Garçom chega e atraca junto ao cais acostável da mesa doze, trazendo na bandeja, sobre a palma da mão espalmada, uma pizza gigante, metade palmito, metade marguerita. Chega com a empáfia e a autoconfiança de quem se sabe portador das melhores, no caso, não notícias mas encomendas. Diferente dos momentos em que traz o cardápio e em que traz a conta, este é o momento em que se sente querido, respeitado, admirado, e não só por aquilo que traz mas também por aquilo que é. Nelson Rodrigues dizia que, no futebol, o presidente do clube é que devia cobrar o pênalti. Transposta a idéia pra uma pizzaria, talvez dissesse que, ali, o proprietário da casa é que deveria, em traje a rigor, trazer a cada mesa a respectiva pizza. Mas aí reside uma das diferenças (e são muitas) entre o pênalti e a pizza. Essa peça alimentícia feita — segundo a descrição de Roberto Mazzini, de que não sei em que algures já se apropriou Luís de Almeida — feita de massa de trigo tostado, queijo derretido e, a gosto, diferentes coberturas, quem a traz pra mesa não é nem o proprietário a quem pertence a casa, nem o gerente que gere o estabelecimento, nem o cozinheiro que monta a pizza com arte e a assa no forno com engenho. Nada disso. A nobre missão recai sobre a figura simples e humilde do garçom e, num relance de mágica, a transfigura. Ei-lo eleito, ungido, iluminado; ei-lo em seu momento de glória, em que, pingado um colírio de imaginação nos olhos, pode-se até ver uma coroa de louros cingindo-lhe o cabelo; ei-lo em seu momento de valer a pena ser garçom. Os homens mais cultos, ou pseudocultos, como o Velho, por exemplo, leitor até de Giraldus Cambrensis, olham pra ele com gratidão. As mulheres mais deslumbrantes, como Maria da Penha Gotti, por exemplo, musa de leitores de Giraldus Cambrensis, entregam-se aos seus cuidados. Os homens mais ilustres, como José Garibaldi Magalhães, por exemplo, namorado de musas de leitores de Giraldus Cambrensis, anunciam com euforia a sua chegada messiânica e babam de gosto como beatos ante a hóstia consagrada.
Ou nem tanto. Porque o homem ilustre que é José Garibaldi Magalhães é também um chato profissional e um insatisfeito histórico:
— Como demorou a porra dessa pizza!
— O senhor achou? — diz o garçom. — É que, quando tem muitos pedidos, a pizza pode levar até quarenta minutos pra sair.
— Quarenta minutos? — diz Garibaldi. — Impressão que eu tenho é que esperei quatro anos.
Garçom sorri em diagonal do gritante exagero do freguês e começa a esquartejar a pizza. Daí, depois de consultar cada um dos componentes da trilogia sobre o sabor desejado, depõe em cada prato, com suma perícia, uma posta opulenta: de marguerita pra dama do regimento, de palmito pros dois cavalheiros.
— Mais alguma coisa? — pergunta ele.
— Me traz uma Coca-Cola com gelo, — diz Garibaldi.
— Eu quero, — diz Maria da Penha, — uma cerveja preta.
— E o senhor? — o garçom pergunta ao Velho. — Outro martini?
— Venha, — diz o Velho.
Vai-se garçom rumo a recolher-se à sua insignificância e o trio começa a dar atenção às suas respectivas postas de pizza. Maria da Penha deita mão ao frasco de ketchup e unta de molho de tomate a posta que lhe coube. O Velho está em vias de trinchar a sua, já babando de gula senil.
— Quer que te chupe, Garibaldi? — diz Maria da Penha.
O Velho fica tão sobressaltado com o que ouve que perde controle de garfo e faca e tanto garfo como faca fogem-lhe das mãos e tombam em cheio sobre o queijo derretido. O Velho olha pra Maria da Penha com escândalo nos olhos e constata que ela estava só oferecendo a Garibaldi o frasco de ketchup — picante.
— Depois, — responde Garibaldi, mastigando.
— E você? — oferece ela, estendendo o frasco pro Velho.
— Eu? — murmura ele, ainda embasbacado do susto.
— Sim, — diz ela, posto sobre ele aquele olho de um azul vitalício. — Quer que te chupe?
