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Discurso proferido no Senado Federal, a 23 de maio de 1948, sobre a questão de limites entre Minas e Espírito Santo

Bem compreendo, Snr. Presidente, a visível reação de perplexidade e descrença com que o Senado da República, em sua alta e serena majestade, acolheu a notícia da possibilidade iminente de um conflito armado entre duas unidades irmãs da nossa mesma Federação, compelidas por um antagonismo inconciliável no acerto de suas linhas fronteiriças. Reconheço até a procedência de certas críticas apressadas que mal escondem, em seus disfarces, a incompreensão e o espanto provocados pela só ameaça de uma porfia assim tão lamentável e inglória.

Em verdade, Snr. Presidente, o fato em si pode parecer, à primeira vista, destituído de maior importância e sem conteúdo de relevante significação nacional. Aparenta mesmo, na exaltação momentânea dos ressentimentos em conflito, a inofensiva discórdia entre irmãos desavindos, eventualmente, pelos impulsos de pequenos regionalismos sem horizontes. Mas o verdadeiro drama desse inacreditável conflito reside, justamente, na indiferença com que a Nação assiste, estarrecida, à reincidência dessa periódica controvérsia, e permite que se perpetue, por séculos, indesejável motivo de atrito entre brasileiros, oriundo da imprecisão geográfica no estabelecimento de uma divisória comum aos dois Estados. E mais do que isso, a clamorosa injustiça que transparece da desalentadora apatia dos Poderes Públicos, quando se trata de reconhecer o insofismável direito de um pequeno Estado a uma nesga de território legitimamente seu, mas que a incompreensão e intolerância de certos políticos de um vizinho poderoso e forte teimam e porfiam em disputar-lhe a posse.

É tempo, por isso, de procurarmos esclarecer aqui, com dados positivos, essa secular questão. De expormos, serenamente, os nossos direitos e de alinharmos os sólidos argumentos que militam em nosso favor para o conhecimento do Senado e perfeito julgamento da consciência nacional.

O Espírito Santo, Snr. Presidente, na plena segurança de seu iniludível direito, não receia contestações, nem teme arbitragens, porque confia na legitimidade de suas pretensões e sabe que a limpidez de sua causa há de prevalecer sempre em qualquer instância desapaixonada e serena.

Façamos, pois, ligeiro retrospecto às origens da nossa História. Assim reza a Carta Régia de lº de janeiro de 1534 pela qual El Rei D. João III, premiando a dedicação do fidalgo português Vasco Fernandes Coutinho, lhe conferia o alto privilégio de primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo:

Hei por bem e me apraz de lhe fazer como de feito por esta presente carta faço, mercê e irrevogável doação entre vivos, valedoura deste dia para todo o sempre, de juro e de herdade para ele e todos os seus filhos, netos, herdeiros e sucessores que após ele vierem, assim descendentes, como transversais e colaterais, segundo adiante irá declarado, de cinquenta léguas de terra na dita costa do Brasil, as quais se começarão na parte em que acabarem as cinqüenta léguas de que tenho feito mercê a Pero do Campo Tourinho e correrão para a banda do sul, quanto couber nas ditas cinquenta léguas, entrando nesta capitania quaisquer ilhas que houver até dez léguas, que assim faço mercê ao dito Vasco Fernandes, as quais cinquenta léguas se estenderão e serão de largo ao longo da costa e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme a dentro, tanto quanto puderem entrar e for de minha conquista.

Nos termos dessa doação, estendia-se o território da nova Capitania “pelo sertão e terra firme a dentro”, até confinar-se com as possessões espanholas situadas do outro lado do meridiano estabelecido, ainda em 1494, pelo Papa Alexandre VI, no célebre Tratado de Tordesilhas, como limite máximo às conquistas da coroa portuguesa. Isso importa em dizer que a linha de demarcação da nossa Capitania, vencendo a distância para oeste, perdia-se além do rio Paraná, englobando em toda a sua extensão longitudinal o mesmo chão em que hoje se desdobram, para orgulho nosso, os desenhos geográficos de Minas Gerais, parte de São Paulo e Goiás, e ainda ligeira fração do longínquo Estado de Mato Grosso. Esse é um fato histórico reconhecido pelos melhores cronistas e comprovado pelos mais distantes mapas ainda do séculos XVI. Mesmo, entretanto, que se desse ao texto primitivo da Carta Régia interpretação menos lata, como querem alguns estudiosos do assunto, e se considerem os limites da Capitania enquadrados em cinqüenta léguas de costa e, “na mesma largura”, cinqüenta léguas de sertão, sua área total seria de 90.000 quilômetros quadrados, ou seja aproximadamente o dobro do nosso exíguo território atual, ameaçado ainda de nova mutilação.

