1. Da leitura dos classificados de jornal
Tenho um amigo pra quem domingo é dia de ler jornal da semana inteira. Explico. A irmã vai e guarda os jornais de domingo a sábado e passa pra ele a maçaroca toda no sábado à noite. Aí no domingo ele mergulha naquele oceano de papel e lê tudo de enfiada, e fica por dentro do que a imprensa houve por bem dizer que aconteceu no passado contíguo no Espírito Santo, no Brasil e no mundo.
Não tenho irmã, nem cunhada, nem muito menos ninguém que faça por mim o agrado que faz por meu amigo a irmã dele. Pra mim, portanto, domingo é dia de ler jornal de domingo. É o que faço, em duas rodadas. Metade antes do almoço, metade depois. Com o seguinte detalhe: à medida que vou lendo, vou atirando ao ar os vários cadernos, que se desfolham a esmo pelo chão da sala. De modo que, no final do dia, quando me preparo pra ver o futebol na televisão, coisa que raramente consigo fazer sem dormir depois de dez minutos de bola mais ou menos rolando, posso espichar-me sobre um soalho outonal forrado de folhas caídas de jornal. E não é que, sem querer, fiz dois versos alexandrinos com rima e tudo mais uma alusão de lambuja ao velho Almeida Garrett de saudosa memória? Vai ser poeta assim em São Mateus.
Recolher o lixo em que se biodegradam as matérias de um jornal é tarefa que deixo, bem entendido, pra empregada diarista que vem cá em casa toda segunda. Recolher e ler. (Ou recoler, como diria meu amigo Alfred, trocadilheiro de plantão.) Pois segunda, pra ela, é dia de ler jornal de domingo. Quer dizer, ler as páginas policiais e o caderno de televisão, que outra coisa, de tudo que traz o jornal de domingo, não sei se interessa à minha empregada diarista. Que vem, aliás, duas vezes por semana: na segunda e na quinta. E se chama Preta, mas é branca. Ou mais ou menos. E tão despojada de graças e charmes que não me excita nem um pouco a nenhum tipo de maior aproximação do tipo assédio sexual imediato de qualquer grau.
Sei de pessoas que lêem o jornal todo, de cabo a rabo, pra ver se seus nomes saíram mencionados em alguma seção do jornal. Desde que não seja, é claro, isso elas não querem ver tão cedo, nos obituários. Admito que também leio o jornal de cabo a rabo, mas não na esperança de ver meu nome ali impresso, o que só há de ocorrer se eu fizer coisas que não são do meu feitio, como roubar um banco (e ser preso por isso) ou andar de motocicleta numa corda bamba esticada entre o topo do Penedo e a varanda do prédio do Saldanha. Leio o jornal de cabo a rabo assim como como tudo que ponho no prato. Isso tem a ver, é o que diria uma antiga que será que ela foi minha, com o meu lado zen: tenho horror a desperdícios. Se bem ou mal que, no rigor da verdade, o que faço realmente é ler o jornal de cabo a rabo na mais honesta diagonal, que rara convenhamos é a matéria que justifica uma leitura mais à vera.
Nem os classificados escapam à minha vistoria hebdomadária. Geralmente é o último caderno que leio. Só que tento ler os classificados com olhos sociológicos. Acho que é ali, mais do que em qualquer outra seção de jornal, que dá pra entrever a verdadeira vida real de uma cidade. Sem disfarce, sem retoque, sem silicone. Isso não é de hoje. Cento e cinqüenta anos atrás, pra dar o primeiro exemplo e único que me vem à cabeça, os classificados do Correio da Victoria viviam noticiando fuga de negros escravos. O que prova, a uma distância sesquicentenária, sem possibilidade de sombra de dúvida, que havia negros em Vitória naquela época, que esses negros eram escravos e que esses negros que eram escravos fugiam com freqüência de seus senhores. Não fossem esses classificados, talvez muito neo-racista negasse a ocorrência da escravidão no Brasil, como muito neo-nazista nega o holocausto dos judeus na Europa teutônica.
Mas o que temos nos classificados de hoje que possa servir ao pesquisador de amanhã? Comecemos pelos anúncios de imóveis à venda. Em primeiro lugar, o pesquisador de amanhã terá de fazer um curso de português imobiliário pra entender o teor desses anúncios telegráficos. De outro modo, dificilmente será capaz de entender o significado de uma frase como esta: Casa 3 f dep compl bibli gar grad subsolo 60 mil. Em seguida, há de reparar que o mote dos anúncios mais sofisticados é sempre qualidade de vida. O que está à venda nesses anúncios geralmente são apartamentos em grandes condomínios ditos de luxo. Neles aparece, como lugar-mais-do-que-comum, gente jovem e sorridente, dando a impressão mercadológica de gente feliz; feliz, só, não: muito feliz, felicíssima, felicissimíssima. As legendas dos anúncios não fazem por menos: falam de coisas abstratas como “tributo à qualidade e à beleza” e “arte de viver bem”. Não falam nada sobre o vizinho boçal ao lado que ouve rádio a todo o volume a qualquer hora do dia e da noite, nem sobre a vizinha neurótica do apartamento de cima que lava banheiro às duas da madrugada, nem sobre a ninhada de crianças do mesmo apartamento que só se locomove a saltos de canguru.
Vistoriando outros tipos de anúncio, o pesquisador de digamos daqui a um século constatará que o homo brasiliensis de hoje fala (e escreve) patrioticamente mal as línguas alheias. Nisso parece que segue o conselho de Rui Barbosa, que aliás deve ter dado esse conselho de maroto, porque na Conferência de Haia — onde era conhecido como Barbarossa, o chato — fez questão de soltar a língua em qualquer dos idiomas oficiais do inócuo conclave. Assim, diante de uma palavra estrangeira, o que faz o brasileiro de hoje senão civicamente estropiá-la? Exemplo? Exemplo: um digno cidadão, querendo vender seus móveis Chippendale, os anuncia como móveis Chipandelli, transformando-os em legítimo estilo italiano. Mas esse é um dado que interessa mais à interlingüística histórica. Também é de menor interesse o acúmulo de anúncios de eletrodomésticos, de aparelhos e equipamentos de som, de instrumentos musicais; mais dignos de alguma nota, porém, são os que propalam atividades ilegais como gravações em cd, atividades que certamente chamarão a atenção dos historiógrafos da pirataria industrial. Que diabos será, perguntará o pesquisador do futuro aos seus botões de mica sintética, “faço pátina em domicílio?”: suspeitará aí, talvez, uma prática pervertida desta época hiperconsumidora de sexo? Aposto que dificilmente perceberá a tese de doutorado que lateja naquela preposição “em” usada em vez de “a”. Naquela altura futura a expressão já se terá cristalizado como “em domicílio”, e o pesquisador, a menos de ser um lingüista, não terá percepção pra notar que essa mudança de preposição se deve ao fato de que o homo brasiliensis não é capaz de aprender o uso da crase (ou os professores de ensinar). Em vista disso, achou por bem melhor fugir das armadilhas gramaticais contidas em expressões como “a domicílio” e “a prazo”, transformando-as em “em domicílio” e “em prazo”, ambas à prova de erro.