O Velho não sabe o que responder. O frasco de ketchup está na mão dela, servindo de álibi incontestável. Mas o que a mente dele registrou, foneticamente falando, não foi kerketchup, mas kerkitchup, e a distância que vai do fonema e ao fonema i, embora átonos, é a mesma que vai da santa inocência à malícia mais safada. No entanto, como contestar a evidência do frasco de ketchup oferecido em punho na mão dela? O Velho estende a mão, pega o ketchup, e aí se dá conta de que não kerketchup não. Deposita o frasco em pé à sua frente, limpa os talheres num guardanapo de papel e tenta completar a tarefa de trinchar a pizza pra poder comê-la com um mínimo de elegância.
Por alguns minutos ninguém tem mais nada a dizer. Garçom chega trazendo as bebidas, o que cristaliza ainda mais o tríplice voto de silêncio. Vai-se garçom. Garibaldi toma um longo gole de Coca-Cola e estala prazeroso os beiços de maraçapeba. Maria da Penha sorri com doçura:
— Eis aí o nosso cocacoólatra, — ela diz pro Velho.
— Então eu não sei? — diz o Velho, com simpatia pela simpatia de Maria da Penha. — Uma vez chamei-o de Coca-Cola Kid num dos textos da saudosa série Dois graus a leste, três graus a oeste.
Saudosa não mais, e sim ressurrecta, só que ele, à la marido cornudo, nem suspeita de que outro aventureiro, investido em seu pijama de narrador, é que ora deita e rola no leito da narrativa com aquela que, juridicamente, seria a sua legítima esposa: a história.
— O termo cocacoólatra, — diz Garibaldi, — é politicamente incorreto. O que você devia dizer é que eu sou cocacoólico. Afinal, já não é de bom tom dizer que um bebum é alcoólatra mas alcoólico. Acho a emenda pior que o soneto. Dizer que alguém é um alcoólico é sugerir que o cara já bebeu de tal forma todas que se tornou um homem feito de álcool. Pode-se até aplicar a ele o verso de Camões: transforma-se o amador na coisa amada.
Garibaldi olha de um pra outro de seus comensais, na expectativa de um aplauso, se não manual, pelo menos ocular. Não vem nada. Ele continua:
— Sou duodenalmente contra o patrulhamento vocabular. As palavras originais da língua, inquilinas do léxico desde o latim, são marginalizadas e substituídas por monstruosas contrafações eufemísticas que só apresentam desvantagens. Em primeiro lugar, as contrafações são mais longas, porque os eufemismos têm de fazer vários rodeios pra dar um recado: por exemplo, portador de deficiência visual em vez de cego. Em segundo lugar, são postiças e artificiais. Em terceiro lugar, são pedantes e pernósticas. Em quarto lugar, são paternalistas e discriminatórias. Em quinto lugar, são cínicas e hipócritas. Em sexto lugar, são mecanismos de censura. Em sétimo lugar, são mais ofensivas do que o termo original, como no caso de se dizer, em vez de gordo, obeso. Em oitavo lugar, não resolvem porra nenhuma de problema nenhum. Um velho, por exemplo, continua velho mesmo se chamado de indivíduo pertencente à terceira idade, ou à melhor idade, sei lá. Por essas e por outras, sou a favor de palavras como cego, surdo, velho, gordo, aleijado, doido, bêbado, anão, e veado.
— Veado? — diz o Velho.
— Não me diga que você prefere integrante de minoria sexual, — diz Garibaldi.
— São chamados assim?
— Não são não?
Enquanto os dois cavalheiros conversam de boca cheia, Maria da Penha, a pérola do trio, vai traçando a sua marguerita com toda solenidade. O Velho, que não perde dela uma garfada, admira a italianidade com que recorta a sua fatia em pequenos losangos que confia, um por vez, à custódia da boca; aí — imagina o Velho, só de estudar o semblante plácido e beatífico da moça —, a língua dá ao losango de pizza as boas vindas e transfere-o aos dentes, que se cravam nele com respeito e delicadeza, e a seguir mascam-no, mascam-no, mascam-no, inundando o recinto da boca de um sabor inefável de pão, queijo e manjericão, até transformar o losango numa pastilha de alimento que, entregue à corrente da saliva, flui até o abismo da garganta e ali se precipita pela catarata da faringe abaixo sob os olhos amendoados das amígdalas.
Tudo isso o Velho pensa com metade do cérebro; com a outra metade participa do diálogo com Garibaldi:
— Todo mundo quer meter o bedelho no vocabulário, e mudar as palavras. Fiquei sabendo que os médicos, pra mostrar que estão acompanhando os avanços da ciência, agora têm de falar aparelho digestório e não aparelho digestivo.