Enquanto, porém, no litoral, os primeiros povoadores lançavam os alicerces da conquista lusitana, e repeliam, com indômita bravura, a cobiça dos invasores, impedindo a desintegração da Colônia e garantindo a sua sobrevivência unitária, várias penetrações se processavam mais tarde tangidas pelo espírito aventureiro dos bandeirantes de outras capitanias do sul, que assim preparavam, sem querer, as origens de novos fracionamentos geográficos na vastidão infinita da Pátria em formação. Em decorrência desse fato a Carta Régia de 23 de novembro de 1709 criava a Capitania geral de “São Paulo e Minas de Ouro”, dando início às sucessivas mutilações que foram, aos poucos, reduzindo e desbastando o aspecto físico da velha e heroica donataria de Vasco Fernandes Coutinho.

Foi, entretanto, mais tarde, quase dois séculos depois da criação da nossa Capitania, pelo Alvará de 2 de dezembro de 1720, concedendo livre autonomia a Minas Gerais e separando-a de São Paulo, que, praticamente, surgia, pela primeira vez, o embrião letal dessa pertinaz dissidência lindeira, em virtude do silêncio original sobre a exata silhueta das duas Capitanias. E foi para corrigir tal deficiência que se reuniram, em 8 de outubro de 1800, no Quartel do Porto do Souza, à margem direita do rio Doce, os governadores das duas Capitanias, Bernardo José Lorena, de Minas Gerais, e Antonio Marciano Pires da Silva Pontes, do Espírito Santo, ali firmando um Auto de Demarcação que, mais tarde, aprovado pela Carta Régia de 4 de dezembro de 1816, passava a ter força de lei. Embora por esse documento perdesse o Espírito Santo cerca de 800 léguas quadradas do seu território e se levantassem na Capitania veementes protestos contra a estranha liberalidade do Governador, mineiro de nascimento, que lhe dirigia os destinos, conformaram-se os capixabas com a nova redução territorial, submetendo-se assim ao império da Lei. Estabelecia aquele Auto, na parte relativa às linhas fronteiriças:

Havendo-se de demarcar os limites das duas Capitanias confinantes, fossem estes pelo espigão que corre do N. ao S. entre os rios Guandu e Manhuaçu, e não pela corrente do rio, por ser esta de sua natureza tortuosa e incômoda para a boa guarda, que do dito espigão, águas vertentes para o Guandu, seja distrito da Capitania ou nova província do Espírito Santo, e que pela parte N. do rio Doce, servisse de demarcação a serra do Souza que tem a sua testa elevada defronte deste Quartel e Porto do Souza, e dele vai acompanhando o rio Doce até confrontar com o espigão acima referido ou serreta que separa as vertentes dos dois rios Manhuaçu e Guandu.

Era assim, apesar de suas imprecisões e deficiências, a primeira lei reguladora dos limites das duas Capitanias na região até então conhecida. E seria depois, não obstante os bons propósitos daqueles Governadores, e do espírito de concordância do povo capixaba, apenas o prólogo de seu longo e interminável calvário.

Daí em diante, um sentido de aproximação incessante e contínua rumo ao litoral marca a constância das penetrações mineiras em solo capixaba, como se estranha nostalgia de velhas e remotas aventuras náuticas despertasse o espírito aventureiro da nobre gente montanhesa e a compelisse, inexoravelmente, para os largos caminhos do oceano.

De fato, em 1860, tentava Minas estender os seus domínios ao sul do Espírito Santo, criando a freguesia e o distrito de Paz de S. Pedro de Rates onde já existiam as freguesias espírito-santenses de Alegre e S. Miguel do Veado. Mais tarde, em 1879, novas incursões, já agora em Rio Pardo, pretendiam ampliar os limites do Município mineiro de Manhuaçu à custa de solo capixaba. A ação pronta e vigilante do Governo Imperial que, pelo decreto nº 3.043, de janeiro de 1863, reconhecia o direito do Espírito Santo, no primeiro caso, e a prudência e espírito de justiça do grande Teófilo Otoni que então governava Minas, no segundo incidente, fizeram recuar aquelas investidas e impediram que se concretizassem as duas novas tentativas de retaliação do nosso território.

Fora, entretanto, uma simples trégua, breve momento de silêncio na infindável sinfonia dessa estranha marcha de conquista, pois, já em 1892, ressoavam, de novo, os mesmos acordes, agora em toda a faixa lindeira ao sul do Rio Doce. Trocam-se ofícios entre os governadores e exaltam-se os ânimos das populações fronteiras. Em 18 de novembro de 1895, pela lei nº 141, é o governo do Espírito Santo autorizado a nomear um representante para integrar a Comissão Mista que deveria dirimir a controvérsia.