Certos anúncios induzirão o pesquisador do futuro a supor que a Vitória de nosso tempo ainda apresentava um forte componente rural. Isso com base em classificados anunciando a venda de animais, que vão desde porcos a pavões azuis (só os pavões é que são azuis, os porcos não) e desde esquilinhos do deserto a gatinhos persas peludões que parecem de pelúcia, passando por itens como 40 gansos por 16 reais cada, um casal de araras vermelhas com documentação completa, e um pacote contendo “um bode + 3 cabras com rendimento de 2.5 litros de leite cada uma + 4 filhotes”.
Não vou me estender. Basta citar, aleatoriamente, alguns itens diversos pra imaginar o trabalho que terá o pesquisador do futuro pra entender esta nossa época. Um anunciante propõe a troca de 528 cartões telefônicos usados por celular fácil falando; outro (outra?) está vendendo vestido de noiva moderno clássico usado uma vez; um terceiro aluga becas de formatura pra pré-escola de 0 a 6 anos. Este monta um tatame de judô em sua casa, aquele precisa de uma vocalista feminina e mais de saxofonista, trompetista e trombonista pra compor uma banda, e aquele outro redige monografias em todas as áreas, dentro de padrões acadêmicos e seguindo as normas da ABNT.
Ah. Não posso deixar de mencionar as profissionais do prazer, com seus slogans maravilhosos, alguns dos quais soam como belos poemas parnasianos (ou pornosianos, dirá meu querido amigo Alfred). Erika é a musa do bumbum especial a mais fogosa; Letícia é magrinha gostosa carinhosa e fogosa; Paula e Daniela são loiras estilo mulherão; Cíntia é loiríssima 19 anos 1.68 de altura corpo malhado estilo americana bronzeada discreta realmente linda uma tentação de mulher; Mônica é loira bronzeada olhos azuis, seios lindos, cabelos longos, corpo violão, meiga e sensual; Paloma é morena fogosa 1.80 de altura 107 de quadril 98 de busto, corpo enlouquecedor para você que deseja uma gata safadinha, faço inversão de papéis com acessórios [que será isso?] atendo casais/cavalheiros em motéis e hotéis com carro próprio; Bruna é um furacão delírio, muito prazer, completa; Melissa é loirinha universitária 18 anos cabelos longos rosto de anjo corpo de mulher. Dany é estilo menina, Laila é estilo Tiazinha, Camila é estilo mulerão, isso mesmo, talvez um neologismo pra indicar que Camila é tão fogosa que chega a ser uma mula de mulher. Camula, dirá o mesmo amigo trocadilheiro invocado no começo do parágrafo.
Seja como for, a mim não apetecem essas deusas da putaria, sobretudo porque não tenho dinheiro pra pagar o ingresso a seu circo de delícias. Se tivesse, talvez não escolhesse nenhuma dessas loiras estilo mulherão nem dessas morenas inflamáveis de tão fogosas, mas sim aquelazinha ali, Cláudia, que se descreve apenas como morena clara, 1,60 de altura, 26 anos, bonita e discreta. Gostei da idade, que denota, além de mais experiência, mais maturidade como mulher; gostei da modéstia, que a leva a passar longe das autopromoções setoriais, como seios e bumbuns, pra definir-se apenas como bonita; e acredito que seja mesmo discreta, porque o seu anúncio o é. De putas como Cláudia a gente fica noivo no segundo encontro.
Mas não vou fazer o leitor ler comigo os classificados do domingo. Tenha paciência, que já estamos chegando à meta final de todo esse périplo. Aqui está: a seção “Empregos e serviços”. Pois então. Num desses domingos estava eu estirado no soalho fechando minha leitura edificante com uma olhada sonolenta pelas ofertas de emprego. Vi que as classes alta e média ainda procuram desesperadamente quem se sujeite a trabalhar em suas casas como empregada doméstica, cozinheira e babá. De estalo já se exige das candidatas que durmam no emprego (pra que os patrões possam divertir-se em noitadas elegantes e exibir ali suas jóias e sorrisos amarelos e seu rico papo furado) e que sejam da roça ou do interior (na ilusão burguesa de que na roça ou no interior é que se preserva a inocência passível ainda de ser explorada). Vendedores, é lógico, todo mundo quer: todo mundo tem produto pra vender. Cabeleireiras e manicures também são bastante procuradas, afinal nem o Eclesiastes, rebatido há três mil anos como água mole em pedra dura, conseguiu fazer qualquer furo na vaidade humana. Aqui precisa-se de pessoas pra panfletagem, que desconfio seja distribuir panfletos nos sinais de trânsito; aqui, de um motorista que seja malhador acima de 1,80, que não sou capaz nem de desconfiar que diabo é; ali, de um narrador para dar continuidade a projeto —
Como é que é? Sim, era isso mesmo o que dizia o anúncio: Precisa-se de narrador para dar continuidade a projeto de criação de artefato literário já em andamento. Exigem-se qualificações na área de literatura. Endereçar currículo à caixa postal 5l7, Vitória, ES. Contratação depende de entrevista pessoal.
Parei pra pensar, reli o anúncio, voltei a parar pra pensar. A possibilidade de emprego me atraía nem tanto pelo emprego em si, que já tenho algo parecido, mas pela curiosidade de descobrir que diabo de emprego era esse. Nunca, em toda a minha carreira dominical de leitura de jornais, nunca tinha visto nada de remotamente parecido com os termos desse anúncio. Era coisa inédita, coisa de literatura. Bem ou mal, tinha a ver comigo. Qualificações na área de literatura era o que não me faltava. Tinha feito o curso de Letras na Ufes (embora o tivesse abandonado a meio caminho, mesmo assim cumprira dois semestres de teoria da literatura); tinha participado de uma oficina literária com Deny Gomes (não importa que o tenha feito pra azarar uma gostosa que não queria nem quis nada comigo) e de outra com Sérgio Blank (pra azarar outra gostosa que também não queria nem quis nada comigo); tinha freqüentado as reuniões de um grupo de poesia chamado Poheresia, que eu chamava de Poeiresia, que tinha uma poeta lá, cara, que podia ser fraca de verso mas era polpuda de peito, na verdade tinha os peitos mais bonitos que eu nunca vi, e não vi mesmo, porque a poeta não quis porra nenhuma comigo, mesmo porque os versos que fiz no grupo eram piores que os dela; tinha publicado umas trovinhas num pasquim de Cariacica, onde amigo meu atuava como redator; tinha publicado umas trovinhas num pasquim de Dores do Rio Preto, onde outro amigo meu colaborava como cronista com o pseudônimo de João Nepomuceno Jr.; por fim, tinha publicado um livretim de trinta páginas pela Lei Rubem Braga (pra quem não sabe, é a lei do município de Vitória de incentivo à cultura), com capa de Armando Costa e título feito de encomenda pra cantar mulher em ponto ou em banco de ônibus, Musa do Transcol.