— Verdade? — diz Garibaldi. — Será que é pra rimar com aparelho respiratório e aparelho circulatório?
— Sei lá, — diz o Velho. — Só sei que aparelho digestivo está no índex da medicina. Se um médico usar na frente dos colegas está arriscado a levar uma vaia.
Maria da Penha faz uma pausa pra tomar um gole de cerveja. Os outros dois pausam pra vê-la beber. Ela bebe, depois limpa a espuma que lhe ficou nos lábios. Depois diz:
— Esta noite eu fiz um sonho esquisito.
O Velho estranha a locução que ela usa, fazer um sonho, em vez de ter ou até mesmo sonhar um sonho. Estranha e aprova. Diferente de novidades inócuas como aparelho digestório, a locução de Maria da Penha atribui ao fenômeno de sonhar um significado mais ativo, como se um sonho não fosse uma mera descarga inconsciente de desejos e impressões, sobre a qual o sonhador não tivesse controle nem responsabilidade, mas sim uma criação artística tão pessoal como uma peça de artesanato ou um texto de literatura em verso ou em prosa. O Velho estranha, aprova e saboreia. Pois em mulher adoravelmente estranha como Maria da Penha, devoradora de rosas, o Velho já instituiu que toda estranheza é aceita, bem-vinda e aplaudida. Toda? E o kerkitchup? Ele próprio se responde: Isso ainda está sub judice.
— Sonhou comigo? — diz Garibaldi, com a boca cheia de pizza.
— Sonhei que estava na cama, dormindo, — diz ela, — e que você estava dormindo ao meu lado. Eu estava pelada porque fazia muito calor. Aí o telefone começou a tocar. Aí eu falei: Garibaldi, telefone. Aí você disse: Estou dormindo. Aí eu me levantei, fui até à sala e atendi o telefone. Aí uma voz do outro lado da linha disse: Cadê sua roupa, Maria da Penha? Não tem vergonha não? Não vê que tem gente te olhando? Aí eu perguntei: Quem está falando? A resposta foi meio esquisita: É o narrador. E o cara desligou. Aí eu olhei pro fundo da sala e, bem no meio das sombras, onde batia um clarão de luar, vi que havia alguém olhando pra mim. Aí eu perguntei: Quem está aí? A resposta foi de novo muito esquisita: É o narrador. Aí eu senti vergonha de estar nua e tentei me cobrir com as mãos. E aí acordei.
Agora cabe é a ela olhar de um pra outro dos seus comensais, olhá-los na expectativa de uma interpretação ou pelo menos de um comentário do sonho que fez na noite anterior. O Velho, nesse momento, se arrepende de nunca ter lido o livro de Freud sobre interpretação de sonhos (ou então pelo menos o de Harald Schultz-Hencke, membro do Conselho Diretor do Instituto de Psicoterapia de Berlim, Análise dos sonhos: O sonho, espelho da vida desperta. A ambiência natural dos sonhos. Modelos de sonho e análises) pra ter algo inteligente a dizer ali. Fica tentando extrair algum símbolo da presença de um narrador no sonho da moça mas não sai nada, até que, de repente, a luz:
— Acho que você sonhou com Deus. Deus é o autor e o narrador de toda a tragicomédia humana. Ele narra o que prevê, e tudo que prevê entra no livro dos feitos da humanidade. E ele é também o leitor de seu próprio livro, até pra confirmar as próprias previsões. Por isso, tudo que ele prevê ele vê. Pra isso está em todos os lugares: do outro lado da linha de um telefone, ou nas sombras de uma sala.
— Que porra-louquice, — diz Maria da Penha. — Mas até que eu gostei.
— Contesto sua leitura, — diz Garibaldi. — Adão teve vergonha de estar nu diante de Deus, mas Eva teria tido? Penha teria tido?
— Maria da Penha não sabia, — diz o Velho, — que era Deus que estava ali. Pra ela, podia ser qualquer pessoa, eu, você, Fernando Achiamé ou Rogério Coimbra.
— Bem lembrado, — diz Garibaldi. — Acho que era Lady Coimbra, sim, no sonho de Penha. Tem tudo a ver com ele. Mas o que eu contesto é a vergonha de Penha. Pelada diante de Lady Deus, de Lady Achiamé, de Lady Coimbra, de Lady quem quer que seja, duvido que Penha sentisse qualquer comichão de vergonha. Não tem nada a ver com ela.
— Quer dizer que eu sou sem-vergonha, — diz Maria da Penha.
