1. Rés-do-chão
Terça-feira, 17:20. Cheguei ao Centro da Praia dez minutos mais cedo do que tinha combinado com o Sr. Porfírio Eylau. Não que eu quisesse mostrar zelo. Queria é tomar pé no ambiente desse shopping da Praia do Canto, que poucas vezes me acontece pisar aqui, e quando o faço é pra usá-lo como atalho entre a avenida Nossa Senhora da Penha e a rua Teixeira, ou vice-versa. Este é um shopping tipo rés-do-chão. O peso de um edifício inteiro de salas, consultórios e garagens arreia sobre seus ombros de atlas. Pessoal vai ao dentista, depois desce até o shopping pra tomar um café, pra bater um papo, pra ajustar a armação dos óculos, pra, no caso das fêmeas, dar uma olhada nos sapatos em promoção e comer na Abelha uma fatia de torta de chocolate com nozes. É um shopping em que se olha muito e se compra pouco. Na verdade, uma grande sala de estar provida de vitrines por todos os lados. Mais que um shopping de ali comprar, um shopping de ali estar, ou, em bom alemão filosófico, um shopping de da-sein. O velho e querido ócio com dignidade, coisa antiga como a velha e querida prostituição, sobrevive, como esta, aos milênios contados pela humanidade, e tem aqui local feito a calhar pra se encontrarem alguns de seus ativos praticantes.
Penetro no reduto. Percorro as alamedas que se bifurcam e que se trifurcam. Algumas dessas alamedas são na verdade becos-sem-saída, expressão canhestra, que a saída do beco-sem-saída, como a do útero, é a entrada dele. Mas quer dizer então que é aqui que se reúne, toda terça-feira, o mal afamado Clube das Terças-Feiras. E, pelo que entendi da leitura zarolha que fiz dos maçudos alfarrábios do primeiro narrador (em boa hora posto em quarentena), se reúne aqui por duas razões. Uma, porque o clube nasceu e cresceu em torno da Fígaro, a loja de discos de Alcides Vieira, hoje extinta, mas que funcionava bem ali de cara pra praça do Café Preto. Duas, porque os sócios do clube, como eméritos porcos chauvinistas que são, adoram assistir ao trotar do mulherio pelas passarelas do Centro da Praia. E, cara, pelo que me é dado ver, já nos primeiros minutos de escrutínio da paisagem, não é que eles têm até que certa razão. Há um opulento repertório de fêmeas não direi casadouras mas casaladouras nesta zona franca, e de todos os tipos, idades e tamanhos. São todas apetitosas, ou pelo rosto, ou pelos peitos, ou pelas pernas, ou pela bunda, ou pela corporação como um todo. Ou ainda por um simples detalhe, como a tatuagem plantada em negro no claro da nuca, bem ali onde cai cortante a guilhotina, ou como a testa de ventre exposta a nu, e no centro o umbigo olhando feito o olho só de um polifemo. (Poesia é outra coisa, mesmo em prosa.) Delas, quem sabe, talvez uma ou outra seja até garota de programa (a velha e querida prostituição, como o velho e querido ócio com dignidade, sobrevive, como este, aos milênios contados pela humanidade, e tem aqui local feito a calhar pra se encontrarem alguns de seus ativos praticantes), mas é preciso ter olho clínico pra diferençá-las das demais que estão por ali só pra tomar um sorvete de pistache ou pra comprar uma cueca de presente pros namorados. Coisa, olho clínico, que cá eu não tenho, pelo menos pra isso, e pelo mais pra muitas outras coisas também.
Por que de presente pros namorados? Porque o que esta terça tem de especial é que esta terça é o dia dos namorados. Dia de São Valentim. Que não sei quem foi nem o que fez de bom ou de mau pra ser guindado a santo, nem muito menos pra ser guindado a padroeiro da vasta falange dos namorados. Sei, sim, quem foi e o que fez um homônimo do santo. Isso mesmo, aquele bom rapaz, um tanto quanto cabotino, que inventou canção autopromocional que as crianças, pobres inocentes, cantavam na roda das cirandas cirandinhas de outrora:
Que é de Valentim,
Valentim zás-trás.
Que é de Valentim,
É um bom rapaz.
Que é de Valentim,
Valentim sou eu!
Deixa a moreninha,
Que este par é meu!
Tanto é dia de São Valentim que o shopping está vestido a caráter pra receber os consumidores enamorados. Só pode ser pra isso. Duvido que todo santo dia de santo exceto o dia deste santo o shopping se dê o requinte de decorar mesa a mesa da praça na base de redoma de vidro cheia d’água e três velas vermelhas flutuando acesas dentro, como naus em chamas. Duvido que todo santo dia esta loja aqui ofereça, na bandeja da vitrine, uma manequim de carne e osso enfiada em sucinto conjunto de calcinha e sutiã pra distinta clientela parar pra olhar e pra ver. Que paro pra olhar e pra ver, me esforçando pra não babar; me esforçando pra parecer que, parte integral da distinta clientela, estou examinando a calcinha e o sutiã com olhos meramente comerciais, cogitando comprar de presente pra namorada que na verdade não tenho (este não é meu dia). Duvido que todo dia este shopping brinde os fregueses com uma cantora a cantar canções de amor acompanhando-se a um violão que lhe pende do pescoço como arma de fogo. No momento em que chego à praça do Café Preto, ela está embarcando em “Preciso aprender a ser só” que, na minha opinião, não é exatamente canção pra se cantar no dia dos namorados.