Aqui devo dizer que nisso tentei seguir a estratégia de amigo meu que é poeta, e dos bons, ainda que seja eu quem diga, e que, melhor ainda do que escrever poesia, consegue seduzir, às pencas, mulheres de todo tipo que grassam à solta pra cima e pra baixo pelos logradouros de Vitória. Sua especialidade é a passageira de ônibus. Tem sempre à mão, aliás na mão, junto com sua agenda (verdadeiro catálogo telefônico pessoal com mais de quinhentos números), um exemplar de livro de sua autoria; se alguma gostosa senta a seu lado, mal sabe ela mas está a meio caminho andado da cama dele. Como é que ele age? Em primeiro lugar, vai logo abrindo o livro de certo jeito, classificado por ele mesmo como discreto-ostensivo, que raramente deixa de atrair a atenção da presa em vista. Aí ele, dotado que é da cara mais de pau que Deus jamais pôs neste mundo de Deus, vira pra ela o rosto e, sem lhe dar tempo de desviar o olho, dispara a pergunta: Gosta de poesia?
Não há mulher no mundo, garante meu amigo, que responda que não a uma pergunta dessas. Assim, a resposta afirmativa conduz ao próximo movimento, que é oferecer o livro de presente à moça, e este, ao movimento seguinte, que é escrever uma dedicatória do tipo “Para uma mulher como você é que se inventou a palavra encanto”, acrescida do próprio número de telefone no canto da página, e de um sussurro na passagem do volume às mãos dela: Me telefona pra dizer o que você achou. E aí? Aí, dentre, digamos, sete mulheres abordadas por semana, pelo menos quatro delas dão um telefonema, três aceitam convite pra um sorvete de goiabada e queijo, duas esticam até um sarro comedido, e uma vai parar na cama do poeta.
Foi em parte pra seguir o exemplo desse artista que me tornei poeta e autor de livro. Mas do mestre ao aprendiz vai a distância de várias verstas. Não sendo um Manoel Desidério (que esse é o seu nome), ainda não tinha faturado nem uma só das várias moçoilas a quem dei o livretim em viagens desconfortáveis pela BR-262 até o Terminal de Campo Grande. Pior: a única que me ligou, e que marcou encontro comigo na praça dos Namorados, enchendo-me de esperança de que ali tinha coisa, fez-me convite indecoroso pra uma visita à igreja maranata que freqüentava, ali na Mata da Praia. Convite que recusei, católico e indignado.
Mas deixemos de conversa mole pra voltar à história principal. Disposto a futucar aquela oportunidade de emprego, preparei meu currículo o melhor que pude. Mantive-o, é claro, o mais formal possível, ou seja, sem as referências às gostosas das oficinas e grupos literários e aos amigos dos pasquins. Acrescentei cópias xerográficas do que convinha, pra não pensarem que eu estava me supervalorizando. Anexei um exemplar do Musa do Transcol, pra não duvidarem de que eu tinha obra publicada. Na segunda-feira mandei tudo pra caixa postal 5l7, e esqueci o assunto.
Não me deixaram esquecer por muito tempo. Na quinta-feira recebi um bilhete seco acusando recebimento do meu material e marcando entrevista pro dia seguinte às 14:20. Era pra eu procurar a Agência Ajax de Produções Literárias, na rua Osório, no centro da cidade. O bilhete estava assinado pelo diretor da agência, um tal de Porfírio Eylau.
2. Da Agência Ajax de Produções Literárias
Lá por volta de outrora, a rua Osório, no centro da cidade, razões de sobra tinha pra dar-se ares de importância. Era ativa e multifacetada. Ali ficavam, de um lado, as oficinas do jornal A Gazeta e o prédio da Igreja Batista e, de outro, alguns dos mais célebres e tradicionais puteiros de Vitória. Hoje o jornal mudou pra Bento Ferreira, a igreja mudou pra Beira-mar, e os puteiros não sei dizer pra onde. Sei que algumas putas continuam por ali, pelos bares, calçadas, ladeiras e escadarias próximas, fisgando fregueses e levando-os pra alcovas cavernosas nas sórdidas pensões da vizinhança. Não são, é claro, as mesmas putas de outrora, mas ali estão e ali ficam porque levam na alma, sem nem saber, a nostalgia dos puteiros em que floresceram suas brilhantes antepassadas.
Hoje a atividade da rua Osório fica por conta do ponto de ônibus e do Edifício Pongal. No Edifício Pongal já tiveram consultórios e escritórios grandes médicos, dentistas e advogados, todos eles mudados, hoje, pra Praia do Canto, onde se desenvolve o novo centro de Vitória. Ficaram no edifício alguns teimosos e excêntricos e mais alguns profissionais de segunda ocupando os espaços deixados por seus melhores. Sem esquecer mais uma miscelânea de negócios, boa parte deles escusa e sinistra. A Agência Ajax fica no oitavo andar do Edifício Pongal. Parei no boteco embaixo pra comprar cigarro. Fui pagar no guichê, tinha uma moça magrinha na minha frente pagando um sanduíche de mortadela e uma Coca em lata. Logo depois, dei com ela esperando o elevador no saguão do Edifício Pongal. Subimos juntos. Ela não tirava o olho da parede do elevador; tinha um lábio triste e o cabelo era de um louro desbotado. Saltamos no oitavo andar, ela e eu, ambos. Ela parou diante da sala 804. Escritório de advocacia. O sanduíche e a Coca eram, de certo, pro rábula pra quem ela trabalhava.
— Sabe me dizer onde é a Agência Ajax, — perguntei, sem nenhuma necessidade, era só procurar corredor adentro. Perguntei pela necessidade de puxar conversa. Lá no fim do corredor, respondeu ela com voz tênue. Toda a figura da moça anunciava sua completa carência de um objeto de paixão. E no entanto até que ela era bonitinha. Pena não ter comigo nenhum exemplar do Musa do Transcol pra dar pra ela. Moça tão carente se apaixonaria na leitura do primeiro poema. Aquele que contém um dos meus versos clássicos: “Não tens a quem amar? Ama-me a mim.”
A moça sabia dar informações. A Agência Ajax ficava, realmente, no fim do corredor, vizinha à Agência de Detetives Falcão Negro. Toquei a campainha. A porta se entreabriu na medida exata permitida pelo pega-ladrão. Entrevi uma mecha de cabelo louro, um olho azul olhando pra mim enviesado, uns lábios untados de batom carmesim.
— Sim? — perguntaram os lábios.
— Tenho uma entrevista marcada com o Sr. Porfírio Eylau, — esclareci, tentando soar importante.
A moça retirou a corrente do pega-ladrão e abriu a porta bem aberta. Entrei. Ela fechou a porta bem fechada e passou de novo a corrente no trinco. Depois virou-se pra mim e disse:
— Ei-lo.
— É você? — exclamei, incrédulo. Não havia mais ninguém na sala.
— Não, claro que não, — disse ela, como se eu tivesse dito uma asneira. — Só quis dizer que o nome se pronuncia Eilô.
— Ah, entendi. É francês.