— Tira o hífen, — diz Garibaldi. — Você não é sem-vergonha mas sem vergonha, ou seja, desprovida de vergonha. Você bem que podia freqüentar aquela praia de nudismo em Barra Seca.
— Não gosto desse tipo de nudismo, — diz Maria da Penha. — O nudista civilizado tem a pretensão de ser mais indianista que o índio. Seria melhor nudista se adotasse a tanga em vez da nudez total. Acho que aí tem alguma coisa de exibicionismo, não do corpo, mas da doutrina.
— Ainda acho, — diz Garibaldi, — que você poderia ensinar nudismo aos nudistas. Mas voltemos ao sonho. Proponho a interpretação de que a Penha do sonho de Penha não era Penha, mas a projeção de uma outra mulher.
— Talvez fosse a minha mãe, — diz Maria da Penha, creia-se que com uma farpa de sarcasmo.
— Impossível, — rebate Garibaldi. — Nem em sonho eu seria capaz de dormir com sua mãe.
— Ah, é? — diz Maria da Penha. — Então quem poderia ser essa mulher que se disfarçou de mim pra dormir com você no meu sonho?
O Velho abre a boca pra mais uma brilhante contribuição, traçando uma analogia entre o sonho de Maria da Penha e a peça Um deus dormiu lá em casa, de Guilherme Figueiredo, que reconta a história de como Júpiter, cheio de desejo por Alcmena, assume a forma de seu marido Anfitrião pra dormir com ela. Abre a boca mas tarde demais, porque Garibaldi já deu um passo à frente no diálogo:
— Posso sugerir um porrilhão, — diz Garibaldi. — Mas o sonho é seu.
— Então eu sugiro a tal da deusa de Jucutuquara, pra começar, — diz Maria da Penha.
— Quem dera, — diz Garibaldi. — Mas também não acho que ela teria vergonha de aparecer nua diante de Deus, com toda aquela maravilhosa beleza que o próprio Deus lhe deu.
Dito isso, Garibaldi enche a boca com uma garfada de pizza, mastiga uma vez e parte pra um uivo de dor.
— Merda! — exclama, levando a mão à face esquerda.
— Que foi isso, Garibaldi? — pergunta o Velho.
— Dente podre, — diz Garibaldi.
— Não se preocupe, — diz Maria da Penha. — Hoje mesmo liguei na Clínica Deck e marquei dentista pra você.
O Velho sorri. Não de prazer pela provação dental que aguarda Garibaldi, mas de carinho diante de novo exemplo de que Maria da Penha tem uma linguagem peculiarmente idiomática. Ligar na clínica e não pra clínica: isso é novo pra mim, pensa o Velho. Devem falar assim em Marilândia.
— Marcou pra quando? Pro ano que vem? — quer saber Garibaldi.
— Pra semana que vem, — diz ela.
— Marca dentista pra mim pra semana que vem, — diz Garibaldi, — e ainda diz que eu não me preocupe? Pois já comecei a me preocupar agora mesmo.
— E eu vou junto com você, — diz ela.
— Pra quê? — diz Garibaldi.
— Pra quê? — diz ela. — Você sabe muito bem que, se eu não for junto, você não chega lá na hora. Eu te conheço. Quantas consultas você já perdeu porque chegou duas, três horas depois do horário marcado? E cada consulta perdida custa trinta reais e noventa e sete centavos.
— Eu mesmo sou testemunha, — diz o Velho, — de que Garibaldi perdeu uma consulta porque chegou doze horas atrasado.
— Garibaldi tem medo de dentista que se pela, — diz Maria da Penha.
— Razões não me faltam, — argumenta Garibaldi. — Johann Buddenbrook fez uma visita ao dentista pra extrair um dente, sofreu pra cacete, quando chegou na rua teve um derrame e morreu.
— Mas você está falando de um personagem de romance, Garibaldi, — diz o Velho. — É pura ficção.
— E de onde a pura ficção tira os seus personagens? — retribui Garibaldi. — E se você quer um exemplo tirado do jazz, ou seja, da vida real, Johnny Hodges morreu de boca aberta na cadeira do dentista. Safa!
Garibaldi se persigna pra afugentar o mau agouro.