Entrávamos assim em nova fase de entendimentos diretos, e teríamos ainda que percorrer ásperos e tortuosos caminhos até chegarmos às clareiras finais de uma solução conciliatória e definitiva.

Só em 1903, contudo, medidas concretas foram adotadas pelos governantes estaduais com a nomeação dos respectivos representantes, tendo sido escolhidos o deputado Bernardo Horta de Araujo, pelo Espírito Santo, e Antonio Augusto de Lima, por Minas Gerais. Em data de 27 de fevereiro de 1905, após fastidiosos estudos, firmavam eles a “Ata das Deliberações dos representantes dos Estados do Espírito Santo e Minas Gerais sobre as questões dos limites respectivos”. Era a seguinte a divisória proposta naquele documento:

Pelo rio Preto, braço principal do Itabapoana, até a serra do Caparaó ou Chibata; daí pelo ribeirão José Pedro até sua embocadura no Manhuaçu; daí pelo serrote divisor das águas dos ribeirões S. Manoel e Capim até a serra do Espigão e desta até o rio Doce, de acordo com o auto de 8 de outubro de 1800. Também para que fique evitada qualquer questão futura de limites ao norte do rio Doce, resolvem, em virtude de cláusula primeira, propor que nessa zona seja o divisório a serra dos Aimorés, até o rio Mucuri.

O ponto de discórdia, porém, ainda, não alcançara as regiões então inóspitas e desconhecidas que se estendiam até às grotas e socavões da serra dos Aimorés. Os olhos cobiçosos de Minas fitavam apenas o território situado ao sul do rio Doce e especialmente o vale dos rio José Pedro e Manhuaçu, inclusive a povoação do Príncipe por onde, quase um século antes, passara a estrada de penetração construída pelo Governador capixaba Francisco Alberto Rubim, a mando de D. João VI, tendo como objetivo ligar Vitória a Ouro Preto. Por isso o governo mineiro repele a sugestão contida naquela Ata e encaminha ao governo do Espírito Santo, em ofício de 7 de agosto de 1905, as seguintes bases de um projeto de lei para dirimir a contenda:

Art. 1º Os limites entre os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais são definitivamente fixados de acordo com a presente lei:
§ 1º Ao norte do rio Doce servirá de divisa a serra dos Aimorés.
§ 2º A divisa a leste de Minas Gerais e a oeste do Espírito Santo corre pela serra Geral, desde a serra do Caparaó até o morro do Espigão, separando as vertentes orientais dos rio Itapemirim, Pardo e Guandu, das vertentes ocidentais do José Pedro e Manhuaçu.
Art. 2º Fica aprovada a linha demarcada pelo decreto nº 3.043, de 10 de janeiro de 1863.

A divisória proposta, para o norte do rio Doce, continuava a ser a Cordilheira dos Aimorés, como ponto pacifico das reivindicações mineiras. Mas em face da divergência criada no projeto a respeito do critério a se fixar para o desenvolvimento da linha lindeira ao sul daquele rio, congelava-se o assunto e entrava ele em ponto morto.

Reaberto, em 1908, estabelece-se preliminarmente, um acordo, firmado por Manoel Thomáz de Carvalho Brito em nome de Minas Gerais e Galdino Loreto, como representante do Espírito Santo. Convencionava-se aí, pela primeira vez, o sistema de arbitramento e lançava-se a ideia da sentença arbitral irrecorrível por qualquer dos Estados. Não vingou porém a sugestão. E só mais tarde novos entendimentos se processam entre os governos dos Estados litigantes, concluídos pelo acordo firmado, em 14 de julho de 1911, pelo governante mineiro, Presidente Julio Bueno Brandão e pelo representante do governo espírito-santense, Dr. Bernardino de Souza Monteiro, no qual se adotavam providências sensatas para o levantamento topográfico da região, indicando para isso cada Estado, engenheiro de sua confiança. 86 após a conclusão das plantas, se os governantes não chegassem a um resultado conciliador, se recorreria ao juízo arbitral preconizado pela Convenção de 1908.