— Sim, — disse ela. — É o nome de uma pequena cidade da Prússia, perto de onde Napoleão travou uma batalha decisiva. A família do Sr. Eylau veio de lá.
— Ah, pois não, — disse eu, sem saber como receber a informação preciosa.
A moça indicou-me uma velha cadeira de palhinha, palhinha côncava de tanta bunda que já descansara ali o seu peso. Sentei-me. Ela sentou-se também, por trás da mesa. Reparei na blusa que estava usando, uma blusa de seda que estampava, aos quatro ventos, as cores vivas de uma suruba de frutas tropicais.
— O Sr. Eylau ainda não chegou, — disse ela. — O senhor se importa de esperar um pouco?
— Nem um pouco, — respondi. — Quero dizer, não me importo nem um pouco de esperar um pouco.
Como poderia, se não sou veado? Na companhia de uma gostosa como ela eu até rezaria pra que o Sr. Eylau demorasse a tarde toda pra chegar, ou que fosse atropelado por um ônibus bem ali na rua Osório e nem nunca chegasse jamais. Porque ela era muito gostosa, cara. Difícil até crer que o Sr. Porfírio Eylau tivesse recursos pra pagar tão boa aparência. Cheguei a supor que a moça fosse uma personagem da Agência Ajax, que o Sr. Eylau usasse como secretária pra fazer vista e pra economizar. E, quem sabe, pra comer. Aí ela extraiu aparentemente da manga uma lixa de unhas. Tinha mão grande, dedos longos e finos, grossos anéis folheados a ouro nos dedos médio e anular. Abriu os dedos em leque e começou a passar a lixa nas unhas meio compridas. Me lembrava, de corpo, de rosto, de blusa e de lixa, a recepcionista da delegacia do seriado Nova York contra o Crime. Era gostosa e vulgar. Aliás, gostosa, vulgar e ingênua. Aliás, gostosa, vulgar, ingênua e, suspeitei lá com meus botões, caridosa. Comecei a sentir, nos meus baixios, os primeiros esboços de uma ereção.
Nisso vi que meu livretim jazia de borco sobre a mesa da moça. Lixadas as unhas, ela tirou uns óculos da gaveta, pôs no narizinho arrebitado, pegou o livro nas mãos, virou uma página e começou a ler. À medida que ia lendo, ia fazendo, com um lápis de ponta pontiaguda, algumas anotações numa folha de papel. Comecei a achar que a Agência Ajax era um empreendimento sério, já que até a secretária ingênua parecia ter qualificações como crítica literária.
— Que que está achando do meu livro? — perguntei.
— Já li piores, — respondeu ela, sem tirar da página o olhar intelectual.
— E já leu melhores? — insisti.
— Na verdade nem estou lendo o livro, — disse ela. — Estou só anotando as palavras mais usadas, que o Sr. Eylau mandou. Ele é adepto da análise estatística do estilo literário, que o senhor certamente já ouviu falar.
— Já, — menti. — E quais são as palavras que eu mais usei no livro?
— Deixa ver, — disse ela. — Até agora você usou boca vinte e cinco vezes; cabelo, vinte vezes; cama, dezoito vezes. Outras palavras recorrentes são língua, pedra e biscoito.
— Biscoito? — estranhei. Nem tinha lembrança.
— Onze vezes, — disse ela, — inclusive duas vezes especificamente biscoito de polvilho. Quanto aos adjetivos, suas preferências são úmido, lânguido e lúbrico, o que denota uma tendência para o adjetivo proparoxítono.
Me senti meio ressabiado, como se ela tivesse dito que eu tinha caspa no cabelo.
— Isso conta a meu favor? — perguntei. Estava preocupado. Agora eu queria a porra desse emprego. Porque tinha entrado na luta e porque tinha visto a secretária gostosa da Agência Ajax de Produções Literárias.
— Não sei dizer, — disse ela. — Quem faz a análise dos resultados é o Sr. Eylau.
Nesse momento o telefone tocou, fazendo um escândalo.
— Agência Ajax de Produções Literárias, Mônica, boa tarde. — atendeu a gostosa, e saber-lhe o nome me levou instintivamente a procurar rimas pra um possível poema de sedução.
— Não, senhor, ele não se encontra. [Cônica.] A qualquer momento, senhor. [Jônica.] Sinto muito, senhor. [Biônica.] Não, senhor. [Água tônica.] Vou dar o recado a ele, senhor. [Supersônica.] Como disse, senhor? [Afônica.] Pode deixar, senhor. [Crônica.]
Mônica desligou e pareceu envergonhada diante de mim, como se eu tivesse acabado de vê-la saindo nua do banho com touca de plástico na cabeça. Não, pior: como se eu tivesse acabado de fazer vistoria dos livros contábeis da Agência Ajax. Chegou a baixar os óculos. Depois, numa súbita inspiração, disse:
— O senhor aceita um café?
— Aceito, — respondi.
Ela ficou constrangida. Fez um beicinho.
— Desculpa, mas não tem. Eu ofereci achando que o senhor não ia aceitar. — Notei a ausência do subjuntivo, o que contrastava com os óculos intelectuais, com o lápis de ponta aguçada.
— Tudo bem, eu só aceitei porque achei que tivesse.
— É que o pó acabou, — explicou ela. Aí acrescentou, pressurosa: — O pó de café.
— Sei, — disse eu.
Será que, na condição de candidato a narrador, posso arriscar um palpite? Bom, se puder, direi que quem acabou de ligar à procura do Sr. Eylau foi um agiota. Todo aquele desconserto de Mônica, que tentou atenuar com a oferta de um café inexistente, não sugeria outra coisa. E se foi, o que tem isso? Tem que o Sr. Eylau andou pegando dinheiro emprestado e, o que é mais grave, ainda não pagou o que deve. Significa também que, se eu tivesse juízo, aproveitaria a deixa da demora dele pra pular fora, nem que fosse porque quem deve a agiota deve dever ainda mais a seus empregados. O que foi que me reteve? A gostosa da Mônica? Diria que não. Uma saída honrosa poderia impressioná-la mais do que os pobres adjetivos do Musa do Transcol, com direito quem sabe até ao telefone dela de casa. O que então? Só pode ter sido a mesma isca que segura tudo que é peixe em situação análoga, quer na literatura, quer no cinema, quer na vida real. A curiosidade. Ou seja, a mesma isca que fisga o peixe e que mata o gato. Ou seja, eu estava curioso até o fígado pra conhecer o misterioso Sr. Eylau, digno descendente de pobres prussianos que tiveram a honra de fugir de Napoleão, e mais ainda pra saber que diabo de projeto literário era esse pro qual o desendinheirado agente estava recrutando narrador.
Aí bateu-me no cóccix um medo. Grasnei uma pergunta pra Mônica:
— Já apareceram muitos candidatos pro projeto?
— Três, — disse ela, levantando três dedos, como se respondendo a um surdo.
— Pode me dizer quem são ou é segredo de Estado?
— Os nomes das pessoas eu não posso lhe dizer, — disse ela. — Mas posso adiantar que são excelentes. O Sr. Eylau ficou muito bem impressionado.