— Última vez que fui ao dentista, — diz ele, — estava esperando a minha vez na sala de espera, e até me distraí com uma moçoila que estava lá de pernocas de fora, uma gracinha. Aí saiu o cliente que estava sendo atendido e a recepcionista mandou entrar o próximo, que era um sujeito de todo tamanho, um verdadeiro mamute lanudo. Daí a pouco ouvi o sujeito urrar de dor lá dentro. Urrou uma vez, duas, três. Na quarta vez que ele urrou eu saltei da cadeira e me mandei dali tão depressa que não quis nem esperar o elevador: desci pela escada mesmo, dez andares. É por isso que estou vivo até hoje.
No mesmo dia em que se deu esse episódio, segundo informação abalizada do narrador, que tudo sabe e quase tudo informa, delator que é, Garibaldi escreveu um poema inspirado na moçoila vista no consultório. Esse poema, aliás um soneto narrativo em duplicata e meia, vai transcrito abaixo meio que em off:
Vê lá se isso é cenário pra poema:
a sala de esperar de um consultório
de dentista; mas aí foi que a vi,
recém-chegada, a moça, à minha vista,
pernas à mostra, cálidas, e ternas,
e de sardas ajaezado o busto.
Idade? É tão infanto-juvenil
que mais não lhe dou mais que dezenove.
Faço de conta que estou alheio, mas
no que folheio a Veja de dois anos
antes, ouço as respostas que desfia
pra atendente que lhe faz a Ficha.
Seu nome é Carolina, e mora não
no Arizona mas em Novo México,
e do seu telefone diz o número,
que anoto mentalmente: dois, três, nove,
três três, meia oito. Senta-se de
frente pra mim, entreabrindo as coxas,
e a mão percorre o feno do cabelo.
Faz-me esquecer os meus cinqüenta anos,
os sulcos que ajaezam minha cara.
Faz-me sentir que tudo que desejo
desta vida é dar um telefonema
pra dois, três, nove, três três, meia oito,
e em resposta ao seu alô perguntar-lhe
o signo e o que quer ser quando crescer,
e se acaso tem algum preconceito
qualquer em relação à felação.
E ah, se não tiver, oficializar
meu interesse e entrar a seduzi-la
por amor, por dinheiro ou por magia
e virá-la do avesso ao vice-avesso,
sem pensar em porra alguma, nem mesmo
no que fazer se um belo dia o irmão
vier cobrar-me a sua comissão.
— Garibaldi, — diz o Velho, — deixa eu te contar uma história. Coisa de dois anos atrás eu também fui à Clínica Deck pra fazer um check-up. Fiz raspagem de gengiva, fiz limpeza de tártaro, fiz tratamento de canal que cada picada de anestesia parecia um coice de mula no nervo: nunca tomei anestesia tão dolorosa na vida.
— Vira essa boca pra lá, seu, — diz Garibaldi.
— E também tive, — prossegue o Velho, — de extrair um dente que estava além de qualquer possibilidade de salvamento.
— Quero ouvir essa história não, — diz Garibaldi. — Vamos falar de flores: dália, hortênsia, petúnia, resedá…
— Vai ouvir a história, sim, — impõe Maria da Penha, alinhando-se ao lado do Velho contra Garibaldi. — Vai ouvir porque já percebi que tem as melhores intenções didáticas.
— Não vai doer não, Garibaldi, — promete o Velho. — No dia marcado fui pra lá cheio de medo. Sentei na sala de espera como um condenado. Quando chamaram meu nome, reneguei-o, convicto de que meu nome não era aquele. Chamaram de novo, e eu ainda assim me recusava a aceitar a minha própria identidade. Só na terceira vez é que o superego agiu e me tirou da cadeira e me obrigou a caminhar pelo corredor da morte até o consultório onde me esperavam as mais cruéis torturas.
— Está me encorajando muito, — diz Garibaldi.
— Espera, — diz o Velho. — A praxe da Clínica Deck é o dentista aguardar a vítima do lado de fora do consultório, como um anfitrião. Pois estiquei o olho pelo corredor e vi surgir, lá no fundo, uma dentista que cruzou os braços e ficou ali à minha espera. Seu Garibaldi. Era uma loura de estontear. O corredor iluminou-se com o clarão dourado dos cabelos dela: parecia um sol nascente varrendo o corredor com seus raios. Estou sonhando, pensei. Deve ser um delírio. Não é possível que exista uma dentista assim.
— Ela que extraiu seu dente? — perguntou Garibaldi.
— Não me apresse, — diz o Velho. — A moça chamava-se Jussara Honória. Recebeu-me com um sorriso de cristal e me conduziu ao consultório. Deitei-me na cadeira. Ela cobriu a cabeça com aquela touca odontológica pra não me cegar com o brilho dos cabelos. Aí então debruçou-se sobre mim e começou-me a examinar o dente.
