Era um boteco do tipo sujeira, com mesinhas de tampos de mármore encardidos sobre pés de ferro fixos no chão de cimento, dois bancos de madeira para cada uma das mesinhas.
Para Pedro, porém, o bar da Baiana era “um senhor boteco” onde graças à mão divinal da proprietária, que Pedro fazia questão de beijar antes de se abancar para o almoço, comia-se o mais saboroso jiló com angu servido na crosta terrestre.
Pelo menos era esse o prato que a proprietária reservava todas as quintas-feiras para o escrivão de polícia, recepcionado sempre com alarde e estima.
“A reverência que eu lhe devoto, seu Pedrinho, não é porque o senhor é escrivão de polícia. É porque o senhor é escritor, como Jorge Amado, um baianão que para mim só perde para Maria Betânia,” dizia a Baiana abrindo o som das vogais como filha legítima do Senhor do Bonfim, enquanto capturava o escritor-escrivão num abraço largo, de amigo dos peitos não menos largos.
Não é de admirar que no boteco da Baiana Pedro se sentisse como um orixá cercado de salamaleques, sobretudo quando se fartava do seu predileto gilozinho com angu, ah! oh! que maravilha, saravá!
Terminado o regabofe, o escrivão se dirigiu de barriga cheia e em passos lerdos ao encontro do seu turno de trabalho, na delegacia da Chapot Presvot, 272. Um Carlton blend pitado entre as passadas compassadas completava a caminhada digestiva.
No meio do caminho, eis que lhe surge Lenilda, a colega de serviço que ia consumir o seu tíquete refeição no boteco de onde Pedro estava vindo.
“Diabos me mordam, seu Pedrinho, como o senhor gosta de dizer, se não dei a maior sorte de encontrá-lo,” disse a faxineira da delegacia.
“Não é diabos me mordam que se diz, Lenilda, mas macacos me mordam! E qual o motivo da sua grande sorte?”
“Para avisar que lá na delegacia está uma confusão dos macacos.”
“Você quer dizer confusão dos diabos, minha amiga. Não troque as bolas.”
“Macacos ou diabos que seje, seu Pedrinho, se eu fosse o senhor não pisava lá.”
“Por que não, mulher?”
“Porque pegaram uma Kombi velha carregada de contrabando e tá tudo espalhado de um lado pro outro, num rubuliço só” disse Lenilda.
Pedro, porém, não seguiu o bom conselho da amiga faxineira. Seu senso de responsabilidade colocava-se acima de qualquer ameaça que o impedisse de ir trabalhar, embora ao chegar à delegacia reconhecesse a procedência do aviso recebido. A sensação que o invadiu foi a de que a delegacia havia se convertido (ou pervertido?) num mafuá generalizado.
Vencendo com certa dificuldade a barafunda de balacobacos que se amontoavam pelo chão e sobre cadeiras e mesas, o escrivão chegou a sua sala onde esperava deparar um ambiente mais ordeiro.
Mas qual o quê! Ali a bagunça parecia maior, com caixas empilhadas sobre a sua mesa de trabalho, sobre sua cadeira giratória, sobre o computador em que o escrivão digitava com engenho e arte a supra-essência dos depoimentos que tomava aos indigitados depoentes que os prestavam. Ou seja, a delegacia da Chapot Presvot, e particularmente a sala de Pedro e do escrivão Nanico, tinha se transformado num trapiche de mercadorias contrabandeadas que o delegado Digital apreendera numa Kombi que caía aos pedaços, numa batida dada em algum subcantão da Grande Vitória.
“Cacete!” disse Pedro para Pedro. “Onde vou trabalhar?”
“O trabalho agora é braçal” comentou Nanico que ouvira a fálica exclamação do companheiro de ofício. “Digital deu ordem para dar sumiço nesta bagulhada o quanto antes. Quer que todo bichinho meta mãos à obra!”
“Que todo bichinho é esse?” indagou Pedro.
“Todo o material humano e desumano que trabalha na delegacia,” respondeu Nanico. “A ordem dele foi clara: acabem com este Paraguai ainda hoje!”
“E o inventário das mercadorias, não vai ser feito?”
De novo a língua perguntadora de Pedro digitou a pergunta errada.
“Se há um conselho que eu lhe dou é que nem pense em inventariar a muambeira que rola por aqui,” disse Nanico. “A ordem é dar sumiço em tudo. Se for para arrolar inventário, o sumiço vai ficar prejudicado, ou eu estou errado na minha lógica simplista? Até porque o próprio Digital começou dando o exemplo.”
“Que exemplo?” indagou Pedro que continuava num dia de indagações pouco inspiradas, talvez reflexo da lentidão digestiva com que prazerosamente dissolvia o angu com jiló saboreado no boteco da Baiana.
“Enchendo o porta-malas do carro com celulares e laptops, e enfiando nos pés 44 um par de sapatos italianos, de couro espelhado,” disse Nanico. “Os sapatos velhos ele chutou aí pra baixo da sua mesa.”
“Filho da p…”
“Aliás, foram dois pares que Digital pegou. Um para ele, e outro para dar ao deputado Ribeirinho, o safado do padrinho que o protege,” completou Nanico.
“Filho da p…” repetiu Pedro.
“Bem, meu caro, desejo-lhe sorte!” disse Nanico fazendo menção de ir embora.
“Espera ai, colega! Você está querendo sair de mansinho me largando na fogueira?
“Minha intenção não é queimar você. Mas meu turno de trabalho terminou às 13,00 horas. Além disso, meu telhado é de vidro e não quero saber de confusão para o meu lado. E invoco o seu testemunho de que estou saindo de mãos vazias.”
“Com todos os macacos, como diria Lenilda, trocando as bolas! Se você me invoca por testemunha, por testemunha te invoco eu,” disse Pedro pegando Nanico pelo cotovelo e puxando-o para fora da sala. “Se é para sair desta zorra de delegacia em que uma apreensão de contrabando virou pilhagem policial, saiamos juntos como dois anjinhos, ao som da Ave Maria de Gonot” (e Pedro começou a assoviar a ave-maria). Depois disse: “Digital falou em sumiço? Pois sumamos, broder, sumamos conjuntamente unidos sem olhar para trás. Será que até amanhã a delegacia fica limpa?”
“Fica limpíssima ainda hoje, Pedrinho! Não vai sobrar uma abotoadura (se ainda existem abotoadoras como antigamente) para contar a história de uma Kombi cheia de muamba, sequestrada não sei como, nem aonde, que vai acabar queimada em lugar incerto e não sabido,” disse Nanico.
Assim falando, os dois escrivães bateram asas lado a lado, um empós o outro.
Um empós o outro, lado a lado?
Foi como se foram, e diabos me mordam se não for verdade.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)