— Ah, Mônica, — supliquei. — Diz alguma coisa nem que seja sobre os currículos dessas pessoas, só pra eu ter uma idéia do nível de exigência.
— Não quero ofender, — disse ela, — mas todas três têm muito mais bagagem do que o senhor.
Pra ilustrar sua opinião, apontou um dedinho pro meu Musa do Transcol e sorriu como uma mestranda em Letras da Ufes.
— Têm melhores adjetivos? — perguntei.
Ela me olhou desconfiada, sem saber se eu estava brincando com ela ou não. Nem eu sabia.
— Uma das candidatas, a que mais me impressionou, é uma senhora de noventa anos de idade. O currículo dela é riquíssimo. Tanto como intelectual como cidadã.
— Como como, — corrigi. Sentia-me despeitado e descontei tripudiando um pouquinho sobre Mônica.
— Como? — perguntou ela, enrubescendo não sei por quê.
— Como, não. Como como. Faltou um como na sua frase. O correto seria: Tanto como intelectual como como cidadã. Sei que soa esquisito, mas o português correto muitas vezes é muito esquisito.
Acho que dei azar na minha castiça intervenção. Ela me olhou como se eu fosse um lunático. Aí refugiou-se na apologia da nonagenária:
— Essa senhora é presidente honorária da ECA, a Escritores Capixabas Association, e já publicou mais de vinte livros e ganhou mais de noventa prêmios nacionais e internacionais. Tem uns dois anos atrás, ganhou o primeiro lugar no Concurso Mundial de Haikais em Esperanto, promovido pela Seção Esperantista da Rádio Clube de Beijing.
Odeio essa mania de chamarem Pequim de Beijing, mas não disse nada, inclusive porque é uma graça a maneira como ela faz biquim pra falar “Beijim”.
— E as homenagens que recebeu? Não estão no gibi. A Câmara Municipal de Vitória vem indicando Dona Quitéria — entregou o nome da candidata sem nem notar — como Mulher Destaque todos os anos desde 1990, e a Casa de Cultura de São José do Veado indicou ela como Intelectual do Ano em 1995.
— Prêmio cobiçadíssimo, — disse eu, sério.
— Pois é, — concordou ela, ingênua. Ah, eu tenho de comer essa mulher! — Só de títulos de cidadã honorária ela tem um baú cheio: é cidadã honorária de uns trezentos municípios do Brasil, desde Chuí do Norte até Oiapoque do Sul. Fala e escreve fluentemente em várias línguas importantes, como esperanto, esquimó, espanhol, estoniano, tupi-guarani, iorubá e volapük, e agora está aprendendo espanglês pra escrever pra comunidade hispano-americana dos Estados Unidos. E é pintora e música, também, você acredita? Já fez exposição de aquarelas até no Consulado do Brasil em Vladivostok, e ainda toca pandeiro e canta toda semana com um grupo que faz cover de um trio famoso, Peter, Paul & Mary; sendo que ela imita Mary, naturalmente. Mas o que me deixou mesmo encantada foi saber que ela é adepta do naturismo. Pensa bem. Uma velhinha de noventa anos, nudista. Eu queria ter metade da coragem dela pra ficar pelada em público.
Só de pensar em Mônica pelada na minha frente comecei a ter uma ereção. Que abortou a meio caminho só de pensar na velha nonagenária pelada na minha frente, e ainda por cima recitando haikais em esperanto.
— E os outros candidatos? — perguntei. Da velha nonagenária eu não tinha nenhuma chance de ganhar, mas dos outros quem sabe. Um segundo lugar nesse embate já era lucro. A velhinha bem que podia morrer (e como eu rezaria pra isso!) antes de tomar posse no cargo.
— Candidatas, — esclareceu Mônica. E acrescentou, com uma ponta de iceberg de orgulho das congêneres: — São todas mulheres.
— Ah, é? Quer dizer que vocês mulheres não estão deixando pra nós nem a literatura? Daqui a pouco vamos ver mulher trocando pneu de carro.
Ela deu um sorriso em nome de todas as fêmeas de letras do Espírito Santo. Aí abriu a boca pra discorrer sobre as qualificações das outras candidatas. Abriu e fechou, porque nesse exato momento bateram à porta.
— É o Sr. Eylau, — disse Mônica, levantando e caminhando até a porta. Aproveitei pra olhar-lhe os bastidores do corpo. Meu Santo Antão! Aquela mulher era mais gostosa do que o muito gostosa que tinha transparecido à primeira vista. Ocorreu-me que a ela se aplicavam direitinho os atributos de uma das garotas de programa dos classificados do jornal, ainda por cima, por extraordinária coincidência, sua xará: “Mônica é loira bronzeada olhos azuis, seios lindos, cabelos longos, corpo violão, meiga e sensual.” Seria possível ser ela a mesma Mônica, tanto lá como cá? Se era, o que poderia justificar sua presença no escritório escroto (escrotório, diria meu amigo Alfred) de uma agência mambembe de produções literárias certamente patéticas? Não, é claro, a possibilidade de complementar o magro orçamento, longe disso. A mais antiga profissão do mundo dá pra deixar muito bem de vida um mulherão que nem esta Mônica, tanto mais porque nem tem que declarar renda alguma à Receita Federal (donde a conveniência fiscal de se regulamentar a profissão). Decidi, portanto, pela negativa: esta Mônica não podia ser a mesma que aquela Mônica. E se, por um lado, com a fria razão negando-lhe o sublime status de meretriz, esta Mônica perdia em charme e fascínio, por outro lado me consolava o pensamento de que, se um dia ela houvesse por bem dar pra mim, eu comeria de graça aquele supremo manjar dos deuses.
3. Do Sr. Porfírio Eylau
O que primeiramente que tudo meus olhos repararam em Porfírio Eylau foi que ele era um sujeito nanico que nem Napoleão Bonaparte. Notava-se, é claro, a ausência do chapéu napoleônico, do cacho de pega-rapaz sobre a testa, da mão enfiada camisa adentro em busca do umbigo ou da úlcera, da alta e esguia Josefina ao lado, tudo isso se notava; mas tampinha tanto era um como outro. Em termos etários, Porfírio Eylau era mais ou menos de cerca de meia idade e meia, o que, considerando quarenta como meia idade, lhe dava uns sessenta anos bem puídos. O que lhe faltava em altura sobrava-lhe em cabeça. O Sr. Eylau tinha um cabeção. No rosto, os olhos saltavam aos olhos em alto relevo, as sobrancelhas eram felpudas como as de Monteiro Lobato, o nariz digno de brotar em tal cabeça, as orelhas também. Dizer que o Sr. Eylau era feio é pouco. Mas havia uma dignidade em sua feiúra. Não era porque estivesse vestindo terno e gravata. Sua dignidade se localizava em algum ponto indefinível, e daí se estendia em círculos concêntricos a toda a sua figura.
— Alguém ligou? — perguntou o Sr. Eylau. A voz era de veludo.
— Ligaram, sim, — respondeu Mônica.