Encosto no balcão do Café Preto e peço um expresso. A moça que me atende parece uma índia tupiniquim, só que mais magrela, mais sem penas nem brincos nem colares. Só que mais grácil, também. E mais filha da puta. Retribui com um bocejo o meu olhar apreciativo. Na privilegiada condição de consumidor, procuro assento numa das mesas da praça. Chego até lá equilibrando a xícara em ambas as mãos, que o material de trabalho viaja em sacola sebenta que levo ao ombro. Sento. Olho em torno. Ninguém parece ter notado a minha presença, nem da minha xícara de café expresso. Devia ter pedido um cappuccino. Tomo um gole. O café é amargo e desce amargo pela garganta. Devia ter pedido um copo d’água. Procuro um adjetivo pra definir esse líquido aziago e o adjetivo vem de imediato: aziago. Pessoal vai ao dentista pra obturar os dentes, desce ao shopping pra tomar um café, depois sobe ao gastro pra obturar as úlceras.
Fico ali, sentado. Fico ali, desdenhando a xícara de café como se outro incauto a tivesse pago, provado e largado pra lá. Fico ali, escutando com um ouvido a cantora dizer que nem que seja só pra dizer adeus, enquanto o outro ouvido ouve ruídos do shopping, conversas do shopping. Do norte: não pude ir ao seu aniversário; pois foi ótimo; muita gente?; treze comigo; logo treze?; e no final alguém ainda reparou que todas que estavam lá eram viúvas, menos eu; credo em cruz e parabéns pra você. Do sul: Investi uma grana pra sonorizar meu carro. Só de amplificadores tem quatro. Mandei tirar o banco de trás pra instalar oito caixas de som, cada uma com 250 watts. Mais uma caixa em cada porta. São sete baterias, uma pro carro e seis pro som. Do oeste: Meu sobrinho está fazendo um regime estranho: não come nada que tenha olho. Aí eu disse pra ele: Então nem cu você não vai poder comer mais.
Libero de vez os ouvidos pra ouvirem o que não querem nem precisam e solto os olhos num vôo de olhar sobre uma personagem que lá vai imiscuída entre as namoradas do dia dos namorados. É personagem de filme de Fellini: uma irmã de caridade. Uma irmã de caridade, repito, mas não qualquer irmã de caridade. Deu pra notar, pela nesga de perfil exposto ao chuvisco dos olhares, que ela tem, com perdão da reles frase, um rosto muito bonito. Deu pra desconfiar, também, nem sei como, que por baixo dos panos daquele hábito de mau agouro se esconde um corpo de fechar qualquer comércio, quanto mais o comércio de um shopping rés-do-chão igual a este. Lá vai ela, aposto que gostosa pra diabo, e diante da vitrine da Arezzo pára. Pára e fica. Nem irmã de caridade, que coisa, é capaz de resistir à exposição de sapatos na vitrine da Arezzo. Mas é coisa de um minuto. Logo ela deixa pra trás as tentações mundanas e lá se vai rumo ao sanitário feminino. Lá se vai, e seu andar tem um tique saltitante, como se ela andasse na ponta dos pés, que estranho. Ah, já sei, a pobre deve ter tido botulismo em criança, talvez até esteja aí o motivo que a levou ao refúgio do convento. Mas lá vai ela rumo ao sanitário e faço uma idéia da frustração geral que provocaria, lá dentro, com botulismo e tudo, se tirasse a porra do hábito e exibisse aquele corpo maravilhoso olhos adentro de suas irmãs seculares; aquele corpo maravilhoso reservado ao abstrato matrimônio celestial e que aqui na terra só a terra há de comer.
Pensar em tanta beleza posta a nu me traz, por associação antípoda, a lembrança do Sr. Porfírio Eylau. Cadê o puto? A experiência já demonstrou que ele não costuma ser pontual. Só que o tempo não dá colher de chá. Já são 17:40. Daqui a pouco, às 18:00, quando começarem a chegar os sócios do clube, terei de dedicar-me por inteiro à pesquisa de campo. Não terei como trocar idéias sobre o projeto com meu supervisor. Acendo um cigarro. Trago. Sopro a fumaça pro ar. Do teto da praça pendem, na direção da gente, as pontas de centenas de estalactites, esculpidas, creio eu, não pela paciente ação da água, mas do ácaro. Do alto daquele teto trinta séculos de ácaro nos contemplam. Cadê o maldito Sr. Eylau?
— Posso sentar? — diz uma doce voz feminina às minhas costas.
Seja quem fores, dona de tão doce voz, podes.
Imagino que é mais doce ainda a voz quando fodes.
Ê poeta, fiz essa rima na hora, ali, só no ouvir aquela doce voz. E aí me voltei pra olhar quem era.
Era a irmã de caridade.
2. De irmãs de caridade
Ela tomou como anuência minha paralisia vocal e sentou. Na hora nem me dei conta, mas agora minha memória me relembra que naquele momento baixou um silêncio sobre a praça, e minha intuição me assegura que todo mundo na praça se pôs a olhar pra nós. A irmã deitou sobre uma cadeira vazia a sua bolsa, que em nada diferia do comum das bolsas femininas, a não ser talvez por conter missais, rosários e cilícios em vez de batons, telefones celulares e cartões de crédito. Aí olhou fundo nos meus olhos com seus fundos olhos azuis. Eu conheço essa irmã de caridade de algum convento, pensei.
— Não vai me oferecer um café? — disse ela, apontando pra xícara de café sobre a mesa. Vi que ela estava usando, nos dedos médio e anular, alguns grossos anéis folheados a ouro e, no pulso, uma pulseira dourada cortada em finas fatias. Vi também que as unhas estavam pintadas de escarlate.
