— Que eu me lembre, — disse o Sr. Eylau, — não mandei chamá-lo, mandei?
— Que eu me lembre, — respondi, — mandou não. Mas tomei a liberdade de vir assim mesmo porque tenho um assunto com o senhor.
— Não cabe ao senhor ter assuntos comigo, — disse ele, — mas eu com o senhor. Não invertamos a ordem hierárquica de nossa relação profissional.
— O senhor me deve dinheiro, — entrei de sola. — Isso faz toda a diferença.
O Sr. Eylau teve um estremecimento. Leitor dirá que não escolhi a hora certa pra cobrar do pobre homem uma dívida. Pelo contrário. Essa é a hora certa: quem deve um milhão não há de se incomodar de dever (e pagar) um milhão e cem.
— O que o senhor está me dizendo, — disse ele, sorrindo com malícia, — é um desatino. O que o fez pensar tal coisa?
— Dois capítulos no ar, — repliquei. — Dois capítulos da História inconfessável. Não foi esse o nosso trato? O senhor disse, textualmente, que eu não receberia nada por intercapítulos nem por entretenimentos, e que só me pagaria quando eu produzisse alguma coisa da História inconfessável. Pois produzi. Agora pague.
— Eu li esses capítulos, — disse ele. — Achei que estão muito aquém do que eu esperava e do que o senhor prometeu. Inclusive não consegui detectar ali nenhuma das influências que o senhor apregoou.
— Temos muito texto ainda pra correr por baixo da ponte, — afirmei. — Seja como for, em “Metade palmito, metade marguerita” já há algumas alusões a histórias em quadrinhos e já está esboçada a influência de Evelyn Waugh: igual ao personagem Gilbert Pinfold, o Velho já começou a sofrer de alucinações.
— Não vi alucinação nenhuma ali, — disse o Sr. Eylau.
— Viu não? — eu disse. — E aquela sacada do “quer que te chupe”?
— Aquilo foi uma alucinação? — disse ele.
— Auditiva, — precisei.
O Sr. Eylau parou pra um ato de reflexão. Depois disse:
— Alucinação ou não, achei de muito mau gosto.
Achei necessário atualizar-lhe o conceito:
— Sr. Eylau, não existe, na literatura de hoje, isso de mau gosto. Pelo contrário, o bom gosto é a única coisa hoje que é de mau gosto. Mas voltemos ao que importa.
— Ainda não, — objetou ele. — Ainda tenho algo a dizer sobre o assunto em pauta. A influência que tenho visto em seus textos sabe qual é? É a influência do primeiro narrador.
— Como é que é? — exclamei.
— Isso mesmo, — disse ele. — Já não vejo mais em seus textos aquela narrativa seca, áspera, cínica, até escrachada dos primeiros capítulos. Dá para deduzir que o primeiro narrador está tomando posse de sua personalidade literária e assumindo controle de sua mente narrativa. Ele está encarnando no senhor. Sua escritura está cada vez mais rebuscada, mais prolixa, mais, por assim dizer, barroca.
— Barroca? — Senti-me insultado.
— Barroca, — confirmou o Sr. Eylau. — Para mim tanto faz. Meu compromisso com o autor é prover um narrador capaz de prosseguir e concluir a seqüência da História inconfessável. Mas, pensando bem, até nisso parece que o senhor vem sofrendo a influência do outro. Por que essa resistência quanto a botar para fora os capítulos inconfessáveis? Por que essa insistência em gerar uma profusão de intercapítulos e sobrecapítulos? Diria até que a fobia do outro contagiou o senhor.
Mal pude acreditar no que ouvia. Será possível, diga-me, leitor, que algo tão bizarro e sórdido esteja de fato ocorrendo? Se será, preciso tomar providências urgentes pra conter essa insidiosa possessão estilística.
— Vou examinar com calma esse assunto, — prometi, tanto ao Sr. Eylau como a mim mesmo. — Mas agora voltemos ao que importa. Acabei de passar na Bico de Lacre e recebi um cheque como pagamento de uma revisão que fiz pra editora. Se não acredita, eis aqui a evidência.
E exibi-lhe, em pleno nariz, o cheque da Desentupidora e Higienizadora Clean.
— Não há por que exibir nada para mim, — disse ele. — Eu li o intercapítulo anterior na internet. Aliás, uma observação: que o texto esteja repleto de notas de pé de página é compreensível, porque a tese da professora doutora serve de gancho para isso. O que não compreendo é por que, a partir de determinado ponto, as notas não têm mais nenhuma relação com o que diz o texto.
— O senhor já esqueceu do seu Mendes Fradique? — repliquei. E, diante da expressão de surpresa em seu rosto, prossegui: — Não lembra que Mendes Fradique, na Gramática portuguesa pelo método confuso, estica uma infinidade de notas de rodapé que não têm nada a ver com o texto? O leitor inocente vai lá ver o que é e encontra uma receita de bolo aqui, uma receita de cola pra vidro ali, mais adiante uma dica pra manter o brilho dos cristais ou a frescura das flores depois de colhidas. O que fiz foi fazer a mesma coisa, só que pior: pois as citações teóricas que escolhi pras notas, todas de Greimas, não têm utilidade nenhuma, porque não contêm nem que seja uma dica pra, por exemplo, evitar constipações. Mas, voltando ao cheque que tive o prazer de receber na Bico de Lacre, confesso que esperava merecer do senhor tratamento igual ao que recebi de Djalma Smee.