— Ah, — disse o Sr. Eylau.
— E aqui está o candidato do projeto leste-oeste, — disse Mônica, apontando pra mim.
— Muito prazer, — disse o Sr. Eylau, estendendo uma mão volumosa. Que me levantei da cadeira pra apertar. O Sr. Eylau disse, gentil: — Já cuidarei do senhor.
Aí reparei que ele tinha, pregada a alfinete na lapela esquerda do paletó, um retalho de pano negro. Então era isso, entendi, que conferia à sua feiúra toda a dignidade que emanava da pessoa dele. O Sr. Eylau estava de luto.
— Dona Mônica, — chamou ele, e penetrou no seu gabinete, seguido pela secretária. Notei que ela, eficiente que era, levou consigo o exemplar do meu Musa do Transcol e as folhas de papel com as anotações referentes a meus substantivos e adjetivos.
Fiquei só e me senti solitário. Senti, confesso que senti, saudade de Dona Mônica. Aquela mulher tomava de assalto o imaginário alheio. Seria difícil mandá-la embora. Na falta do que fazer, entrelacei as mãos e fiquei girando os polegares. Sendo narrador, ou candidato a, deixei os olhos voejarem pela sala e verem tudo. A sala tinha um arquivo de aço a um canto, um vaso de cerâmica em cima, um pé de violeta dentro do vaso. Por trás da mesa pendia da parede uma tela representando um saco de batatas em pé com um microfone na altura da boca. Bonito. Provava que o Sr. Eylau tinha bom gosto artístico. Da outra parede, pendia outra tela, esta representando o Palácio Anchieta depois da gripe. Estiquei o olho e aprendi, pela assinatura ao pé da escadaria do palácio, que a artista chamava-se Mônica. Quem seria? Deixei meus olhos voejarem pela janela aberta. Vi que dava pra ver o topo do morro do Cabral, também conhecido como da Caixa d’Água, porque ali ficava o reservatório da cidade na época em que Vitória devia ter vinte mil habitantes não mais. Ali também, cinqüenta anos atrás, nos meses de melhor vento, abril, maio, junho, se faziam os concursos de raias e papagaios promovidos por um círculo de intelectuais que tinham vento nas cabeças. Eu era um menino mínimo demais pra tomar parte, mas conheci um rapazola que tirou o primeiro lugar e foi premiado com o que se chamava “permanente”, uma espécie de passaporte pra assistir às sessões de cinema durante seis meses. Se só durante seis meses, pensando bem, não era tão “permanente” assim. O que confirma que nada, nem as “permanentes” de cinema, é permanente neste mundo.
A porta do gabinete do Sr. Eylau se abriu e Dona Mônica fez sinal pra que eu entrasse no santuário do patrão. Foi o que fiz. Ao passar por ela, ouvi-a murmurar no meu ouvido, com voz que cheirava a alfazema: Boa sorte. Em seguida fechou a porta e me deixou, entregue à minha sorte, de pé diante da vasta planície de uma mesa que ocupava quase todo o santuário. O Sr. Eylau, sentado à mesa, parecia um gigante, a julgar pelo seu cabeção.
— Em que posso ajudá-lo? — perguntou ele, formal.
— Eu vim pra entrevista, — informei o que ele já sabia. — O emprego de narrador.
— Ah, sim, muito bem, — disse ele, sem se comprometer. Uma de suas mãos fez por ajeitar melhor sobre a mesa um porta-retratos. Deu pra ver, de onde eu estava, que a foto era de uma senhora de idade, provavelmente a Sra. Porfírio Eylau. A um canto da mesa jazia, calado, um gravador de fita. No teto girava um ventilador preguiçoso, rangendo nas juntas.
— Queira sentar-se, — disse o Sr. Eylau. Sentei-me na cadeira diante da mesa. Ele prosseguiu, com sua voz de veludo: — Tenho aqui o seu dossiê, incluindo currículo, produção literária, e levantamento do seu estilo.
— A moça me informou, — interrompi, — que o senhor é especialista em estudo estatístico do estilo.
— Não diria especialista, — disse ele, modesto. — Li com muita atenção o estudo de Udny Yule sobre o comprimento do período como característica de estilo, e o de Wilhelm Fucks sobre a análise matemática do estilo. No cômputo final, desprezei, na contagem das palavras, variáveis recomendadas por Yule, como substantivos próprios e compostos, palavras em outros idiomas, siglas e abreviaturas, e me restringi ao escrutínio de substantivos comuns e adjetivos. Da mesma forma, desconsiderei o cálculo da freqüência das palavras segundo o número de sílabas e da distância média entre palavras de igual número de sílabas, conforme o método recomendado por Fucks. Sem querer competir com esses gênios da estatística, creio que o meu método simplificado atende melhor às necessidades desta agência. No seu caso específico, percebi que, se o seu vocabulário não é muito amplo, por outro lado os seus adjetivos, predominantemente proparoxítonos, denotam um certo toque de classe. Mas o melhor é o título do seu livro. Não poderia vir mais a propósito, porque o projeto leste-oeste implica, idealmente, muitas viagens de ônibus.
— Mas confesso que não tenho muita esperança, — suspirei. — Soube que o senhor já recebeu a visita de excelentes candidatos. Candidatas, aliás.
— Realmente excelentes, — confirmou ele. E acrescentou, com uma tristeza que ia bem com o seu retalho de luto na lapela: — Qualquer delas teria sido uma honrosa aquisição para a agência.
— Teria sido? — estranhei.
— Infelizmente nenhuma delas passou no teste, — disse o Sr. Eylau, pesaroso. — E os requisitos para este projeto são estritos. Não passou no teste, não pode ser aceito. Nem que fosse Gabriel García Márquez.
Olhou-me no fundo do olho, pra testar minha credulidade.
— Esta é uma agência séria, — disse o Sr. Eylau. Será que queria prevenir-me contra qualquer tentativa de suborno?
— Não tenho nenhuma dúvida, — disse eu.
— Então vamos ao teste, — disse o Sr. Eylau, em termos práticos. — Quero crer que somos ambos pessoas muito ocupadas.
Sem mais, o Sr. Eylau esticou a mão e ligou o gravador de fita. A princípio julguei que pretendesse gravar o teste. Mas não. Do aparelho começou a vazar uma melodia em 4/4, bem pontuada no contrabaixo e na bateria. Logo um piano sobrepôs-se aos demais instrumentos e, pouco depois, um saxofone barítono tomou conta do púlpito e deitou sermão. Olhei pro Sr. Eylau sem entender nada. Teste com trilha sonora, onde é que já se viu tal coisa?
— O que é isso? — perguntou o Sr. Eylau, apontando pro gravador.
— É um gravador de fita, — respondi.
— Não, não, não, — disse ele, impaciente. — Que tipo de música é essa que está tocando?
— É jazz, não é? — respondi perguntando.
O Sr. Eylau soltou um suspiro, não sei de se pesar ou de alívio, ou de uma mistura de ambos.
— Vou desconsiderar a segunda parte da sua resposta e considerá-lo aprovado no teste.