Aí eu a reconheci.
— Dona Mônica? Que significa esse traje? A senhora entrou pra um mosteiro?
E lembrei daquela canção dialogada que cantava em criança:
Dona Mônica, você quer ser freira?
Não, senhor, quero me casar.
— Mosteiro? — disse ela, com estranheza. — Por que mosteiro? Que que você tem contra a palavra monastério?
— Tudo. A palavra portuguesa é mosteiro. Monastério é tradução impensada do inglês monastery.
— Mas nas legendas e dublagens de filme só aparece monastério.
— Pra você ver. O futuro da língua portuguesa está nas mãos dos ignorantes que traduzem textos de filme. Mas a senhora entrou ou não entrou pra um mosteiro?
Ela sorriu, e os dentes quadrados luziram castiços.
— Até que não seria má idéia, mas não, não entrei pra um mosteiro. Esta fantasia é pura criancice do Sr. Eylau. Ele não pôde vir à reunião de projeto, por motivo de força maior, então mandou a mim. Mas botou na cabeça que, se eu viesse vestida de mim mesma, os sócios do Clube das Terças-Feiras não se comportariam de modo natural e a pesquisa de campo iria por água abaixo.
— Como assim, Dona Mônica?
— Ah, ele achou que não tirariam os olhos de cima de mim, — respondeu ela, franzindo os lábios diante do absurdo da idéia. — E a solução foi me mandar vestida de freira. Porque, disse ele, uma freira todo mundo respeita, até um sócio do Clube das Terças-Freiras, digo, das Terças-Feiras.
— E por que foi que o Sr. Eylau não pôde vir? — perguntei.
— Teve de ir a São Francisco com urgência, — disse ela.
— Lá na Califórnia? — me espantei.
— Não, lá no norte do Estado. Barra de São Francisco, melhor dizendo.
— Lá onde Judas perdeu as botas?
— Não sei. Nunca estive lá.
— Nem eu, mas imagino que aquilo seja um cu de mundo.
Animado em falar mal do pobre município do norte, escapuliu-me expressão inadmissível em diálogo com uma irmã de caridade. Pedi desculpas. Dona Mônica fez um ruído com a língua que interpretei como aceitação de minhas desculpas. Aí lembrei que ela tinha pedido um café.
— Quer mesmo um café, Dona Mônica? Se quer eu trago, mas deixa eu te dizer uma coisa. Esse café vai fazer um furo no seu estômago.
— O café do Café Preto? Não é possível. Eu adoro o café que eles fazem aqui. Sempre tomo.
— Não prefere a torta de chocolate com nozes da Abelha?
— Estou imensa de gorda, — disse ela. — Só como doce uma vez por semana, e esta semana já extrapolei a minha quota.
Fui num pé e voltei noutro com o café aziago do Café Preto. Dona Mônica, em atitude pouco condizente com sua condição de religiosa, tinha cruzado as pernas sob os panos. Notei, ao voltar, a ponta de um pezinho branco calçado em sandália azul de salto alto. Ah, então era salto alto e não botulismo que dava ao andar da irmã aquele estilo de ponta de pé. Melhor assim. Só que percebi, vindo de outras mesas, alguns olhares iracundos sobre aquele delicado pé de freira. As pessoas são muito intolerantes; ou será o toque sofisticado do anel de prata no segundo artelho que as deixa assim? O pé de Dona Mônica, porém, alheio estava e alheio ficou à hostilidade puritana a ele dirigida. Quanto a ela, recebeu com um sorriso a infusão que eu lhe trouxe. Mexeu aquilo com a colherinha, tomou um gole sem fazer careta. Aí me perguntou:
— Fez o dever de casa?
— Esse dever eu não devo mais, — respondi. Tirei de dentro da sacola um punhado de folhas de papel almaço e coloquei sobre a mesa, ao lado da redoma de vidro com as três velas à tona d’água dentro.
— Você não tem computador não? — perguntou ela, estranhando as garatujas esferográficas feitas em bom azul ao longo das linhas retilíneas do papel almaço.
— Não, — disse eu. — Mas espero comprar com meu salário de narrador.
Ela me deu uma pincelada de olhar. Não espere muito de seu salário de narrador, foi o que li, talvez equivocadamente, em seu olho azul sem nuvens. Ato seguinte, ela recolheu o meu relatório e atochou tudo dentro da bolsa.
— Não vai ler meu relatório? — Fiquei magoado com a falta de interesse dela pelo meu trabalho.
— Quem tem de ler relatório é o Sr. Eylau.
— Pois então diga a ele, — disse eu, — pra me dar uma resposta rápida sobre o perfil do narrador. Estou sugerindo aí um caldeirão de técnicas narrativas.
— Um caldeirão?
— Pois é. Pretendo juntar elementos de dez autores ou fontes diversas pra compor minha narração, a saber: Luís de Almeida, Raymond Chandler, Marcos Tavares, Evelyn Waugh, Nuno Castanheira, Francisco Manoel de Melo, Julio Cortázar, José Carlos Oliveira, e a Miscelânea de Garcia de Rezende.
Não sei se ela ficou um pouco impressionada, ou nada. Apenas bebeu mais um gole de café. Ih, cara, agora dou-me conta de que, tendo começado a narrativa no presente do indicativo, em algum ponto do trajeto desviei pro pretérito perfeito. Volto rapidinho, pé ante pé, ao indicativo presente, a tempo de ouvir uma voz feminina que sussurra por trás de mim: Será que ele é o namorado dela? E outra voz feminina sussurra em resposta: Acho mais que ele é padre. Um padre e uma freira namorando no dia dos namorados num shopping, isso é que é pouca vergonha, sussurra a primeira voz feminina. Daqui a pouco vão trocar presentinhos ali bem diante do nariz da gente, a segunda voz sussurra. Será que, pergunta a primeira voz, a gente devia se queixar ao síndico? Acho que a gente devia se queixar é ao bispo, diz a segunda voz.
