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Dois graus a leste, três graus a oeste – Segunda parte: A história inconfessável, ou Garibaldi para adultos – VII. O duplo assassínio na rua Tenente-coronel Maximiliano José Alves da Fonseca Júnior (final)

(Final)

Garibaldi retirou do colo materno o texto encadernado e depositou-o sobre a mesa do Sr. Eylau. Este título estava gravado com letras d’ouro na capa: Catálogo das ruas de Vitória pelo método racional simplificado. O Sr. Eylau abriu o volume e deu uma folheada, lambendo de quando em vez a ponta dos dedos. Aí perguntou:

— O que o senhor propõe é uma simplificação oficial dos nomes das ruas de Vitória?

— Sim, — disse Garibaldi. — Fiz uma relação de todos os nomes de ruas de Vitória e os reduzi a um ou no máximo dois elementos. Nenhum escritor terá mais qualquer problema pra usar um nome de rua não só em título de livro mas também, não esqueçamos, em texto de conto ou romance ou em verso de poema. Porque isso também é importante: os atuais nomes de rua são altamente poluentes: poluem qualquer página literária em que sejam inseridos.

— A simplificação, porém, — disse o Sr. Eylau, — vai certamente provocar a repetição de alguns nomes. Como você resolve esse problema?

Garibaldi, aparentemente, pensou em tudo:

— De modo muito simples. Pra esses casos adotei o método anglo-saxônico: rua Oliveira Oeste, rua Oliveira Leste. Rua Rosa Norte, rua Rosa Sul. E assim por diante.

O Sr. Eylau fechou o volume sobre a mesa. Fisguei-o pra meu lado. Abri. Havia um sumário. O projeto se dividia em cinco partes: (a) Apresentação do problema; (b) Ação predadora contra os antigos nomes de ruas de Vitória; (c) Simplificação racional da nomenclatura; (d) Operacionalização do sistema; (e) Tabela de nomes atuais e simplificados. Fui adiante até chegar à tabela. Eis uma parte do que li à página 38, referente às ruas da Mata da Praia:

Nome original Nome simplificado
Alcides Sérgio Melo Monteiro Alcides
Amélia Tartuce Nassar Amélia
Audífax Barreto Duarte Audífax Norte
Carlos Gomes de Sá
Carmélia Maria de Souza Carmélia
Danton Bastos (Desembargador) Danton
David Pimenta (Construtor) David
Darcy Monteiro (Dr.) Darcy
Denizart Santos (Dr.) Denizart
Emília Mazoco Keijock Emília
Gastão Franco Americano (Coronel) Gastão
Gilberto Martins Gilberto
Hilário Favarato Favarato
Maria de Lourdes Poyares Labuto Maria de Lourdes
Newton Thevenard (Desembargador) Thevenard
Ormandino Benezath Benezath
Pedro Luiz Zanandréa Zanandréa

Interrompi a leitura pra acompanhar a argumentação de Garibaldi, que seguia viajando de vento em popa:

— O senhor veja que o meu sistema tem muitas vantagens. Em certos casos, dei preferência ao sobrenome e não ao prenome. O que temos, então? A família inteira passa a ser homenageada e não apenas aquele indivíduo específico. É o caso, por exemplo, de Grecco, Rabelo, Caliman, Trancoso, Gagno, Neffa, Vivacqua, e tantos mais. Outra vantagem, sobretudo no caso de ser mantido o prenome, é a abrangência universal da homenagem. A rua Coronel Gastão Franco Americano, por exemplo, que só homenageava o próprio coronel, no meu sistema homenageia não só a ele como também ao sortudo Gastão, primo do Pato Donald. A rua Professor Nilo Martins da Cunha passa a ser, também, uma homenagem ao rio Nilo, e a rua Promotor Diógenes Malacarne uma homenagem, também, ao filósofo Diógenes, aquele do tonel.

— Mas não creio, — disse o Sr. Eylau, céptico, — que a Prefeitura aceitaria o seu sistema só em nome do bom senso.