Aí desligou o gravador, fendendo ao meio uma frase grandiosa do sax-barítono, e disse:
— Acho esse gênero musical uma droga. Eu gosto é de ópera. Mas o projeto pede um narrador que tenha um mínimo de conhecimento de jazz. Pois nem esse mínimo conhecimento aquelas candidatas extraordinárias não tinham. Uma delas, ouvindo a fita, tapou os ouvidos e disse que não sabia o que era nem queria saber. A outra ouviu a fita três vezes e depois disse que parecia, nas palavras dela, “aquela música que tocam com gaita de foles lá na Escócia”. A terceira chegou um pouco mais perto e disse que era bossa-nova. Bem que me avisaram que nenhuma mulher seria capaz de passar nesse teste. Não deu outra. E agora o primeiro macho que me aparece acerta de chofre.
— Quer dizer que estou contratado? — perguntei, mal contendo a ansiedade de abrir aquela porta e berrar a boa nova pra Dona Mônica, que me dera sorte com seu voto de boa sorte.
— Está, se aceitar as condições do contrato, — disse o Sr. Eylau. Disse e retirou de uma gaveta uma folha de papel, e pôs-se a ler o que estava ali escrito: — Cláusula primeira. Salário mínimo. Segunda. Nada de carteira assinada. Terceira. Produção de um texto de quinze mil caracteres por semana. Quarta: Estrita observância das diretrizes do projeto, que lhe serão comunicadas por escrito. Quinta: Ruptura do contrato a qualquer momento, sem comunicação prévia. Sexta: Renúncia de autoria e, por conseguinte, de direitos autorais. Sétima: Sigilo absoluto. Oitava: Exclusividade. Nona: A definir. E finalmente décima: Relacionamento estritamente profissional com os demais empregados da Agência Ajax de Produções Literárias.
O Sr. Eylau atirou a folha de papel em minha direção. Peguei pra ler. No alto da folha estava impressa a logomarca da agência, um livro aberto sentado sobre a cabeça flamejante de um sol. Passei um olhar pelo decálogo.
— Então? — disse o Sr. Eylau.
— Tenho uma dúvida sobre a nona cláusula.
— A definir, — esclareceu o Sr. Eylau, com um tique de exasperação. — Trata-se de cláusula a ser definida pela agência. Pode ser qualquer coisa. Por exemplo, proibição de fumar. O que der na telha da agência. Além disso, é uma cláusula mutável. Hoje pode ser uma coisa, amanhã outra.
— Ah, entendi. E quanto à décima? O senhor e eu não podemos ter nenhuma, digamos, o senhor e eu não podemos socializar?
— O senhor e eu podemos, sim, — disse ele. — Eu sou proprietário e gerente da agência, não sou empregado dela.
— Ah, entendi. Quer dizer que eu não posso, digamos, convidar o office-boy pra jantar?
— Isso mesmo, — disse o Sr. Eylau. — Embora a agência não disponha de office-boy. Na verdade, a única empregada da agência no momento é Dona Mônica.
— Muito bem, — disse eu. E pensei cá comigo: Aqui que eu vou respeitar essa cláusula anticonstitucional.
— A multa por infringir qualquer das cláusulas é de cinqüenta mil reais, — disse o Sr. Eylau, como se tivesse lido meu pensamento cá comigo. Dito o quê, pra compensar a brutalidade da advertência, ele me ofereceu uma pastilha de hortelã. Aceitei. Ele pegou uma pra si. Chupamos nossas pastilhas em silêncio durante algum tempo. Senti-me parte integrante da Agência Ajax de Produções Literárias.
— E o projeto leste-oeste? — perguntei.
— Mas claro, — disse ele. — Falemos do projeto. O senhor certamente conhece uma série de crônicas intitulada Dois graus a leste, três graus a oeste.
— Conheço não, — respondi, honesto. De qualquer forma, já tinha passado no teste, não seriam dois graus a leste ou a oeste que me iriam desclassificar agora.
— Isso não me surpreende, — disse o Sr. Eylau. — Trata-se de um projeto que, segundo seu criador, meu cliente, pretende abordar o universo do jazz através de textos de ficção. Não sei se é bom, não sei se é ruim. Eu sou um profissional. Meu papel é produzir os projetos alheios, não avaliá-los. E produzir significa, por exemplo, garantir o narrador adequado para um projeto, que é o que acabo de fazer com sucesso, assim espero.
— Eu também assim espero, — acrescentei.
— Esse projeto do meu cliente, — disse o Sr. Eylau, — tem um personagem principal, que se chama José Garibaldi Magalhães. Você vai receber a ficha pessoal dele completa, mas posso adiantar que se trata de um sujeito mal-humorado que só tem três interesses na vida: jazz, mulher e poesia. A primeira parte da série saiu na internet, num total de vinte e sete capítulos, ou crônicas, para usar a terminologia do projeto. O narrador original do projeto era homodiegético. Sabe o que é?
Benditas aulas de teoria literária que tive no curso de Letras, agora finalmente mostravam sua utilidade.
— É o narrador que participa da trama como personagem, — respondi.
— Exatamente. Isso funcionou durante algum tempo, sem maiores problemas, até que aconteceu o inesperado.
O Sr. Eylau fez uma pausa, provavelmente pra efeitos dramáticos. Esperei, chupando minha pastilha de hortelã.
— O narrador se apaixonou por uma personagem, justamente a namorada do tal José Garibaldi.
— Que se chamava Anita, — arrisquei.
— Que se chamava Maria da Penha, — corrigiu o Sr. Eylau. — Vou dar os detalhes. Estávamos construindo um capítulo intitulado “A rosa comestível”, no qual o narrador é apresentado à tal da Maria da Penha. Aí, numa atitude um tanto quanto irresponsável, o narrador ignorou o roteiro e se deixou apaixonar pela moça que nem um adolescente. Essa seqüência, aliás uma das mais importantes da série, deveria estender-se por mais uns quatro ou cinco capítulos. No segundo, estão os personagens conversando numa pizzaria de Jardim Camburi, à espera de uma pizza gigante, metade palmito, metade marguerita. O capítulo termina, a pizza ainda não foi trazida à mesa. Isso foi em dezembro de 1998. Até hoje essa pizza não foi consumida, porque a partir desse episódio o narrador teve um bloqueio narrativo e não conseguiu continuar a narração do que ele mesmo chamou de “história inconfessável”.
— Inconfessável por quê? — perguntei, aceso.
— Ninguém sabe, — respondeu o Sr. Eylau. — Como eu disse, a paixão do narrador por Maria da Penha interferiu totalmente no roteiro do episódio. O que seria apenas mais uma situação para Garibaldi dar lições de jazz virou uma estranha situação de triângulo amoroso. E de triângulo amoroso metalingüístico, ainda por cima! Durma-se com um barulho desses.
— E a série se interrompeu aí? — perguntei.
