Promessa é dívida, portanto cumpra-se a promessa é dívida do narrador: abra-se, pelas mãos de musa de Dona Mônica, a sisuda porta da Agência Ajax.
Dona Mônica abriu meia porta, viu quem era, meteu o belo rosto pra fora, varreu o corredor com o olhar, talvez pra ver se não havia por ali algum detetive de tocaia, e aí então me botou agência adentro.
— Cá está você outra vez, — disse ela.
— Tornar a vir é o ser do que devém, — eu disse. — Tornar a vir é o ser do próprio devir, o ser que se afirma no devir. O eterno retorno como lei do devir, como justiça e como ser.
— Que que é isso? — perguntou ela, surpreendida. — Poesia?
— Sei lá, — eu disse.
Nem queria saber. Já estava entregue ao êxtase de confirmar que Dona Mônica consegue, sabe-se lá a poder de que artifícios, poções mágicas ou pactos diabólicos, pôr-se cada dia mais linda e mais gostosa. Quis, recuando dela, criar a necessária distância pra, que nem crítico de artes plásticas, contemplar aquela obra-prima de alto a baixo e de baixo a alto, mas a saleta, desde a minha última visita, tinha sido capaz de uma grande proeza: encolher. O que era, o que não era, verifiquei que parte do já exíguo jazigo que é a saleta de Dona Mônica estava tomada por pilhas de pacotes que emparedavam as próprias paredes e que, evidentemente, continham esse produto nojento que se chama livro; nojento e prolífero, visto que suas ninhadas nunca se contam por menos que centenas. De qualquer modo, recuei até o limite de encostar a bunda a uma dessas pilhas e dali o que fiz foi deixar de molho o olho sobre a, de Dona Mônica, beleza estonteante (nela, mais que em ninguém, o clichê é de todo perdoável).
— Que que você está olhando? — perguntou ela.
— Olhando você, — respondi. — Cada dia mais linda. Cada dia mais g… Cada dia mais garrida.
Contato com Miguel Desidério me deixara confiante pra seduzir e conquistar. Desidério não era nada de mais bonito que eu e no entanto comia, se não toda e qualquer, muita e qualquer mulher que lhe desse na telha da libido comer. Daí, com a cara mais sonsa, parti pra esta pergunta inocente:
— Já pensou em posar pra fotografia, Dona Mônica?
— Posar? Que que você quer dizer? Pra fotos artísticas? — disse ela.
— Até certo ponto, — disse eu.
— Pra fotos eróticas, é isso que você quer dizer, — disse ela. — Fotos em pêlo. Pois nem que a vaca tussa. Já me convidaram e eu disse que não. Qual é? Sou filha de meu pai e evangélica.
Evangélica? Evangélica e não hesita em personificar a figura diabólica de uma freira por duas horas em lugar público e concorrido? Vai entender. Mas, por outro lado, mostrei sincera indignação:
— Já te convidaram? Quem foi o patife que ousou fazer uma coisa dessas?
— Conhece um poeta chamado Miguel Desidério? — disse ela. — Pois é fotógrafo também. Me mostrou algumas fotos que tirou de mulher de tudo que é tipo: branca, preta, castanha, amarela. Tudo muito erótico. Cama, praia, piscina, banheira. Deus que me livre. Tá pensando que eu sou o quê? De vez em quando o safado liga pra mim e repete o convite. Pois pode esperar sentado.
Aproveitei a dica e sentei-me. E disse:
— Mas faça-me o favor de não me confundir com Miguel Desidério. As fotos que quero tirar de você são artísticas, verdadeiramente artísticas, e não eróticas. Ou melhor, com uma lightíssima carga de erotismo, porque até vestida de freira você fica sedutora. Por falar nisso, como é que uma briosa evangélica como você foi capaz de se disfarçar de freira?
— Sou profissional, — disse Dona Mônica, com dignidade.
A velha e mofada desculpa de todo mundo — até de uma secretária da Agência Ajax — pra fazer e ter feito toda e qualquer merda na vida. Mudei de assunto:
— E que livralhada é essa que inundou a sala, Dona Mônica?
— Esses pacotes? — murmurou ela. — Preferia que você não tivesse perguntado.
— Agora já perguntei, — eu disse. — E faço absoluta questão de ser informado a respeito. Tenho direito de. Afinal, sou praticamente da família Ajax.
Esperei enquanto Dona Mônica hesitava três segundos. Depois ela disse:
— Uma das nossas publicações foi impressa com erros escabrosos. O autor mandou recolher a edição e ameaçou processar o Sr. Eylau se ele não fizer outra às custas da agência. Um tremendo prejuízo financeiro. Coitado do Sr. Eylau. Já tem tantos problemas e ainda por cima cai-lhe sobre a cabeça essa calamidade.
Calamidade, disse Dona Mônica. Calamidade, dissera Fernando Achiamé. A mesma palavra. Calamidade, calamidade, tudo calamidade. Calamidade no Instituto Histórico e Geográfico, calamidade na Agência Ajax de Produções Literárias. E, no meio de tanta calamidade, o pobre narrador autodiegético.
— Tem um exemplar aí pra eu ver? — perguntei.
Dona Mônica abriu a gaveta da mesa e extraiu de lá o exemplar de um livro, que passou às minhas mãos. Era um romance intitulado Regina, meu amor, e seu autor chamava-se Marcéu do Espírito Santo.