— A décima fonte de consubstanciação da minha estrutura narrativa, — digo, pedante, tapando os ouvidos pras vozes da opinião pública — são as histórias do Pato Donald.
— Do Pato Donald? — Que bom ver Dona Mônica até que enfim surpresa com a minha criatividade.
— Sim. As histórias dos anos quarenta e cinqüenta, especificamente. Acho que têm muito a ver com o projeto, sem falar que coincidem em termos cronológicos com as fases de evolução do jazz pelas quais o personagem Garibaldi tem preferência.
— Tenho minhas dúvidas de que o Sr. Eylau aprove isso, — diz Dona Mônica, céptica. — A Miscelânea de Garcia de Rezende ainda vai, seja lá o que for, mas o Pato Donald…
— Tenho certeza de que o Sr. Eylau vai adorar, — asseguro-lhe. — Essa sacada é revolucionária demais pra que ele desaprove.
— E o que mais consta da proposta do relatório?
— Uma porção de itens, como os pontos de convergência que pretendo manter com o antigo narrador. Só pra dar um exemplo, acho que vou podar do texto o maior número possível de artigos definidos e indefinidos. Gostei desse traço estilístico do meu antecessor. Aliás, um dos poucos traços do estilo dele que eu gostei.
Passam algumas moças enlevadas com pacotes de cores veementes contendo, aposto, cuecas de presente pros namorados.
— Já comprou presente pro seu namorado, Dona Mônica? — Forma sutil de saber se a moça está comprometida ou não.
— Já, — diz ela. O monossílabo me põe desolado. Uma coisa é proibirem você de se aproximar do objeto de seu desejo com base em dispositivo anticonstitucional, fácil de derrubar com um saudável mandado de segurança. Outra coisa é o próprio objeto de seu desejo levantar barreiras intransponíveis do tipo reserva de mercado em benefício de um maldito rival que certamente não é melhor do que você em coisa alguma.
— Posso saber que presente você comprou pra ele? — pergunto, afável.
— Um baralho de mico preto, — diz ela, com sorriso apaixonado. — Amor é um saudosista, e outro dia disse que estava com saudade do jogo do mico preto, lembra desse jogo?
— Se lembro? Claro que lembro. Você tem que juntar os pares dos animais: cotia com cotia, bode com cabra, porco com porca, papagaio com papagaia, e assim por diante.
— Pois é. Saí procurando o baralho em tudo que é papelaria, até que encontrei numa papelaria bem em frente do edifício Pongal, você acredita? É uma raridade e não custou barato, mas Amor vai adorar o presente.
Esse namorado de Dona Mônica vai ver ou é veado ou é débil mental, penso com meus botões. Mas o que digo é:
— Muito original, Dona Mônica. Queria ter uma namorada igual à senhora, pra me dar micos pretos de presente no dia dos namorados. Afinal, cada casal de animais é como se fosse um casal de namorados. Só o mico preto, coitado, é que não tem namorada.
Rio ao lembrar da figura do mico preto, com roupinha tomada emprestada de algum símio de tocador de realejo. Mas logo caio em mim e me interpelo: Está rindo, cara, de quê? Pensa bem, todo mundo tem sua vaca, sua cachorra, sua porca, sua cabra. Só você que não tem. Você não passa de um mico preto, cara, sem namorada no meio dos namorados.
Dona Mônica, alheia à minha triste sina, termina o café e limpa os lábios polpudos com um guardanapo de papel. O véu de freira lhe reveste a cabeça como um elmo de pano. O rosto está circunscrito a olhos, nariz e boca. Sinto saudade das orelhas, dos louros cabelos, do alvo pescoço. O Sr. Eylau é um filho da puta. Este suplício de Tântalo só o melhor aluno do Marquês de Sade seria capaz de conceber.
— Pode me dar um cigarro? — pergunta a freira. Tiro o maço do bolso, ela se serve de um cigarro, eu me sirvo de outro. Ainda sou do tipo de fumante que usa fósforos. Acendo-lhe o cigarro bem ao estilo à la Humphrey Bogart. Usar o mesmo fósforo pra acender o meu me dá o triste consolo da ilusão de relacionamento íntimo com Dona Mônica. Ela faz bico, à francesa, como se fosse falar a palavra pupitre, e sopra anéis de fumaça pro alto ar, anéis que parecem traçados a compasso. A praça está muda de pasmo. Nunca se viu por aqui uma freira de unhas pintadas e sandálias de salto alto, ainda por cima na companhia de um namorado, e ainda por cima que fuma com a perícia de uma melindrosa.
— A senhora fuma muito bem, — sopro o elogio junto com a fumaça do cigarro.
— Obrigada. — Ela afasta a manga do hábito e dá uma olhada no relógio de pulso. São 18:00. Aí ela diz: — Acho melhor a gente ir pra outra praça. A praça do Canto. É lá que se reúne o Clube das Terças-Feiras.