— Não. O narrador passou a contar outras histórias, evitando sempre dar continuidade à história daquela noite. O velhaco prometia voltar ao assunto, mas nunca o fez. A pizza está lá, na cozinha da pizzaria, há mais de dois anos. Deve ter virado pedra. Daí por que o autor, injuriado, com toda razão, apelou para mim. Queria outro narrador para contar, na terceira pessoa, a tal história inconfessável. Narrador que é você.
— Aceito, — exclamei. Já estava começando a gostar dessa tarefa, que me punha em contato direto ou indireto com uma porção de mulheres. Já estava ansioso por ver, ainda que só no âmbito de um texto de ficção, essa misteriosa mulher, Maria da Penha, passível de virar a cabeça de personagens e de narradores. Comigo, pensei, ela vai ver só o que é bom pra tosse.
— Ótimo, — disse o Sr. Eylau. — Quer fazer o favor de chamar Dona Mônica para mim?
Levantei da cadeira, solícito, fui até à porta, abri-a, Dona Mônica olhou pra mim de sua mesinha, dei-lhe um sorriso que dizia tudo sobre meu sucesso absoluto.
— Dona Mônica, — disse eu, — o Sr. Eylau quer vê-la.
Ela veio até à porta, mulherão. O Sr. Eylau comunicou-lhe que o projeto tinha narrador e pediu-lhe contrato pra assinatura imediata. Da porta ela se foi, mulherão. Voltei a sentar-me diante do Sr. Eylau.
— Aqui está o seu dever de casa, — disse ele. Passou-me algumas folhas de papel grampeadas, que vi que eram a ficha pessoal do meu personagem, José Garibaldi, e uma relação das diretrizes editoriais e literárias do projeto. Mole pra mim como dever de casa, pensei. Aí ele empurrou pro meu lado um calhamaço de duzentas páginas impressas em espaço simples, e explicou que aquilo eram os vinte e sete capítulos escritos pelo narrador anterior.
— Vou ter que ler tudo isso? — perguntei.
— É bom, — disse ele. — Primeiro, para conhecer o projeto como estava sendo desenvolvido na prática. Segundo, para conhecer o estilo do narrador original. Aí é que mora o perigo. Há certos aspectos desse estilo que você pode e até deve incorporar ao seu estilo, segundo recomendação do cliente. Por exemplo, escreva sempre “pra” em vez de “para”. Não que eu concorde com isso, acho vulgar, mas o cliente manda, e o argumento dele é que Mário de Andrade escrevia assim. Poupe-me, porém, por favor. Se tiver de me citar por alguma razão, cite-me falando “para” e nunca “pra”. Por outro lado, fuja como o diabo da cruz de certas marcas muito fortes do estilo do seu antecessor, como o digressionalismo e o referencialismo excessivos. Seja mais pão-pão, queijo-queijo, vá direto ao assunto e grude nele. O que o nosso cliente admite, porém, é que você insira, aqui e ali, como fazia o seu antecessor, alguns parágrafos sobre Vitória, tanto sobre o passado como sobre o presente da cidade. Viaje de ônibus com mais freqüência ainda, para usar como cenário um ou outro bairro pitoresco da cidade. Enfie onde couber alguns traços característicos. De vez em quando veja uns navios, mencione o dialeto regional, a culinária. Dê sempre umas pinceladas de cor local, você entende. Nosso cliente espera que isso resulte em patrocínio por parte da Prefeitura, embora eu não tenha tanta esperança assim. De resto, você tem carta branca para escrever do jeito que quiser, dentro do que prevê o item “literariamente correto” das diretrizes que eu lhe dei.
Nesse momento o telefone tocou. O Sr. Eylau ficou de olho, e até ergueu um pouco o braço, pra se escudar de uma possível mordida do aparelho. Dona Mônica atendeu, lá na outra sala. O Sr. Eylau esperou, cauteloso, até que ela desligasse. Aí sorriu pra mim:
— É uma excelente secretária, embora não saiba latim. Meu sonho era ter uma secretária que soubesse latim, mas não se pode ter tudo nesta vida. Fui dez anos professor de latim no ginásio, no tempo em que o latim fazia parte do programa.
— Latim aguça o raciocínio, — disse eu, pra agradar-lhe.
Dona Mônica retornou à sala e, sem uma palavra, depôs sobre a mesa do Sr. Eylau, em duas cópias, o contrato de trabalho entre mim e a Agência Ajax de Produções Literárias. O Sr. Eylau estendeu-me uma cópia e começou a passar os olhos na outra. Fiz o mesmo na minha. As cláusulas eram todas aquelas que ele já tinha mencionado antes. O nome de Dona Mônica constava como testemunha: Mônica Vicentina Quinamor. Que belo nome, suspirei, emocionado.
— Tudo em ordem? — perguntou o Sr. Eylau.
Acenei com a cabeça e assinei com a caneta a minha cópia e ele a dele. Trocamos as cópias, assinamos, cada qual ficou com a sua.
— Reunião de projeto na terça-feira, no Centro da Praia, às 17:30 horas. Quero um relatório sobre seu dever de casa e uma proposta de nova abordagem estilística e estrutural. Às 18 horas, no mesmo bat-local, teremos pesquisa de campo. Tanto José Garibaldi como o narrador original fazem parte de um clube que se reúne toda terça-feira no Centro da Praia, à noitinha. O senhor poderá vê-los e estudá-los in loco, sob minha orientação direta.
— Mas… — murmurei, adversativo, sem saber exatamente o que dizer. Estava mais é atônito por ouvir, dos lábios do Sr. Eylau, de onde escoou muito texto sagrado de Horácio e Virgílio, uma expressão chula como “bat-local”. Ele aproveitou minha indecisão pra levantar-se da mesa e estender-me a mão. Que apertei.
— Qualquer dúvida, não deixe de me consultar, — disse ele. — Se eu não estiver, deixe recado com Dona Mônica.
Já ia saindo quando achei que, por consideração, cabia uma palavra de condolência:
— Vejo que está de luto, Sr. Eylau.
Ele tocou a faixa de crepe com um dedo respeitoso e disse:
— Sim. É por minha mãezinha. — E apontou pro porta-retratos sobre a mesa.
— Sinto muito, — disse eu. — É perda recente? Ainda dá pra ir à missa de sétimo dia?
— Não, não, — disse ele. — Ela morreu faz doze anos.
Vi que o Sr. Eylau tinha um rumor de lágrimas nos olhos. Cumprimentei-o com a cabeça e saí, deixando-o com seu luto obstinado. Esperava-me Dona Mônica, cheia de vida e cor em sua blusa de pomar tropical.
4. Pano
Dona Mônica me deu os parabéns e quase, em troca, a convidei pra jantar. A tempo lembrei-me de que não tinha como obter cinqüenta mil reais pra pagar a possível multa por infração de contrato. Perguntei-lhe então se conhecia a moça magrinha do 804.
— Fúlvia, — disse ela. — Por que o interesse?
— Nada não, — respondi. — Acho que a mãe dela é prima do cunhado do meu tio Bené, irmão mais velho de papai.
Vai ser mentiroso assim em São Mateus. Tio Bené é, sim, o irmão mais moço de meu pai.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)