— Aí é que está, — disse Garibaldi. — Eu pensei em tudo. Minha proposta contém uma isca que prefeitura nenhuma há de resistir a ela. Essa isca está na operacionalização do sistema. Proponho o seguinte. — Deu uma folheada no texto, à procura da isca passível de fisgar a Prefeitura em mortal anzol. — Onde é que está mesmo? Ah, aqui: “O executivo municipal substituirá as atuais placas de rua, onde aparecem os nomes sujeitos a simplificação, por outras, em que constarão os nomes simplificados.” Sentiu a isca? E mais: “Além das novas placas, o executivo municipal proverá placas especiais, em bronze, contendo informações sobre o homenageado específico, incluindo nome completo, datas de nascimento e morte, e um pequeno currículo de vida.” Que prefeitura vai resistir a uma coisa dessas? Já pensou a mão de obra que a operacionalização do meu sistema vai exigir? Já pensou a alegria das autoridades municipais quando sentirem o rebuliço que vão provocar em toda a cidade, a atenção que vão chamar entre todos os moradores votantes? Assim que perceberem isso, vão aceitar o meu sistema na hora.

— É possível, — disse o Sr. Eylau. — Mas ainda não entendi o que o senhor espera da Agência Ajax.

— Espero, — explicou Garibaldi, — que a agência, como pessoa jurídica, submeta uma proposta de venda do sistema, do jeito que está, prontinho da silva, à Prefeitura. Submeta, acompanhe o andamento do processo, mexa alguns pauzinhos, e, quando for aprovado, receba a grana e me pague um percentual de autor, tipo 90%, 50%, 15%, qualquer coisa simbólica. Que que acha?

— Creio que 15% é um percentual adequado, — disse o Sr. Eylau. — E qual o valor de venda que o senhor propõe para o sistema?

— Dez mil reais, — disse Garibaldi. — Mas, se eles chiarem, podemos baixar pra sete e trezentos, seis e quinhentos, algo assim.

O Sr. Eylau ficou estarrecido, e tanto que até suspirou. Depois do suspiro, disse:

— Sr. Garibaldi, acho que o senhor tem de dinheiro a mesma noção que tem de tempo. Dez mil reais é um valor ridículo. Vou propor duzentos mil para chegar a cento e cinqüenta.

— O quê? — Garibaldi quase caiu da cadeira. — Mas eu tenho vergonha de propor tanta grana assim.

— Não se preocupe, — disse o Sr. Eylau. — A Agência Ajax é que vai propor. E a Agência Ajax tem vergonha é de propor pouco, e não de propor muito. Quanto mais alto o valor da proposta, mais a gente é olhado com respeito e consideração.

Garibaldi estava sem fala. O Sr. Eylau disse:

— Vou estudar melhor o seu sistema e minutar duas coisas: um contrato para o senhor assinar e um expediente para encaminhar a proposta à Prefeitura. Deixe, por favor, o seu telefone com Dona Mônica e aguarde notícias.

Garibaldi levantou-se. A cifra, de tão vultosa, deixara-o quase catatônico. Imaginei que mais um pouco e ele arrebataria o seu Catálogo de cima da mesa e sairia correndo da agência como costuma sair correndo de consultórios dentários. Pra distraí-lo fiz-lhe esta pergunta banal:

— Sr. Garibaldi, e o jazz, como é que anda?

Seu rosto se iluminou. Eu tinha proferido a palavra mágica. Garibaldi recuperou a fala:

— O jazz anda bem, obrigado. Aliás, anda sempre muito bem por uma razão muito simples: porque o estoque de gravações que os músicos antigos deixaram pra nós é inesgotável, inesgotável no sentido de que nenhum de nós, jazzófilos, teria tempo astronômico pra ouvir tudo que gostaria de ouvir. Então o que temos? Morreram os veteranos, mas o som gravado está aí, imortal. É a nossa sorte. Porque, meu amigo, se não fosse isso, nós estaríamos fodidos. Porque o que esse pessoal anda fazendo hoje não dá pra escutar. Mas deixe eu ir, que tenho compromisso às quatro e meia lá no Centro da Praia.

— Já são mais de cinco, — disse o Sr. Eylau.

— Tô em cima da hora, — disse Garibaldi.