Assim, onde falhara a limpidez do Direito, iria pronunciar-se a segurança matemática da Engenharia, e na discordância insanável dos juristas, tentariam uma solução de concórdia os métodos científicos e positivos dos geógrafos. Os ilustres engenheiros Alvaro Adolpho da Silveira e Ceciliano Abel de Almeida, respectivamente como representantes dos Estados de Minas e Espírito Santo, desincumbiram-se exemplarmente da missão que lhes fora cometida e com notável espírito de conciliação levantaram um perfeito desenho da configuração do terreno, propiciando assim elementos para o cordial entendimento dos governantes.

Repetindo então o gesto praticado um século antes pelo Governador Silva Pontes, e renovando as tendências amistosas e pacificadoras do povo capixaba, o Presidente Jerônimo de Souza Monteiro deixa o seu Estado e vai pessoalmente a Belo Horizonte para, num entendimento franco e generoso com o Presidente Julio Bueno Brandão, solucionar, de uma vez, aquela velha e incômoda divergência. Inúteis, porém, foram os seus esforços, e novamente infrutíferos os propósitos reconciliadores. Teimosa e obstinada permanecia de pé a ingrata discordância como um desafio lançado à argúcia dos homens para o melhor entrelaçamento dos laços de amizade entre os dois Estados. Mas, embora inconciliáveis na defesa dos seus respectivos pontos de vista, o patriotismo e a serenidade daqueles ilustres estadistas souberam encontrar uma fórmula de arbitramento que seria o denominador comum de suas divergências.

E se voltaram, naquele passo, para o gênio tutelar que pudera resguardar e definir, na segurança de suas linhas e na serenidade de sua alta soberania, as sagradas e invioláveis fronteiras da Pátria, entregando a solução do litígio à suprema arbitragem do Barão do Rio Branco.

Pela sua singular relevância e pelos superiores propósitos de congraçamento que o inspiraram, vamos reproduzir aqui o texto integral daquele solene compromisso que demonstra, cabalmente, as dúvidas então suscitadas sobre a exatidão das divisas na região contestada que, àquela época, se resumiam, apenas, ao território situado ao sul do Rio Doce:

Convênio de 1911


Convênio celebrado entre os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais para a solução das questões de limites territoriais entre os mesmos pendentes.

Aos dezoito dias do mês de Dezembro de mil novecentos e onze, nesta Cidade de Belo Horizonte e no palácio da Presidência do Estado de Minas Gerais, presentes o Exmo. Snr. Dr. Jerônimo de Souza Monteiro e o Exmo. Snr..Julio Bueno Brandão, presidente do Estado de Minas Gerais, um e outro no uso das autorizações que lhes outorgaram os poderes legislativos dos dois Estados, acordam e firmam o seguinte convênio, para pôr termo definitivo às questões de limites entre os referidos Estados:
I – Tem caráter de definitivo o limite de sudoeste do Estado do Espírito Santo, que foi provisoriamente definido pelo decreto Imperial nº 3.043, de 10 de janeiro de 1863, entre os municípios de Itapemirim e S. Paulo de Muriaé.
II – Ficam sujeitos a decisão arbitral: a) os limites na região definida como contestada pelo convênio de 14 de julho do corrente ano e topograficamente levantada pelos engenheiros incumbidos da diligência técnica determinada por esse convênio; b) os limites ao norte do rio Doce unicamente na serra do Souza ou dos Aimorés, pois que onde esta serra for contínua, pela linha de suas cumeadas correrão os limites até o rio Mucuri.
III – É escolhido árbitro o Exmo. Snr. Barão do Rio Branco. Na hipótese do árbitro escolhido se recusar ao encargo que lhe é cometido, convencionam desde já os Estados contratantes a constituição de um tribunal arbitral, de que será presidente com voto o Exmo. Snr. Marquês de Paranaguá, e cujos dois outros membros serão, dentro de sessenta dias contados da não aceitação do árbitro, escolhidos a aprazimento das partes, para o que cada um proporá dois nomes para a escolha de um, da mesma forma se procedendo na escolha de dois substitutos, não podendo ser indicado para substituto o nome proposto e não escolhido para membro efetivo do tribunal. No caso de substituição do Exmo. Snr. Marquês de Paranaguá, os dois membros nomeados do tribunal escolherão o terceiro.
IV – A decisão arbitral será proferida pelo alegado e provado pelas partes; se o árbitro, ou o tribunal, não encontrar elementos legais de decidir, poderá resolver pelos preceitos de equidade aceitos em casos idênticos.
V – O árbitro ou o relator do arbitral, logo que aprovado este convênio pelo Congresso Federal, fixará o prazo para que os advogados das duas partes contratantes apresentem suas alegações e provas e para que ofereçam as suas réplicas.
VI – Correrão repartidas e igualmente pelos dois Estados as despesas do juízo arbitral, inclusive a das diligências técnicas que porventura o árbitro ou o tribunal determine por engenheiro ou engenheiros de sua designação.
VII – No exclusivo intuito de pacificar a região contestada, definida no convênio de 14 de julho do corrente ano, fica determinada nela a seguinte linha de delimitação provisória: O Estado de Minas Gerais exercerá jurisdição plena e exclusivamente na área compreendida entre o rio Doce, rio Manhuaçu, o riacho ou vala do Travessão, até a linha de divisão das águas dos rios Guandu e Manhuaçu, e por esta linha até o rio Doce; o Estado do Espírito Santo exercerá jurisdição plena e exclusiva em toda a restante parte da região contestada. Esta demarcação provisória, que entrará desde já em vigor, e será mantida até decisão final, não poderá ser invocada por nenhuma das partes como argumento novo, demonstrativo de posse, e nem pelo árbitro ou tribunal como fundamento de decisão por equidade.
VIII – O presente convênio será submetido à aprovação do Congresso do Estado do Espírito Santo, ora reunido, e ao de Minas Gerais logo que se reúna; aprovado por ambos os congressos estaduais, será sujeito à aprovação do Congresso Federal.
IX – A decisão arbitral obrigará, para todos os efeitos, logo que comunicada aos governos dos Estados pactuantes. E por assim terem convencionado firmam o presente em seis exemplares, um para o arquivo de cada Estado interessado, um para cada Congresso Estadual, um para ser presente ao Congresso Federal e um para o árbitro ou tribunal arbitral. Jerônimo de Souza Monteiro, presidente do Estado do Espírito Santo, Julio Bueno Brandão, presidente do Estado de Minas Gerais, Bernardino de Souza Monteiro, F. Mendes Pimentel, Ceciliano Abel de Almeida, Alvaro A. da Silveira, Ubaldo Ramalhete Maia, Delphini Moreira da Costa Ribeiro, Arthur da Silva Bernardes, José Gonçalves de Souza, Alexandre Calmon, Julio Bueno Brandão Filho, dr. Candido Libânio, Raymundo F. de Paula Xavier, dr. Samuel Libânio, João Lucio Brandão, Castorino Magalhães, M. F. Vieira Cristo, João Luiz Alves, Joviano de Melo.