Dona Mônica se levanta, cigarro entre dentes. Bate novo silêncio na praça. As pessoas se preparam pra assistir à saída triunfal da freira mais gostosa do planeta, e mais impudente. Me sinto constrangido. Me sinto mais constrangido do que o padre que foi ver Gilda. Me é desconfortável o papel que a opinião pública me atribui nessa farsa concebida pela mente tortuosa do Sr. Eylau. Afinal, resta-me ser, aqui, de duas, duas: padre, e namorado de uma irmã de caridade. Se pudesse escolher, preferia ser só padre do que ser, além disso, rival logo de quem, de Jesus Cristo.
3. Pesquisa de campo
Já estamos sentados a uma mesa da praça do Canto. Aqui também puseram sobre as mesas aquários com velas vermelhas dentro em homenagem aos namorados. Aqui também causou frisson, causou espanto, causou mal-estar, causou estranheza, causou indignação a chegada de tão insólito par de namorados. Dona Mônica é que parece não ter a menor noção do escândalo que semeia. Está inteiramente à vontade, como se circular metida em hábito de freira fosse costume (sim, amigo Alfred, evitei repetir aqui a palavra hábito, coisa que você, com sua sã consciência, não faria nunca) de longa data. Além disso, a pesquisa de campo toma posse de quase todas as suas faculdades, inclusive de toda a sua atenção.
— Está vendo aquele sujeito grandão que vem ali? — pergunta ela, referindo-se a um sujeito grandão que vem vindo em direção à praça trazendo na mão uma tulipa de chope como se fosse um círio. — Aquele é Paulinho da Embratel, um dos sócios mais antigos do clube.
Consulto rapidamente a ficha técnica do clube. Dos dados referentes a esse personagem consta o seguinte: “Paulo Faria da Silva, também conhecido como Paulinho da Embratel e, no reduto do Bar Miramar, como Paulinho Parabólica. Natural de Vitória, 1958. É o ponto culminante do clube. Dirige uma empresa de lanchas que assolam a baía de Vitória. Baixista amador aposentado prematuramente por motivos pessoais não declarados. Seu trabalho pode ser ouvido no cd Vitória Instrumental (produzido por Rogério Coimbra), nas faixas ‘Praia do Canto’ e ‘Bar Miramar’. Fato histórico: foi confundido com o guitarrista Larry Coryell num night-club de Nova York, devido à estreita semelhança física entre ambos. Apreciador de música latina e, no jazz, de guitarristas que contam uma história: ‘Não gosto dos que improvisam acorde por acorde, que juntam uma nota à outra.’ Músicas favoritas: ‘Vodka’, de Mal Waldron, ‘Brandy and Beer’, de Al Cohn, e ‘Pernod’, de Johnny Mandel. Está afastado do clube, segundo sua própria definição, por trancamento de matrícula.”
Então é este o famoso Paulinho da Embratel que não é da Embratel. Observo que traz no rosto uma barba hirsuta de dois dias. Usa camisa azul-marinho de mangas compridas dobradas a meio caminho entre pulso e cotovelo, calça bege, sapatos pretos de engraxar. O bolso da camisa acomoda, do jeito que pode, um telefone celular. Ao passar por nós põe sobre a irmã de caridade um olho injetado de petulância. Murmuro um protesto ao ouvido de Dona Mônica:
— Mas o que que ele está fazendo aqui? Na ficha consta que ele está com matrícula trancada.
— A ficha está um pouco desatualizada, — diz Dona Mônica. — O trancamento de matrícula de Paulinho provocou muito mal-estar no clube, de modo que ele acabou voltando, embora na condição de aluno especial.
Paulinho da Embratel senta-se a uma mesa contígua à nossa. Enfia o bico na tulipa, toma um gole de chope, mete o olho agudo em Dona Mônica. Ela não está nem aí. Dá uma última tragada no cigarro e atira a guimba dentro do aquário.
— Rogério Coimbra, — diz ela, olhando a guimba que se afoga n’água com um suspiro.
Rogério Coimbra chega pela passagem do sudeste. É um sujeito de altura mediana e nobre pança rotunda, e traz sobre o alto da testa um topete que é o que lhe resta da primeira infância. Está vestido de calças jeans e blusão igualmente jeans aberto sobre camisa de malha. Traz na mão um pacote de pipoca com cerca de um palmo de altura, que vai esvaziando, de grão em grão, com a pinça de dois dedos. Consulto a ficha: “Rogério Coimbra: Natural de Vitória, 1947. Administrador de empresas, embora não tenha nenhuma. Vive no mundo da lua da música. Produtor musical, pesquisador da história da música no Espírito Santo, compositor de proto-rock capixaba, violonista de rede de dormir. É autor de pesquisa definitiva sobre o hino do Espírito Santo, disponível na internet no endereço www.estacaocapixaba.com.br. Ex-cunhado do baterista de jazz John Sumner. Passou algumas temporadas na Califórnia nos anos 70 e viu tocarem, em locais históricos como o Shelly’s Manne-Hole e o Donte’s, músicos como Art Pepper, Shelly Manne, Wes Montgomery, Harold Land, Jimmy Rowles, Red Mitchell, Erroll Garner, Don Ellis, Gerald Wilson, Ella Fitzgerald, e até Bola Sete com sua guitarra brasileira. Fato histórico 1: Foi confundido com Michael Caine num night-club de Los Angeles, devido à estreita semelhança física entre ambos. Fato histórico 2: Teve ocasião de comer, no Rio de Janeiro, uma americana que foi namorada de Charlie Watts, baterista do conjunto Rolling Stones. Tiete incondicional de Bill Evans, a quem chama carinhosamente de Bill. Fora do universo musical, gosta de freqüentar feiras e supermercados. Leitura favorita: cardápios.”
