Digital entrou na delegacia pingando suor, o paletó jogado sobre o ombro. Um calor sufocante castigava Vitória.
“Puxa vida, que masmorra está lá fora!” disse ele, pondo o paletó no encosto da cadeira.
“Masmorra?” perguntou Pedro, o escrivão.
“Masmorra… calor insuportável…” confirmou o delegado.
“Você está falando de uma nova espécie de mormaço?” atacou Pedro, que não perdia a oportunidade de gozar a ignorância do chefe.
“É, ‘normaço’ mesmo. O pior é que por um truz eu fui atropelado.”
Era demais para Pedro: “Não é truz, delegado, é triz que se diz.”
“Por que triz?”
“Porque é a forma correta. Significa por um pouco, por um fio. Ou seja: uma coisa que quase aconteceu, mas não aconteceu, como o seu atropelamento em pleno normaço.”
Digital deu-se um minuto de silêncio. Pensativo, tirou do bolso largo da calça um saquinho laminado de castanhas de caju, abriu-o nos dentes e despejou a metade na boca, mastigando o conteúdo com as mandibulares poderosas. Depois de algumas mastigadas, correu o dedo dentro da boca, tangenciando as bochechas, limpou a massa de castanhas acumulada nas gengivas, chupou o dedo com ruído e só então estendeu o saco pela metade para Pedro, perguntando: “Quer umas castanhas? É o meu novo ‘robe’ alimentício.”
“…brigado, delegado,” agradeceu Pedro, enquanto Digital (Deus tenha piedade dele), aliviado pela recusa do escrivão, despejou o resto das castanhas na bocarra aberta para o alto.
“Tenho comido tanta castanha que me dá até diarreia. Mas que delícia!”
Dita a frase daquela forma, Pedro ficou sem saber se a delícia a que o delegado se referia dizia respeito às castanhas ou à eliminação das próprias. Concluiu que era a ambas.
“Como eu estava dizendo, Pedro, eu prefiro falar truz. Acho que fica mais forte, mais macho, mais raçudo,” retomou Digital o assunto interrompido pela bocada crocodilesca dada nas castanhas.
“E por que truz é mais forte?” perguntou o escrivão.
“Porque vem depois de triz,” justificou o delegado.
“Como assim?” indagou Pedro.
“Veja como sobe na conjugação: traz, trez, triz, troz, truz,” cantou o delegado como se recitasse eu sou pequeno das pernas grossas.
“E por que você acha que truz é mais forte do que traz? Ao invés de subir na conjugação, como você disse, não podia ser o contrário, ir descendo e perdendo força? Então traz seria mais forte do que truz e até do que triz. Assim, seria melhor você dizer ‘por um traz eu fui atropelado,” instaurou Pedro uma variante no diálogo surrealista.
“Traz, triz ou truz você entendeu o que eu quis dizer, não entendeu?” agitou-se Digital engrandecendo a voz.
“Entendi.”
“Então voltemos ao que eu estava comentando.”
“Zás-trás,” concordou Pedro.
“Você disse zás-trás?”
“Disse,” confirmou Pedro. “Quer dizer, sem perda de tempo, imediatamente.”
Não podia ser zás-tris?” brincou Digital com um sorriso que pretendia ser de gozação.
“Agora você está a favor do triz?” aproveitou Pedro a deixa que caíra do céu da boca do delegado.
“Perguntei por perguntar, porque, de gosto, eu prefiro zás-trus,” disse Digital, a cara larga em plenilúnio zombeteiro, ou seja, uma cara que quase chegava a parecer inteligente.
“Você não acha que estamos cometendo uma injustiça atroz com o trez e o troz, deixando-os fora deste papo…?” enveredou Pedro pela ramificação dialógica que se abrira à sua frente.
“Acho sim. Mas, de qualquer maneira, você acaba de achar um lugar para o troz na nossa conversa. Só ficou de fora o trez,” comentou Digital, dando uma risada duodenal (não me perguntem o que é).