A simples leitura desse austero documento evidencia, de sobejo, que o seu objetivo primordial era o de dirimir o conflito de jurisdição instalado ao sul do rio Doce, no intuito de pacificar a região então conflagrada, conforme as linhas constantes da cláusula sétima. Quanto à região que hoje discutimos, ainda indesbravada àquele tempo, eram acordes os dois Estados em reconhecer a divisa pela linha de fastígio da serra dos Aimorés. E apenas se submetiam à decisão arbitral dúvidas que, porventura, surgissem na cordilheira, “pois que, onde esta serra for continua, pela linha de suas cumeadas correrão os limites até o rio Mucuri” reza a cláusula II, letra b, do Convênio.

Esse documento, Snr. Presidente, pelo alto conteúdo de sua inspiração jurídica, como pela nobreza dos propósitos de confraternização que demonstra, pelas culminâncias do nume tutelar das próprias fronteiras pátrias que evoca para árbitro, como pelo justo prestígio nacional que recobre algumas das respeitáveis figuras de seus signatários, esse documento não precisaria de qualquer chancela legal para confirmar-lhe a autoridade porque, só por si, valeria como diploma indiscutível de solene compromisso. Apressou-se, no entanto, o Espírito Santo, pela lei nº 784, de 31 de dezembro do mesmo ano, em aprovar o Convênio, o mesmo fazendo o Governo mineiro, algum tempo depois, pela lei nº 594, de 5 de setembro de 1912. E revestido ainda de maior solenidade, na conformidade da cláusula oitava, foi o Convênio também aprovado pela lei federal nº 2.699, de 26 de dezembro de 1912, firmada pelo ilustre Marechal Hermes da Fonseca.

Dir-se-ia que a questão chegara, enfim, a uma solução definitiva. Que Minas Gerais e o Espírito Santo, resolvida a pendência, retomariam, de futuro, sem outros sobressaltos, a sua alegre e descuidada convivência de irmãos. Tal porém não se deu. Quis o destino que a 9 de fevereiro de 1912 falecesse um dos árbitros apontados, o Marquês de Paranaguá, e dias depois, a 12 do mesmo mês, desaparecesse também a figura oracular de Rio Branco.