— Meu amigo pessoal, — disse o Sr. Eylau.
— O que o senhor quer dizer quando diz amigo pessoal? — perguntei. — Haverá um amigo que não seja pessoal? E o que seria um amigo impessoal? Gasparzinho, o fantasma camarada?
— Não me venha com questões abstrusas, — disse o Sr. Eylau. — Quanto ao seu pagamento, estou impedido de fazê-lo.
— Impedido como? A Ajax está quebrada? — perguntei.
Ele se fez de ofendido:
— Claro que não. Tenho sólidos patrocinadores. O que há é que não posso pagar sem infringir a cláusula nona do nosso contrato.
A cláusula nona do maldito contrato que assinei com a Ajax é uma cláusula mutável: de texto movediço: hoje reza uma coisa, amanhã outra.
— E o que reza a cláusula nona no dia de hoje? — perguntei.
— Que, — respondeu ele, — se alguma coisa em seu trabalho der motivo a processo contra a agência, ficam suspensos os seus pagamentos até à conclusão do processo. Conclusão favorável à agência, bem entendido.
— Isso se aplica ao Roderico, não a mim, — protestei. — Não tive nada a ver com o caso Zefa-Rezefa.
— Não, não, — fez ele, impaciente. — Refiro-me a outro processo, que um tal Luís de Almeida está ameaçando mover contra nós.
— Luís de Almeida? — repeti.
— Sim, — disse ele. — Esteve aqui um advogado, que por sinal tem escritório aqui mesmo neste andar, e disse que estava representando esse Almeida. Por quê? Porque Almeida alega que o senhor se apropriou, sem autorização, de um personagem que pertence a ele: Teodomiro Reis. Alega que esse personagem aparece num conto que ele escreveu há muito tempo, intitulado “O penúltimo caso de Teodomiro Reis”. Alega que o senhor está usando esse personagem, nos seus intercapítulos, na qualidade de namorado de Dona Mônica e que o usou também no entretenimento intitulado “Estudo em ébano”. Viu no que deu sua mania obsessiva de intercapítulos e entretenimentos?
Fiquei sem fala. O Sr. Eylau aproveitou pra continuar:
— Por sorte sua, e nossa, o advogado disse que Luís de Almeida, ignorando o conselho dele advogado, não pretende entrar com um processo contra nós mas sim firmar um acordo que lhe garanta o uso exclusivo do personagem.
Maldito Luís de Almeida. Há vinte anos escreveu esse conto, há vinte anos, eu disse, e nunca publicou. Agora que usei o personagem lá vem ele reclamar direitos. Mas eu estava preparado pra isso ou pra algo como isso. Recostei-me à cadeira e assumi um ar de total tranqüilidade pra dizer:
— Desse processo a gente se safa numa boa, Sr. Eylau. Luís de Almeida não está com nada. Pois acontece que nosso Teodomiro Reis na verdade é filho do Teodomiro Reis dele. E isso é fácil de provar até por meio da lógica. Luís de Almeida escreveu o conto com Teodomiro como personagem há vinte anos atrás, e nesse conto Teodomiro tinha mais de quarenta anos. Me diga agora se é possível, a bem da lógica, a fulgurante Dona Mônica namorar um detetive escroto de sessenta anos. Não, Sr. Eylau, o Teodomiro Reis da Falcão Negro, seu vizinho, não tem nada a ver com o Teodomiro Reis de Luís de Almeida a não ser o nome e, naturalmente, alguns leucócitos e hemácias.
— Este é filho do outro? — disse o Sr. Eylau. — Então Luís de Almeida não tem caso contra nós.
— Claro que não. Mas já que ele mostrou certa consideração conosco, podemos aceitar um acordo nestes termos: se ele esquecer essa furada de meter processo na gente, o nosso detetive passará a chamar-se Teodomiro Reis Júnior.
— Não é má idéia, — murmurou o Sr. Eylau.
— Ou até, abreviado, Teodomiro Júnior, — acrescentei. — A propósito, o senhor foi leitor da Vida Capichaba?
— Fui, — disse o Sr. Eylau, e ? de sorriso se afixaram em seus lábios, porque a saudosa revista é doce lembrança pra todos os capixabas que tiveram ocasião de comprá-la em bancas, como o sócio velhinho do capítulo anterior.
— Então deve lembrar, — eu disse, — de uma seção da revista que se chamava “Consultório do Dr. Nostradamus Júnior”.
— Se lembro? — confirmou ele. — Essa seção é inesquecível.