“Eu não falei troz, delegado, falei atroz, que é bem diferente,” e a risadinha duodenal transferiu-se para o gargalo de Pedro.
“Mas soa do mesmo jeito,” revidou o delegado com ar superior.
“Apenas quando confundido por ouvidos desatentos,” estocou o escrivão.
“Então como só o trez vai ficar fora do baralho, voltemos à vaca fria. Como ia dizendo, por um truz eu fui atropelado…”
“Pensando melhor, por que você não dá uma oportunidade ao trez e reinicia a conversa dizendo que por um trez você foi atropelado?” sugeriu Pedro. “Sem querer interromper…”
“Mas interrompendo…” aborreceu-se Digital.
“É apenas para que nossa conversa fique redondinha,” justificou-se o escrivão.
“Pois que seja. Por um trez eu fui acidentado…”
“Viu como encontramos uma oportunidade de truz para o desamparado trez?” regozijou-se Pedro.
“Quer dizer que você já está usando o truz?” inquiriu Digital com uma cara que pretendia ser de deboche.
“Este truz não é o seu truz, delegado. Eu falei de truz. ”
“É de truz, mas não é truz? Só porque foi você que usou, ele deixou de ser o meu truz e passou a ser o seu? Sem essa, Pedro!” irritou-se Digital.
“Mas realmente não é o mesmo truz. Este de truz, que apareceu agora, quer dizer de primeira. Solução de truz é, portanto, uma solução de primeira, que veio a calhar e entrou a jeito neste nosso diálogo edificante e construtivo…”
“Chega, Pedro!, que já estou fedendo a cuca.”
“Está bem, delegado, mas não é fedendo, é fendendo, que quer dizer partindo. Voltemos, porém, ao começo da conversa. Como foi o acidente que quase o vitimou?”
“Eu saltei do táxi, em frente da delegacia, porque deixei meu carro na revisão, e um viado passou com uma caminhonete rente às minhas pernas, a toda velocidade. Ainda bem que decorei o número da placa, para fender-lhe a cuca… Empreguei o termo certo?”
“Melhor do que a expressão chula correspondente a fender a cuca que você poderia ter usado… E qual foi a placa que você decorou?”
“FBE9285.”
“Epa, Digital, esta é a placa do meu carro!” surpreendeu-se Pedro.
“Do seu carro?”
“É, do carro que eu deixei embaixo aí do caramanchão da delegacia.”
“Você tem certeza?”
“Então eu não sei a placa do meu carro?”
“Pícolas, e por que eu decorei a sua placa?”
“Talvez porque os dois números fossem parecidos, ou talvez porque você tivesse visto por último o número da minha placa, ou talvez ainda devido à masmorra que reina lá fora…”
“Mas agora vai ser difícil saber qual foi o fedepê que quase me atropelou.”
“Mas temos de reconhecer que por um truz você conseguiu decorar a placa certa,” disse Pedro meio sorridente.
“Na verdade, acho que foi por um triz, porque se fosse por um truz a placa que eu decorei seria a verdadeira,” defendeu-se Digital.
“Dentro do seu ponto de vista sim, dentro do meu não,” recarregou Pedro as baterias.
“Mas o que vale é o meu…”
“… porque você é o delegado…”
“ o delegado e o quase atropelado. Portanto, vale o que eu digo, e tamos conversado.”
“…tamos ou temos?” ironizou Pedro.
“Temos ou tamos, pra mim é a mesma coisa… Ou você acha que não?”
“Acho que sim…”
“Então, temos dito!”
“Temos, por que assim falou Zaratustra…” ironizou Pedro.
“Quem é este Zaratruz?” perguntou Digital.
“Pensei que você fosse dizer Zaratriz”, provocou Pedro.
“Eu prefiro dizer Zaratruz. Acho mais forte.”
‘Por que mais forte…?”
“Porque…”
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)