— Encostou o peito no seu ombro? — quis saber Garibaldi.
— Não lembro, — diz o Velho. — O que lembro é que a moça me aplicou uma anestesia indolor e depois, com um boticão, e só o nome já assusta, fez um movimento de torção, um só, e pronto. Aí, sorrindo pra mim um sorriso de Sharon Stone, mostrou-me o maldito dente se debatendo moribundo entre as garras do boticão. Quase dei um beijo naquele boticão: porque eu não senti nada. Nada. Nem um pingo de dor. Viu, Garibaldi? Não há nada que justifique seu pânico odontologofóbico.
— Não doeu nada, nada, nada? — pergunta Garibaldi.
— Nadíssima, — diz o Velho.
— Então está bem, — diz ele pra Maria da Penha. — Mas só vou se for com Jussara Honória. Não quero saber de nenhuma outra.
— Combinado, — diz Maria da Penha. — Vou ligar na clínica de novo e tratar disso.
— Sem ciúmes? — diz Garibaldi, piscando um olho masculino pro Velho.
— Me respeita, — diz ela. — Além do mais, eu vou estar lá com você.
Morre o assunto. Desce completa mudez sobre os personagens, que se empenham apenas em consumir a pizza. Maria da Penha, que já ingeriu toda a posta que lhe coube, pensa em provar agora a meia pizza de palmito. Trazido por telepatia, garçom brota na hora ao seu lado pra servi-la. A seguir, deita no leito do prato de cada um dos outros dois clientes uma fatia da meia pizza de marguerita. O Velho pede mais um martini; Garibaldi, mais uma Coca-Cola.
— Você já leu A câmara clara, de Roland Barthes? — pergunta o Velho a Maria da Penha.
Ponto pra ele. Ela abre um claro sorriso.
— Um dos meus livros de cabeceira. Uma das melhores análises da fotografia como arte que já li.
— Você leu alguma outra? — Garibaldi ataca.
Nesse momento adentra pizzaria adentro um sujeito de aparência melancólica e neurastênica, em que predominam vários matizes da cor cinzenta. Dessa cor é a pele, o cabelo, a indumentária. O sujeito atravessa o salão e senta-se a uma mesa ao pé da escada que leva ao segundo andar. Garibaldi acompanhou-o com um olhar intensivo.
— Você viu quem chegou? — diz ele a Maria da Penha. — Vou lá cumprimentar.
Levanta e lá vai, desengonçado, até à mesa do sujeito cinzento, onde acosta que nem um barco ébrio. O Velho interroga Maria da Penha com o olhar.
— É o herói de Garibaldi, — diz ela.
— É músico? — diz o Velho.
— É, — diz ela, — mas não é por isso que Garibaldi admira o cara, mas por causa de uma proeza especial. E se você quer saber o que foi, pede a Garibaldi pra contar, não a mim.
Garibaldi fica lá de papo com o seu herói. Está em pé, meio curvado. Não deve se achar digno de sentar à mesma mesa com tão heróica personalidade.
— Voltando à Câmara clara, — diz Maria da Penha, — o que eu não esqueço naquele livro é a foto de um jovem condenado tirada na véspera da execução. E a legenda que Barthes deu à foto: Ele está morto e vai morrer.
— Sabe o que eu penso, — diz o Velho, — quando vou ouvir o disco de um músico que já morreu, Lester Young, por exemplo? Eu penso: Ele está morto e vai tocar.
Maria da Penha recebe em silêncio as palavras do Velho. Os dois apenas se entreolham, ele com camuflado amor, ela com um sorriso enviesado nos lábios finos. Garibaldi que se cuide. Com intervenções como essa agora e aquela do corvo e da águia, o Velho vai aos poucos enfiando uma banana de sedução no desprotegido cu do imaginário de Maria da Penha.
Garibaldi retorna à mesa de origem. Está feliz porque prestou suas homenagens a um de seus ídolos maiores.
— Tenho o maior respeito por aquele cara, — diz ele. — Sofrônio Dantas.
— Conta a ele por quê, — diz Maria da Penha.
— Conta, Garibaldi, — pede o Velho.