— Só você? — diz Rogério Coimbra, desabando numa cadeira ao lado de Embratel. — Cadê o Velho? Cadê o resto do noneto?
— Sei não… — diz Embratel. — Acabei de chegar… Estou aqui admirando essa visão do céu, olha só… É a freira mais linda que eu já vi… Aliás, acho que é a única freira linda que eu já vi…
Rogério dá uma olhadela em Dona Mônica e se persigna, respeitoso, com uma pipoca entre os dedos.
— A freira mais linda que eu já vi, — diz ele, jogando a pipoca na boca, — foi Madre Joana dos Anjos.
— Quem?
— Não é do seu tempo, não é do seu tempo, — diz Rogério, com a impaciência dos mais velhos diante da ignorância da juventude quanto às coisas de antigamente.
Da bolsa Dona Mônica retira um estojo de maquiagem. Abre o estojo, retira dali um tubo de batom. Abre o tubo, que revela um pistilo de batom vermelho, grande o suficiente pra pintalgar os lábios de todo um convento de carmelitas. Aí, sem qualquer pejo, ela começa a passar aquele troço nos lábios, olhando-se no espelhinho do estojo. É atitude pouco comum numa irmã de caridade, mas aceitável numa irmã de caridade pouco comum como Dona Mônica. Os circunstantes, no entanto, ficam escandalizados em todo o derredor. Rogério até pára de comer pipoca.
— Qual é a dessa freira afinal? Está possuída? — diz ele.
Dona Mônica termina de pintar os lábios, que aperta um sobre o outro pra fixar em ambos a lúbrica cor vermelha. Rogério volta a mergulhar os dedos no saco de pipoca.
— Estou puto com o Velho, — diz ele. — Quer pipoca?
— Não como enquanto bebo… — diz Embratel. — Está puto com o Velho?…
— Estou, — diz Rogério. — Outro dia fui na casa de Chico tomar uma cerveja, Chico me abre aquele baú infestado de lps, aí começa a me mostrar os lps que o Velho deu de presente pra ele. De repente que vejo? Vejo um lp da orquestra de Thad Jones e Mel Lewis, igualzinho a um que eu tinha. Antes que eu me recuperasse do susto, logo depois vejo o lp Saturday Night at the Black Hawk, de Miles Davis. Abri a boca pra dizer alguma coisa, Chico me mostra uma das All Night Sessions de Hampton Hawes. Aí botei pra fora: Chico, esses lps são meus! Eu emprestei ao Velho, como é que ele agora vai e dá tudo pra você? Você precisava ver a cara de Chico. Ao mesmo tempo que queria se isentar de culpa, queria também proteger o Velho. Aí resolvi fazer teatro. Me dá cá o telefone! Vou telefonar pra esse filho da puta e dar um esporro nele! Que que ele está pensando? Que pode fazer média com os amigos dando de presente os lps dos outros? Ele que dê de presente os cds dele! Chico ficou todo alarmado: Não, Rogério, deixa pra lá, deixa pra lá. Aí que eu me animei: Deixar pra lá? Uma afronta dessas? Nada disso. Cadê o telefone desta casa? Aí peguei o telefone e Chico ficou branco.
— Mais branco… — retificou Embratel.
— Aí liguei pro número da casa do próprio Chico e fingi impaciência porque estavam demorando a atender. Como é que é, eu disse, não vai atender não, seu tratante. Atende, filho da puta, pra ouvir desaforo, que você merece. E Chico ali na minha frente, olho azul polonês assustado, torcendo pra que não tivesse ninguém na casa do Velho. Aí eu desliguei e disse, tá bom, por ora não dá pra fazer nada, mas que isso não vai ficar assim não vai mesmo. Deixa eu pegar esse cara de jeito que ele vai ver só uma coisa.
— Que será que deu no Velho?… — disse Embratel. — Nunca pensei que ele fosse capaz de sacanear os amigos dessa maneira…
— Está gagá, — disse Rogério, comendo uma pipoca.
— Dizem que lp nos Estados Unidos está valendo uma nota… — disse Embratel. — Se Chico levasse pra lá aquele baú cheio que ele tem, garanto que ia voltar com o baú cheio de dólar…
Quem é que seria que eles chamavam de Velho? Nada, no material que me fora fornecido sobre o projeto, ajudava a identificar esse personagem senil.
— Quem é esse que eles chamam de Velho? — fui obrigado a perguntar a Dona Mônica.
— É o seu antecessor, — disse ela. — O narrador original. Pelas costas eles o chamam de Velho. Na presença dele, chamam-no de senhor presidente.
— Ele é o presidente do clube? Não me disseram nada.
— Na verdade, segundo o próprio presidente, este é um clube que só tem vice-presidentes. Mas ele é considerado uma espécie de presidente honorário. Ah, olha quem está chegando: Pedro Nunes.
Pedro Nunes é sobretudo magro. Além disso tem cabelo preto, rosto fino, sorriso que vem sorrindo lá de longe. Dou uma olhada na ficha dele: “Pedro Nunes: Natural de Ibitirama, 1962, mas criado e formado em São José do Calçado. Não confundir com Pedro Nunes (1492-1544), cosmógrafo e geômetra que deu impulso aos estudos náuticos em Portugal. Este é formado em Letras e leciona na Academia de Polícia. Escritor. Autor de obras de ficção como Aninhanha, Vilarejo e Menino, este último premiado pelo governo do Estado há vários anos e até hoje inédito, porque mandaram imprimir o livro em gráfica de Caixa-Prego. Violeiro amador, gravou o cd-demo Pra que Seu Zé e Dona Ana dancem no terreiro de café à noite. Sua preferência no jazz se prende sobretudo aos guitarristas: Kenny Burrell, Barney Kessel, Wes Montgomery. É também poeta bissexto e cozinheiro semanal. De todos os sócios do clube, é o único que conseguiu namorada no próprio Centro da Praia.”