Aquele que, sublimando a legitima vocação americana, conseguira, por meio de uma política de justiça, desprendimento e correção, fixar, definitivamente os contornos geográficos das nossas fronteiras externas, modelando a própria configuração inviolável e eterna do território pátrio, não chegaria a pronunciar-se decisivamente para resolver de uma vez, as imprecisões de uma simples linha divisória tendente a realçar apenas a segurança do desenho físico de duas unidades federativas no mesmo solo, uno, intangível e sagrado da nossa Pátria.

Não obstante essa irreparável ocorrência, o Convênio prosseguia, lentamente embora, na consecução de seus altos objetivos. Em dezembro de 1913, constituía-se o Tribunal Arbitral composto dos representantes de Minas Gerais e Espírito Santo, respectivamente, Drs. Prudente de Morais Filho e Antonio J. Pires de C. de Albuquerque, que, de comum acordo elegeram para presidente o Dr. Canuto José Saraiva, Ministro do Supremo Tribunal Federal. E a 30 de novembro de 1914, proferiu esse Tribunal a sua decisão definitiva. Decisão injusta, parcial, indefensável que retrata, como um símbolo, o velho adágio de Lafontaine: La raison du plus fort, est souvent la meilleur, e pela qual dos 4.349 quilômetros quadrados que representavam a zona litigiosa, 4.071 foram atribuídos a Minas Gerais e somente 278 ao pequeno Espírito Santo. Repetiu-se, assim, naquele laudo arbitral, o mesmo critério de injustiça do auto de 1800 em que perdêramos área aproximadamente idêntica. A velha Capitania de Vasco Fernandes Coutinho, cujos limites primitivos confinavam mesmo com os horizontes das terras conquistadas pela coroa espanhola, transformada em Província no Império, e sob a forma republicana de Estado federativo, via fugir-lhe o terreno sob os pés, minguando e diminuindo pela ação mutiladora de capitulações sucessivas. E quatro séculos depois do início de sua colonização, pelo chamado laudo arbitral de 1914, tinha o seu território reduzido, por nova mutilação, a cerca de 45.000 quilômetros quadrados, área insignificante que representa a metade do seu primitivo território, mesmo considerado o critério errôneo de cinqüenta léguas quadradas da primitiva donataria.

Razões de sobra tinha, pois, o Espírito Santo em rebelar-se contra aquela singular decisão arbitral, antes diríamos arbitrária, que concedera a Minas, território situado fora dos limites da então zona contestada, que nunca lhe pertencera, nem jamais pleiteara antes. A corrente dos rios Guandu e Manhuaçu, que o auto de demarcação de 1800 julgara imprecisa e desaconselhável à conservação da rigidez jurídica dos limites “por ser de sua natureza tortuosa e incômoda para a boa guarda”, foi transposta e ultrapassada, perdendo-se a nova divisa, sempre para leste, pelos vagos e indecisos caminhos do divisor de suas águas até às últimas, vacilantes e incertas nascentes.

Não poderia conformar-se o pequeno Estado com tão grande iniquidade que lhe doía como vergasta e o humilhava como uma usurpação. E fez o que deveria fazer: recorreu ao Supremo Tribunal Federal, sob a forma de uma ação de nulidade, porque confiava na suprema justiça de sua causa. Esse comezinho ato de salvaguarda dos nossos direitos, que não poderia ser ofensa porque representava, apenas, um imperativo de consciência, feriu as susceptibilidades mineiras como gesto de rebeldia. Mas a palavra apostolar de Ruy Barbosa, na plena ressonância de sua nobre vocação de patrocinador das justas causas dos fracos contra os poderosos, fulminou a lenda da irrevogabilidade do laudo, pontificando, com autoridade e costumeiro fulgor em sua luminosa “Petição Inicial”: “Para que nos fosse lícito julgarmos do rompimento de um compromisso arbitral por uma das partes, era mister que lhe não assistisse, e com bons fundamentos, quer ante a moral, quer ante a honra, o direito de o fazerem”.

Enquanto isso o governo mineiro, mal tem conhecimento da decisão arbitral, acorre pressuroso à região em litígio, e decide unilateralmente a questão, ocupando manu-militari a comarca de Marechal Hermes. E tal fora mesmo o ímpeto da arrancada que ultrapassou até a divisória estabelecida no próprio laudo pela ocupação das cabeceiras dos córregos Crisciúma e Laranja da Terra, cuja região só foi devolvida ao Espírito Santo quinze anos depois…

Estava assim solucionada a velha controvérsia ao sul do rio Doce. O argumento irretorquível da força operara o milagre. O fato consumado, tão decisivo na apatia dos nossos hábitos, faria a resto. Perdera o Espírito Santo mais de 10% de seu território.