— Já vi a calamidade, — eu disse. — O nome do autor está escrito errado na capa.
— Como assim? — estranhou Dona Mônica.
— O nome dele não é Marcel, com “l”? — estranhei por minha vez.
— Não, é assim mesmo, — disse ela. — O nome dele reúne as palavras “mar” e “céu”. Achei lindo isso. Achei muito romântico.
— Então o que foi que aconteceu de tão grave na edição do livro? — perguntei.
— A personagem principal chamava-se Regina, — disse Dona Mônica, — mas havia também uma personagem secundária chamada Gina. Depois do livro editorado, pronto pra imprimir, o Sr. Eylau tomou a iniciativa de sugerir ao autor que não convinha ter duas personagens com nomes tão parecidos, e o autor concordou e decidiu mudar pra Zefa o nome da tal Gina. Aí o Sr. Eylau mandou Roderico, o editorador, fazer a mudança no arquivo. Isso é fácil de fazer no computador. Você usa os comandos “localizar” e “substituir”. No caso, localizar Gina e substituir por Zefa. Você pode substituir tudo de uma vez, se quiser, mas não é prudente. O computador é meio burrinho e pode mudar coisas que não é pra mudar. Só que Roderico, que é um irresponsável, usou o comando “substituir tudo” e deu no que deu. O texto impresso do romance está todo prejudicado.
Meu olho pediu-lhe que explicasse melhor. Ela disse:
— A palavra “virginal”, que aparece umas trinta vezes no texto, virou “virzefal”. “Página” virou “pázefa”. A expressão “imagina só”, que também aparece várias vezes, tornou-se “imazefa só”. E, o que é pior, o nome da personagem principal ficou Regina só na capa e na folha de rosto; no texto do livro, de fora a fora, virou Rezefa.
Dei uma folheada no livro. Era vero. À pázefa 64, logo na primeira linha, dei com uma frase estranha, aparentemente escrita numa língua híbrida de português e uraniano: “Rezefa, a linda zefasiana do rosto virzefal, estava apaixonada.”
— E o pior, — disse Dona Mônica, — é que o problema que deu origem à calamidade não foi resolvido. Se antes o livro tinha as personagens Gina e Regina, agora tem Zefa e Rezefa.
— O pior, — disse eu, — é saber que, com Gina e Regina ou com Zefa e Rezefa, o romance é a mesma boa merda. Uma nova edição não vai salvar a literatura da calamidade original. Ou devo dizer: orizefal?
— Você já leu o livro? — espantou-se Dona Mônica.
— E preciso? — repliquei. — Basta ler uma frase pra saber.
Telefone tocou, Dona Mônica atendeu. Era uma tal de Dona Amália. Pelo que pude deduzir das falas de Dona Mônica, Dona Amália insistia com ela pra fazer alguma coisa e Dona Mônica insistia em dizer que não podia, que não tinha interesse, que não ficava bem, afinal de contas, Dona Amália, eu tenho namorado. Teodomiro Reis. É detetive particular. Eu sei. Sei. Sei. Não, claro que não. Ham. Hum. Hein? Não. Sei. Mas, Dona Amália… Sei. Hum. Ham. Sei. Posso não, Dona Amália. Olha, Dona Amália, eu estou com um cliente aqui, preciso dar atenção. Depois eu ligo pra senhora. Boa tarde.
Dona Mônica desligou, olhou pra mim meio constrangida. Tentei adivinhar o que que Dona Amália queria que Dona Mônica fizesse. Minha fértil imaginação fez de Dona Amália uma alcoviteira que queria (no que eu lhe dava toda razão) contratar os serviços qualificados de Dona Mônica como prostituta de luxo. Por que outro motivo Dona Mônica invocaria o namorado como impedimento pra proposta de tal modo razoável e lucrativa? Dona Mônica, porém, parece que leu o meu pensamento e resolveu corrigi-lo:
— Dona Amália é uma velhinha que mora no mesmo conjunto que eu. Não regula muito bem. Botou na cabeça de me casar com o irmão dela e vive telefonando pra armar um encontro entre nós dois.
— E como é esse irmão dela? — perguntei. — Rico e bonito?
— Eu acho até que ele é um rapaz alegre, — disse Dona Mônica.
— Veado? — exclamei.
Ela acenou afirmativa com a cabeça. Depois disse:
— Que tonta que eu sou! O Sr. Eylau está sozinho esse tempo todo. O sujeito que devia vir às quatro não veio. Vou perguntar se ele quer receber você antes da hora.
Algo me disse que, por alguma razão misteriosa lá dela, Dona Mônica queria livrar-se de mim. Foi até à porta da sala do Sr. Eylau, bateu e entrou. Entrou pela metade: de onde eu estava podia ver-lhe o belíssimo perfil da bunda. Logo voltou inteira e fabulosa.
— Pode entrar, — disse.
Porfírio Eylau manda, eu que sou eu obedeço. Entrei. Algumas pilhas de pacotes de Regina, meu amor tinham chegado na enxurrada até seu gabinete, reduzindo-lhe as dimensões originais. Lá estava o velho agente sentado miúdo do outro lado da mesa; sua mesa e seu cabeção conservavam, no território abreviado, a enormidade de sempre. O Sr. Eylau usava o mesmo terno e o mesmo luto das outras vezes em que o vira. Desta vez, diante da tragédia que se abatera sobre a agência no caso Zefa-Rezefa, o luto até que fazia algum sentido.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)