— Sofrônio foi casado não sei com quem, — conta Garibaldi, — depois separaram e a mulher foi morar em São Paulo. Só que telefonava todo dia pra ele aqui em Vitória pra fazer cobrança, pra reclamar da vida que teve com ele, pra encher o saco. Tanto a mulher telefonou que um dia o pobre do Sofrônio não agüentou mais. Tomou um avião, foi até São Paulo, pegou um táxi no aeroporto, foi até o apartamento da mulher, deixou o táxi esperando lá embaixo, subiu, tocou a campainha, ela abriu a porta, aí ele deu uma porrada na cara dela, depois desceu, pegou o táxi, voltou pro aeroporto, tomou um avião e voltou pra Vitória. Ah, meu amigo, que atitude sublime e admirável! Meu sonho é fazer a mesma coisa um dia.
— Não comigo, — diz Maria da Penha, fechando um punho ameaçador.
— Com você, não, amor, — diz Garibaldi. — Com Ângela.
— Ângela? — O Velho tudo quer saber.
— Ângela de Brim, — diz Maria da Penha. — A primeira mulher dele.
— Só que Ângela não quer saber de mim, — diz Garibaldi, — nem pra me torrar o saco. Queria que ela me torrasse o saco só pra ela ver o que é bom pra tosse.
Maria da Penha toma um gole de cerveja e depois diz:
— Tenho pra mim que músico, sobretudo de jazz, é o pior marido pra uma mulher. Mulher de músico de jazz sofre.
— Sofre a que quer institucionalizar o marido, — rebate Garibaldi, — burocratizá-lo, transformá-lo em bicho-família. Que aliás foi o caso de Sofrônio. Ele e a mulher moravam em São Paulo, e ela se queixava o tempo todo que Sofrônio saía quase toda noite pra tocar jazz em algum lugar em vez de ficar com ela em casa vendo novela. Aí tanto insistiu que trouxe Sofrônio pra Vitória. Sendo uma cidade pequena, ela imaginou que não devia ter muito lugar aqui pra ele tocar jazz: não devem nem saber o que é isso lá. Pois Sofrônio se enturmou em Vitória e passou a sair toda noite pra tocar jazz em algum lugar. Aí o casamento estalou e rebentou. Tinha que. Músico de jazz precisa de liberdade sem responsabilidade pra poder fazer jazz. Músico de jazz é o canário que só canta fora da gaiola. Lembra do filme Os deuses devem estar loucos? A pergunta foi feita pro Velho. Que meneia com a cabeça que não.
— Já contei essa história pra Deus e o mundo, — diz Garibaldi, a título de epígrafe.
E é verdade. Certa vez, no tempo em que Garibaldi era um mulherengo ainda mais contumaz que hoje, namorava ele uma certa Flora, a quem contou essa história no momento mesmo em que, na cama, repousavam os dois de uma trepada. Três dias depois a mesma Flora, penetrando no apartamento de Garibaldi, ouviu o som de água correndo e de vozes molhadas vindo do banheiro. Esgueirou-se então até à porta entreaberta do banheiro, e ao peito dela aplicou um ouvido clínico. Garibaldi estava no chuveiro com uma certa Cora, celebrando num banho a dois o que fora, entre ambos, a trepada inaugural. E, pra horror de Flora, ele estava contando a Cora a mesma história que contara a ela três dias antes. Mais do que a trepada com Cora, o que enfureceu Flora, levando-a a invadir, que nem uma ostrogoda, o chuveiro de Garibaldi, foi a perda de exclusividade daquela história. Que história era essa? Era esta:
— Um aborígene africano ou australiano sai lá do fim de mundo onde vive a tribo e vem pra civilização. Um dia, pra comer, mata um novilho que encontra num pasto. O dono do novilho dá queixa e o aborígene é preso e levado diante do juiz. Tem um sujeito que se interessa pelo caso e tenta defendê-lo. À noite, esse sujeito chega em casa e a mulher pergunta como é que foi o julgamento. O sujeito responde que o selvagem foi condenado à morte. A mulher fica admirada: Foi condenado à morte porque matou um novilho pra comer? E o marido explica: Foi condenado a dois meses de prisão e, no caso dele, é o mesmo que uma condenação à morte. Músico de jazz tem a mesma têmpera que esse aborígene. O casamento também equivale, pra um músico de jazz, se ele deixar, a uma condenação à morte: nem que seja a sua morte como músico.
— Está hiperbólico hoje, Garibaldi, — diz o Velho.