A ação de nulidade proposta perante o Supremo Tribunal permanece paralisada; tomba também o nosso grande patrono, e a questão cai novamente em ponto morto. Consumara-se o sacrifício do pequeno Estado que se conforma, outra vez, com a perda do território meridional, e, fiado na própria decisão do laudo que lhe fora inteiramente desfavorável, atira-se ao trabalho fecundo de colonizar a zona norte do rio Doce. Porque a sentença aí era clara, perfeita, indiscutível. Confirmava, nesse ponto, toda a tradição histórica e cartográfica anterior, estava em concordância com o auto de demarcação de 1300 e era então estreme de qualquer dúvida. Assim rezava a sentença de 1914:

em vista do exposto e atendendo ao mais que consta das Memórias e documentos, o Tribunal Arbitral resolve e decide que os limites entre os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo correm:
Ao norte do rio Doce, pela linha de cumeadas da serra do Souza ou dos Aimorés, preenchidas por linhas retas as soluções de continuidade.

Restava, pois, ao Espírito Santo tomar posse, mansa e pacificamente, da vasta região, naquele tempo ainda totalmente estrangeira para os dois Estados, porque constituía território virgem, no qual pompeava, em toda a sua exuberância tropical, a selva bruta e agressiva, e onde moravam, apenas, os últimos remanescentes das velhas “tribos dos homens nus”, legítimos donos e possuidores das florestas, os bravos e indomáveis guerreiros aimorés. Urgia, pois, que o nosso Estado, revivendo o episódio histórico das heroicas bandeiras de outrora, desbravasse o sertão e vencesse a distância, ferindo a virgindade agressiva da selva, e ali plantando novos marcos de civilização, criasse também novo “espaço social” necessário dentro do “espaço político” de suas legítimas e indiscutíveis fronteiras. Não poderíamos pensar nunca que aquela região que nos fora entregue por um laudo adverso que reconhecia, assim, legítima tradição histórica, confirmada depois pelo sinete de tão solenes compromissos; que conquistáramos palmo a palmo vencendo a natureza ardente dos trópicos e dilatando os domínios da civilização no sentido das latitudes; que nos pertencia assim, podemos dizer, par droit de naissance et par droit de conquéte, fosse mais tarde alvo de cobiça do grande Estado vizinho, que nos viria a discutir os direitos e disputar a posse.

Havia, entretanto, ali, além dos velhos pergaminhos históricos difíceis de contestar, um sério obstáculo geográfico que não seria fácil transpor. Arrancando da terra e subindo aos céus, como se fora uma prece transformada em pedra que se interrompesse nas alturas, ali estava, imponente e eterna, a serra dos Aimorés. Não poderia haver dúvidas futuras sobre a exatidão da linha divisória entre os dois Estados vizinhos. “Os limites, em geral, se acertam através dos sinais que a natureza se incumbe de estabelecer. Tanto no curso rumoroso de um rio, como no marco monumental de uma cordilheira, é o próprio Deus quem predetermina. Quando, porém, duas soberanias se encontram no meio da imensidade de uma planície, é dos homens, então, que depende o acordo, para firmar, num chão igual, vontades diferentes”, disse, certa vez, em formosa oração, que é verdadeira página de antologia, o nosso ilustre e nobre colega Senador Marcondes Filho.

E ali, naquela região selvagem e inóspita, perdida nos imensos espaços vazios da nossa imprecisa cartografia de então, erguia-se, de fato, na imponência de sua massa granítica e no esplendor de seus cumes solitários, a majestosa cordilheira dos Aimorés que Deus, como que incumbira de ser a guardiã permanente e indestrutível das nossas fronteiras ocidentais. Aos homens caberia apenas respeitar-lhe os desígnios e retificar-lhe o sentido conciliador, harmonizando os seus interesses, em consonância pacifica, ao longo de suas escarpadas linhas demarcatórias. Tal porém não aconteceu, e a questão que ainda hoje se discute, a ingrata controvérsia que ora divide novamente mineiros e capixabas tem lugar, precisamente, pela disputa de território situado bem a leste da Serra dos Aimorés, que ficou para trás, muito ao longe, sem meios de impedir que os nossos nobres patrícios de Minas Gerais lhes flanqueassem as alturas, e, imitando as correntes dos rios que ali nascem, descessem pelas planícies espírito-santenses, rumo ao oceano, estuário distante de suas velhas e revelhas aspirações.