A seção inesquecível, inaugurada em 1952 na célebre revista, não era, como poderá pensar o leitor, uma coluna de orientação clínica, nem, como poderá pensar a leitora, um consultório sentimental. Nada disso. O Dr. Nostradamus Júnior, Ph. D. em Cultura Inútil, respondia a toda e a qualquer pergunta que lhe faziam os leitores da Vida no âmbito desse vasto e ilimitado território do conhecimento humano. Só que ocorre (vou entregar o bruto) que o ilustre sábio nunca recebeu consulta de leitor algum! Sim, aqui digo e assevero que o Dr. Nostradamus Júnior simplesmente inventava as consultas e, por conseguinte, os consulentes, ou vice-versa, pra justificar a permanência (por pura vaidade, porque, como os demais colaboradores, era pago mensalmente a leite de pato) do consultório nas páginas da revista. Assim, nem um só daqueles consulentes que se escondiam sob os mais diversos pseudônimos — Carola, Hermengardo, Marmanjo, Pixote Canela-verde, etc. — nunca existiu, a tal ponto que todos eles chegavam a ser ainda menos reais do que o Homem que Nunca Existiu: pois enquanto esse famoso personagem da Segunda Guerra Mundial tinha toda uma história de vida, falsa embora, minuciosamente elaborada pra enganar a contra-espionagem alemã, qualquer um dos fictícios consulentes do Dr. Nostradamus Júnior nada tinha de seu além do seu falso pseudônimo, já que mais não era preciso pra enganar o velho Maneco Pimenta, dono da revista, que acreditava piamente na farsa. Assim, falsos eram os consulentes, falsos os pseudônimos e falsas as consultas, que o próprio sábio extraía dos almanaques e das enciclopédias de que dispunha, em especial do Tesouro da Juventude.
— Eu gostava muito, — disse o Sr. Eylau, — daquele consultório. Costumava acompanhar as consultas com muito interesse. Posso até dizer que o consultório foi tão importante para minha formação cultural como uma universidade. Lembro que uma vez atrevi-me a fazer uma consulta, e para isso usei o pseudônimo de Iolau, que é meu nome do meio. Queria saber a origem e o significado da palavra intelligentzia, de uso ainda recente na época, mas não dei sorte: no número seguinte não vi mais o consultório. Tinha fechado.
Não disse nada ao Sr. Eylau, pra não perturbá-lo, mas tenho certeza de que o consultório fechou exatamente por conta da consulta que Iolau se atreveu a fazer. O Dr. Nostradamus Júnior só sabia as respostas pras consultas que ele mesmo pinçava em seus sebentos alfarrábios.
— Mas por que o senhor mencionou essa seção da velha Vida? — perguntou o Sr. Eylau. — O que tem isso a ver com Luís de Almeida?
— Tudo, — respondi. — Quer saber a identidade secreta do Dr. Nostradamus Júnior? Eu lhe direi: Luís de Almeida. Sim. Luís de Almeida e o Dr. Nostradamus Júnior eram a mesma pessoa. E se ele se assinava Júnior era porque já antes dele tinha pontificado, em jornal de Vitória, nas mesmas condições de sábio-que-sabe-tudo, um outro Dr. Nostradamus. Ora, se Luís de Almeida se apropriou do consultório do Dr. Nostradamus valendo-se do ardil de acrescentar um “Júnior” ao nome, por que não podemos nos valer do mesmo ardil pra nos apropriar do nome Teodomiro Reis? Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.
— Excelente! — vibrou o Sr. Eylau. — Esse argumento, se for preciso, será usado como golpe de misericórdia contra as ameaças de Luís de Almeida.
Fiquei todo bobo dentro das calças diante do reconhecimento, por parte do Sr. Eylau, da minha capacidade advocatícia. Quis logo capitalizá-lo:
— Bom, agora que esse problema não representa mais nenhum perigo, que tal pedir a Dona Mônica pra me fazer um cheque?
— Não creio que seja possível, — disse ele.
— O texto da cláusula nona já mudou de novo? — perguntei.
— Exatamente, — disse ele. — Agora reza que o senhor só receberá seu pagamento quando tiver produzido pelo menos o mesmo número de capítulos nucleares, isto é, da História Inconfessável propriamente dita, e de capítulos periféricos. Ora, pelas minhas contas, temos dois capítulos nucleares contra sete periféricos. Viu? O senhor está perdendo tempo com esses intercapítulos e contracapítulos e sei lá mais o quê. Tempo e dinheiro. Mas não posso deixar de reconhecer que, no caso Teodomiro Reis, o senhor me deixou aliviado com a solução proposta.
— Eu devia tê-la vendido pro senhor, — murmurei.
— Eu a teria comprado, — disse ele. — Estou sempre pronto a pagar alguma coisa por um bom tranqüilizante. Esta semana, então, foi um rabo de foguete atrás do outro. Primeiro a ameaça de Luís de Almeida, depois o caso Zefa-Rezefa, como o senhor o chama, e ainda hoje mesmo recebi uma comunicação da Lei Rubem Braga no sentido de que o Projeto Garibaldi, que apresentamos à Lei, foi recusado.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)