medida Provisória, meu caro. Você não criou o DS? Eu estou propondo uma MP, igualzinha às que o Governo Federal baixa a torto e a esquerdo, para funicar a vida da gente. Com a MP baixada, podemos cobrar as taxas para a delegacia. Os fins justificam os meios e vamos evitar a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes. Percebeu a profundeza deste slogan: evitar a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes! Eu aprendi esta frase lá na UFES, já faz tempo, e nunca mais esqueci.”
“É um princípio que tem a cara da ISO”, comentou Pedro.
“Também acho,” confirmou Digital. “Mas o que você pensa da sugestão que eu desejo fazer?”
“Não seria melhor consultar o jurídico da secretaria para ver se é possível pôr suas idéias em prática?” arriscou o escrivão, pisando em ovos de codorna.
“Qui jurídico, mané jurídico… Esse pessoal só serve para complicar nossa vida. Você recorre a eles e lá vem um catapau cheio de frases em latim que nem eles entendem. Gostam de mostrar que têm conhecimento de calça. Vou mandar minha sugestão direta para o secretário e você vai ver o resultado! Por falar nisso, me explica uma coisinha, que sempre quis saber: por que você se escreve com c cedilha?”
“Mas, delegado, você não se escreve com c cedilha…” escandalizou-se Pedro.
“Bem que eu desconfiava… Esta nossa língua é do piru — dá laço em pingo d´água! É por causa dessas pegadinhas que os professores de português chamam ela de última flor do laço?”
“É, Digital…” disse Pedro, descoroçoado. E recitou, à Olavo Bilac, embasbacando o delegado: “Última flor do laço, inculta e bela…”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)