Daí porque, Sr. Presidente, tanto ardor e tanta ênfase. põem os capixabas na defesa de seus pontos de vista nesta secular e inglória questão. E também porque o seu nobre e sereno Governador Carlos Monteiro Lindenberg, no desespero de encontrar uma fórmula conciliatória em que se reconheça a justiça meridiana da nossa causa, foi compelido a lançar mão do recurso extremo da força para fazer respeitar os nossos direitos que os vizinhos irmãos do Oeste teimam em ignorar e os Altos Poderes da República inexplicavelmente não revalidam, persistindo em manter nessa desoladora contenda a imperdoável inércia de uma impassível política de braços cruzados.

Sr. Presidente. “A luta pelo direito é — no conceito de Ihering — a poesia do caráter”. E o Espírito Santo, espoliado pelas retaliações sucessivas de seu território, desprotegido, indefeso e sozinho nas angústias de seu desespero, encontrará sempre, sem sombras de dúvidas, no sacrário das mais nobres virtudes de caráter de seu povo sereno, tolerante e pacífico, a pertinácia e bravura necessárias para continuar lutando, sem desfalecimentos, contra tudo e contra todos, pela preservação de seus mais puros e impostergáveis direitos. Mesmo porque o novo sacrifício que nos querem impor, da ordem de 10.000 quilômetros quadrados, reduziria o nosso já insignificante território a cerca de 35.000 kms. quadrados, ou seja, aproximadamente, a área geográfica da Ilha de Marajó.

Lutamos, assim, até mesmo pela nossa própria sobrevivência. E nessas circunstâncias o vigor da nossa resistência não conhecerá limites, nem receará sacrifícios, porque terá em si mesmo o ímpeto desassombrado dos desesperos extremos. Que a Nação tenha consciência dessa possibilidade cruel. Que os Poderes Públicos reflitam, serenamente, sobre as graves conseqüências de tais eventualidades.

Que o nobre e generoso povo mineiro se capacite, afinal, dos imprevisíveis resultados desses negros presságios, e que os homens de responsabilidade daquele grande Estado, sem favor, pelas suas gloriosas tradições e pela nobreza sem par de sua gente, verdadeiro crisol em que repousam as melhores virtudes da raça que esses homens e essa gente, sem cor política e sem partidarismos descabidos no caso, visitem a região, examinem o terreno, e comparem os morros esparsos, distantes e perdidos na imensidão da planície, que os seus geógrafos persistem em denominar Serra dos Aimorés, com a imponente cordilheira que se levanta bem atrás, serena. e altaneira, como marco monumental das nossas lindes fronteiriças.

Assim, e só assim, se capacitarão do erro em que incidem, e veremos, sem mágoas nem ressentimentos, esvaecer-se como uma sombra a origem desse estranho desentendimento, restabelecendo-se em toda a sua plenitude, a tranquila e fraterna convivência entre mineiros e capixabas, sonho de várias gerações de brasileiros de ambos os Estados.

Aquela a advertência e este o apelo veemente que desejei formular, das culminâncias desta tribuna, ao transcurso do dia 23 de Maio, data em que se comemora, em todo o solo capixaba, o aniversário do início de sua colonização, já distanciada de nós em cerca de 414 anos, como pálida homenagem de modesto espírito-santense que, sem ocultar a crescente veneração pela sua terra natal, possui, acima de tudo, o sentimento maior de amor ao Brasil, guarda indestrutível confiança em seus gloriosos destinos, e conserva, viva e palpitante, como fanal imperecível, a Fé mais profunda nos supremos e fulgurantes pronunciamentos da Justiça, quando da decisão final dessa malfadada desinteligência, tão irritante e pertinaz na vida efêmera dos homens, quanto descabida e inútil se apreciada sob a luz fulgurante da majestosa eternidade da Pátria.

Muito bem; muito bem! palmas.

(Publicado no Diário do Congresso Nacional, em 24/5/1948)

[Extraído do livro A serviço do Espírito Santo, discursos, de Jones dos Santos Neves, Vitória, 1954.]

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Jones dos Santos Neves graduou-se em Farmácia no Rio de Janeiro e, de volta a Vitória, casou-se, em 1925, com Alda Hithchings Magalhães, tornando-se sócio da firma G. Roubach & Cia, juntamente com Arnaldo Magalhães, seu sogro, e Gastão Roubach. A convite de interventor João Punaro Bley, em 1938 funda e dirige, juntamente com Mário Aristides Freire, o Banco de Crédito Agrícola (depois Banestes), tendo depois disso seu nome indicado juntamente com o de outros dois, para a sucessão na interventoria. Foi então escolhido por Getúlio Vargas como novo interventor, cargo em que permaneceu de 1943 a 1945. Em 1954 retomou seu trabalho no banco, chegando à presidência, sendo, em 1950, eleito  governador do estado. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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