— Que frescura é essa? — Pedro Nunes vai chegando e dizendo, apontando pro aquário sobre a mesa, entre Rogério e Embratel.
— É por causa do dia dos namorados… — diz Embratel.
— Que é isso, cara? Vocês dois estão namorando?
— Pedro Nuvens, — diz Rogério, — vai ver se eu estou lá na garagem, vai.
— Acabo de vir de lá, — diz Pedro Nunes, sentando-se à mesa. — Estacionei meu carro lá em cima e desci pelo elevador. Senhores, a ascensorista desse elevador é epetacular, como diria o baixista argentino. Epetacular! Dizer que ela é gostosa é o de menos. O que interessa é que é uma morena lindíssima, de olho cinzento. Este mundo está todo arrevirado. As mulheres mais bonitas deste mundo, quando não trabalham nas padarias, são ascensoristas.
— Ou então são freiras, como essa que está ali… — diz Embratel.
Pedro Nunes volta o rosto pra olhar Dona Mônica.
— Que máquina, — diz ele.
— Por falar em máquina… — diz Embratel.
É que está passando à vista do clube uma morena muito da gostosa vestida de preto. O vestido parece que saiu da loja com defeito, pois a ponta de um lado é mais longa, tocando abaixo do joelho, e a de outro lado é mais curta, abrindo uma fenda que revela um naco da pele bonita da coxa. Por trás, as costas se mostram, em grande parte, nuas, mas o que a gente olha, mesmo, é a bela bunda panda mais abaixo. A gente, eu disse? Daqui a pouco eu vou querer entrar pra esse clube.
— Mulher vestida de preto por mulher vestida de preto, — diz Embratel, — sou mais a nossa vizinha…
— Quem é o sujeito que está com ela? — pergunta Pedro Nunes.
— É um frade, — diz Rogério, comendo uma pipoca.
— Então, — diz Pedro Nunes, com um sorriso brejeiro, — o que temos aí pode ser uma versão pós-moderna da lenda do frade e a freira. Olha o que eu estou dizendo: na seqüência eles vão acabar virando pedra.
Por que será que ser tachado de frade me incomoda mais ainda do que de padre?
— Francisco Moraes e João Luiz Mazzi, — anuncia Dona Mônica.
Os dois chegam juntos também pela passagem do sudeste. Um é baixo, outro é alto. Um é propenso a gordo, outro é magro e esguio. Um vem de camisa de malha, listrada, outro vem de camisa de malha com um saxofone impresso no peito. Um traz uma bolsa preta na mão, de alças, outro vem de mãos abanando. Um é Mr. Gentle, outro é Mr. Cool (eu ouvi um cd de Duke Ellington no fim-de-semana). Ambos moram na Praia do Canto, só que o baixo mora no alto e o alto mora no baixo; só que, no alto, o baixo mora no baixo e, no baixo, o alto mora no alto. Como é que sei? Pelos endereços que constam da ficha técnica do clube. Um mora no morro do Barro Vermelho, outro mora no pé do mesmo morro. Um mora em casa, outro mora no nono andar de um edifício de dez andares. Dou uma espiada na ficha de Chico: “Francisco Pruchalski Moraes: Natural de Vitória, 1946. Descende, por parte de mãe, de poloneses de Varsóvia, emigrados para o Espírito Santo em 1929. Também conhecido como Chico Brahma, porque o pai fez história na cidade como representante da cervejaria. É a mais recente aquisição do Clube das Terças-Feiras. Só foi admitido nesse clube fechado porque possui, em sua vasta elepeteca, uma cópia do lp Modern Jazz The Blues In. Aposentado, Chico Brahma é encontradiço nos corredores da Biblioteca Pública Estadual e outros sebos de Vitória, onde adquire livros, revistas e lps à mão cheia. À Biblioteca presta serviços especializados de lavanderia, lavando toalhas de mesa que se lambuzaram de bolo e refrigerante em cerimônias institucionais. Ganhou a licitação aberta pra esse efeito porque apresentou orçamento zero, fato histórico inédito no país e, quem sabe, no mundo. Viaja 25 km até a cidade da Serra pra cortar o cabelo. Costuma receber os amigos do clube em casa em soirées conhecidas como ‘abacaxicos’, onde se come abacaxi e se ouve todo tipo de musica em vinyl, desde Coleman Hawkins até Rodolfo e seu Acordeom. Leitura favorita: Toda e qualquer.” Quanto a João Luiz Mazzi, também conhecido como Bolão, porque a lenda garante que ele foi gordo quando jovem, é, junto com o Velho, um dos sócios fundadores do clube. Seu verbete na ficha do clube contém apenas o seguinte: “João Luiz Mazzi: Natural de Vitória, 1940. Bancário aposentado. Ler toda a primeira parte do livro Dois graus a leste, três graus a oeste para ter uma noção ainda que superficial de seus múltiplos talentos (como pianista, por exemplo) e idiossincrasias. Música favorita: ‘After the Rain’, de John Coltrane.”
— Chico, — diz Embratel, maldoso, — já estou sabendo de suas atividades como receptador de objetos roubados… Cuidado que isso dá cana, hein…
Chico dá um sorriso cândido. Já entendeu que Rogério contou ali o episódio dos lps recebidos, indevidamente, de presente.