Apertou-nos rapidamente as mãos e lá se foi, alto e sem engonços. O Sr. Eylau sentou-se de novo e começou, coisa incrível, a sorrir. Era o sorriso cintilante do agente que via cair à mão, por milagre, a oportunidade de tirar da lama o pé da agência. Não duvidei nada que aquela noite, diante de uma imagem de Nossa Senhora da Penha, fizesse a promessa de, se tudo saísse bem, subir de joelhos a escadaria do convento. De repente desceu da dimensão do devaneio e olhou fixamente pra mim.

— Quer dar uma mordida nesse bolo? — perguntou, apontando pro Catálogo de Garibaldi.

— Dinheiro honesto é comigo mesmo, — respondi. Um pouquinho desonesto também, pensei, mas não disse.

— Leve o texto para casa, dê uma estudada, veja se tem algum furo, faça alguma sugestão pertinente e redija os documentos necessários. Não. Só o expediente para a Prefeitura. Quanto ao contrato, deixe que eu mesmo redijo. Tenho mais prática.

— Quanto ganho com isso? — perguntei.

— Cinco por cento da fatia da agência. Aliás, acho que vou elevar o pedido para quatrocentos mil com possibilidade de reduzir para duzentos e cinqüenta. O que são duzentos e cinqüenta mil reais para a Prefeitura de Vitória?

— Também acho, Sr. Eylau, — concordei; não tenho o escrupuloso cagaço de Garibaldi. Dei ali mesmo uma de Homem que Calculava e calculei mentalmente a parte que me tocaria: 250.000 – 15% = 212.500 x 5% = 10.625. R$10.625,00? Nada mal. Poderia levar a doce Fúlvia pra jantar a semana toda num desses restaurantes que cobram trinta reais o prato.

Deixei o Sr. Porfírio Iolau Eylau sorrindo sozinho e saí de seu gabinete. Mal e mal dei boa noite a Dona Mônica, com a cabeça cheia de dez mil, seiscentos e vinte e cinco reais como ia. Se ela ficou, como presumo, meio decepcionada, que se consolasse com os beijos de Teodomiro Júnior. Saí pro corredor. Coincidência: desci no elevador com os mesmos dois rábulas com que subira. De novo conversaram entre si como se eu estar ali ou ali não estar tanto fizesse. Se soubessem que quem estava ali agora era o Homem de R$10.625,00 teriam decerto agido diferente.

— Você comeu aquela recepcionista da Esculamed? — perguntou o marido da aniversariante.

— Comi e estou comendo, — respondeu o outro. — Passei a conversa nela dizendo que eu era o governador.

— Ela acreditou? — perguntou o primeiro.

— Prometi até uma função gratificada na Secretaria de Cultura, — disse o outro, rindo.

— Até quando você vai levar isso adiante? — perguntou o primeiro.

— Até ela me dar a bunda, — disse o outro. — Depois quero ver a puta me encontrar.

— Deixa ela se queixar ao governador, — disse o primeiro.

*

Saí pro ar puro do poluído crepúsculo do centro de Vitória. Que faço comigo agora? Pego um ônibus pra Jardim Camburi, um ônibus pra Jardim Camburi ou um ônibus pra Jardim Camburi? Pego o 121, pra ir pela avenida da Penha, o 161, pra ir pela Maruípe, ou o 241, pra ir pela Beira-mar? Eis aí, pensei, três avenidas que se qualificam, pelos nomes que têm, a ser palco de um duplo assassínio literário. Assim pensativo, parei diante de uma loja de eletrodomésticos. Havia uns quinze televisores na vitrine, todos ligados, e todos mostravam, em cores berrantes, a cara porca de Miguel Desidério. Ele disse alguma coisa que não entendi. Num passe de mágica, sai Miguel Desidério das quinze telas e entra Jacqueline Paganini. É linda de desesperar qualquer sujeito que, como eu, não tenha namorada. Sorrindo pra mim numa quinzena de sorrisos, ela anuncia:

— Poeta Miguel Desidério vai recitar uma de suas mais recentes poesias.

Aí, leitor, leitora, tive de ver e ouvir, a um só tempo, quinze Manoéis Desidérios recitarem, com voz mais melíflua que a de Dom Evaristo Arns, o seu poema “Todo cuidado é pouco, Jacqueline”.

FIM

Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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