— Ele é tão puro, tão vulnerável, tão desprotegido, — diz Dona Mônica, cheia de sentimento de caridade pelo sócio polonês do clube. — Parece uma criança no meio da gandaia.
Então mela de banha e dá pra ele, é o que me dá vontade de dizer ali de tampa, mas contenho-me em respeito à sua condição de irmã de caridade. Mas que fico puto, fico. Essa vadia não vê que eu também sou puro, eu também sou vulnerável, eu também sou desprotegido? Quer fazer caridade, irmã, faz comigo, que estou aqui, à mão, e ainda por cima carrego o ônus de passar por seu namorado sem o bônus de sê-lo.
— Tá com fome, Rogério? — pergunta Pedro Nunes, apontando pro pacote de onde Rogério continua tirando pipoca que não acaba mais. — Não almoçou não?
— Que interrogatório é esse, cara? — exclama Rogério. — Não posso comer minha pipoca em paz sem alguém perguntar se eu estou com fome e se não almocei?
— Cadê o presidente? — pergunta João Luiz. Não se sente no direito de chamar de Velho alguém que, pelo menos cronologicamente, é mais novo que ele.
— Deve estar com vergonha de aparecer aqui, o calhorda, — diz Rogério, impiedoso. E conta a João Luiz, por entre uma pipoca e outra, a história dos lps que descobriu na posse indébita de Chico.
— Ele passou pra mim pra eu guardar pra Rogério, — explica Chico. — Quem tiver algum lp e quiser que eu guarde, eu guardo, tenho espaço bastante em casa, guardo com o maior prazer. Algum lp, algum livro, qualquer coisa.
— Alguma jóia de família… — diz Embratel.
— Alguma pamonha, — diz Rogério.
Dona Mônica move a cabeça, incomodada.
— Que brincadeira de mau gosto, — diz ela. — Só porque o rapaz gosta de pamonha, vai todo sábado à praça dos Namorados e traça umas sete ou oito e leva uma dúzia pra casa.
— Dona Mônica, — sou obrigado a meter minha colher torta, — não repara não, são brincadeiras carinhosas. Homens não podem se passar a mão nem dar beijinho, que nem as mulheres, então demonstram amizade com coice.
— Não me conformo, — diz ela.
Moça de blusa amarela chega até à mesa do clube. Deduzo que seja a moça da Work Chop, a lanchonete de Alcides Vieira, que largou o ramo da música pra se dedicar ao ramo do rango. A moça vem anotar pedidos. Este pede um chope, aquele não pede nada, um terceiro pede um cafezinho e um pão de queijo, Pedro Nunes pede um quibe e uma Coca-Cola.
— E você, chuchu? — a moça pergunta a Rogério.
— Chuchu? — Pedro Nunes repete o vocativo, em êxtase.
— Mas tá certo… — diz Embratel. — Rogério adora uma feira… Rogério levanta no sábado às 6:30 da manhã, toma um cafezinho e um suco de laranja e às 7:00 já está na feira de Jardim da Penha comendo pastel… Aquele pastel que um japonês é que faz, mexendo os pauzinhos…
— Eu gosto de acordar cedo, — explica Rogério, — nos dias em que eu não tenho compromisso. Nos dias em que tenho, eu gosto de acordar tarde.
Aí, virando-se pra moça, diz:
— Traz uma cerveja pra mim, com copo geladinho do jeito que eu gosto.
A moça se afasta da mesa do clube e lá vem. Quando passa perto de nós, interpelo:
— Dá pra trazer alguma coisa pra gente também?
Ela pára e espera. Dona Mônica pergunta a mim:
— Posso pedir uma bebida?
— Mas claro, — aquiesço. — O que vai ser? Uma Coca-Cola? Uma guaraná?
— Me traz um uísque duplo com gelo, — diz ela.
Quase caio pra trás. Primeiro, onde já se viu freira beber uísque, ainda por cima duplo? Segundo, quem vai pagar isso? Eu, do meu salário mínimo que não recebi nem sei se tão cedo receberei?
— E o senhor? — pergunta a moça de blusa amarela.
— Me traz um palito, — respondo.
— Um palito? — estranha Dona Mônica.
— É. Vou dar uma de samurai sem dinheiro. Vou matar a fome palitando os dentes.
— Ponho em nome de quem? — pergunta a moça.
— Da Agência Ajax, — digo eu, na esperança, ainda que remota, de que a agência cubra despesas feitas pela equipe durante pesquisas de campo.
Os asteriscos que pairam como três nitingas sobre este parágrafo servem, primeiro, pra indicar que algum tempo passou, uns quinze minutos, desde o parágrafo anterior. Nessa meia meia hora a moça da Work Chop trouxe, em duas viagens, as bebidas dos sócios do clube, o uísque duplo de Dona Mônica e o palito do samurai. (O uísque, um Johnnie Walker de doze anos, não por ser duplo ou triplo, mas por se destinar logo a quem, causou mais um pouco de escândalo na praça do Canto, inclusive entre os sócios do Clube das Terças-Feiras, enquanto meu palito de samurai passou inteiramente despercebido, mesmo depois de enfiado ostensivamente entre os dentes.) Segundo, servem, os asteriscos, pra criar um clima de epifania (palavra muito em voga, nos dias de hoje, em estudos acadêmicos de literatura) por conta da chegada do próximo personagem. Que próximo personagem? Já vereis. Pois Dona Mônica, que tinha levantado o copo pra mais um gole irreverente de uísque, deixa mão e copo em suspenso no ar e diz:
— O narrador original está chegando.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)