— Me deixa colocar a questão de outra maneira, — diz Garibaldi, como se fosse debatedor em mesa redonda acadêmica. — Hergé, um desenhista belga de histórias em quadrinhos, é o criador de Tintim, um repórter adolescente que se mete em mil aventuras e peripécias. Além de Tintim, Hergé criou também outros dois heróis infantis, os irmãos Jo e Zette. Pois Hergé fez cinco álbuns de Jo e Zette e parou pra se dedicar inteiramente a Tintim. Motivo? Simples: porque Tintim vivia sozinho e era dono de seu próprio nariz, enquanto Jo e Zette tinham de pedir licença ou de dar satisfação aos pais pra sair pelo mundo em suas viagens aventurosas. As mulheres dos músicos de jazz são como os pais de Jo e Zette: só servem pra atrapalhar a viagem e retardar a aventura. Resumo da ópera: músico de jazz só cria sem trela no pé.
— E as mulheres deles que se estrepem, — diz Maria da Penha, tomando as dores das suas congêneres.
— Meu amor, — diz Garibaldi, até com ternura. — O músico de jazz não tem culpa de ser músico de jazz. As mulheres que se cuidem. Se não querem se dar mal, que caiam fora enquanto é tempo.
— Antes de serem estranguladas pelo marido, — diz Maria da Penha, — como você me disse que aconteceu com a mulher de um deles.
— Mulher de quem, Garibaldi? — pergunta o Velho.
— De Al Haig, — diz Garibaldi. — Mas Penha está deturpando o que eu disse. Eu disse que Al Haig foi acusado de estrangular a mulher, e por sinal teve um trabalhão danado pra provar que era inocente, o que é sempre mais difícil de provar quando se é inocente do que quando se é culpado. Segundo Al Haig, o que aconteceu foi que a mulher estava bêbada e rolou escada abaixo.
— Como é que se morre estrangulado rolando escada abaixo? — questiona o Velho.
— Tá insinuando o quê, cara? — rosna Garibaldi. — Al Haig foi um dos maiores pianistas do bop. Só podia ser inocente. Admiro você, que diz que gosta de jazz, insinuar um absurdo desses.
— Mas você está enganado, Garibaldi, — diz Maria da Penha, — quando diz que o casamento destrói o músico de jazz como músico, porque o músico sempre cai fora a tempo. Já a mulher do músico o casamento a condena a se destruir. A encher a cara até cair da escada e morrer, a ficar neurótica até ser internada num manicômio ou tentar o suicídio.
— Isso eu não posso negar, — diz Garibaldi. — Joe Albany, por exemplo, outro grande pianista do bop, uma das mulheres dele tentou o suicídio, e a outra não só tentou mas sua tentativa, como se diz, foi coroada de sucesso. Diane, a segunda mulher de Art Pepper, também tentou o suicídio mas escapou. Está, em compensação, imortalizada numa balada chamada “Diane’s Dilemma”. Pior, porém, foi o que fez uma namorada de Lee Morgan: descontou no pobre do trompetista: matou Lee Morgan a tiros em pleno clube onde ele estava tocando.
— Paixão, Garibaldi, — diz Maria da Penha. — Ela fez isso por pura paixão. Coisa que vocês, homens, não entendem.
O apaixonado Velho se ressente de ser alinhado junto a Garibaldi como incapaz de paixão. Garibaldi, esse, retruca:
— De paixão? Eu não diria isso. Pra mim é tudo uma questão de sócio-psicologia ou de psico-sociologia. Você mesma disse, outro dia, Penha, que músico de jazz não é colecionador de coisa alguma. Músico de jazz não coleciona selo, nem mulher, nem filho, nem dinheiro, nem disco, nem nada. Pelo menos os músicos da idade de ouro do jazz, que vai até os anos sessenta. Tudo neles é passageiro porque a própria música deles é passageira. Lembra a história de Benny Carter?
— Que história de Benny Carter? — pergunta o Velho.
— Quem conta é o crítico Benny Green nas notas de um disco, — diz Garibaldi. — Benny Green sempre teve a maior admiração pelos solos de Benny Carter naquelas gravações que Carter e Coleman Hawkins fizeram com Django Reinhardt em Paris nos anos trinta. Achava aquilo tão bom, tão fantástico, que ficava imaginando que Benny Carter também devia ter uma cópia daquele disco e ouvir de vez em quando e sentir orgulho por ser o autor daqueles solos. Um dia, conversando com Benny Carter, mencionou o assunto. Pra sua estupefação, Benny Carter nem se lembrava de ter gravado aquilo, e nunca tinha possuído nenhuma cópia do disco. Gravou a coisa e esqueceu tudo logo depois. Atitude inteiramente coerente com o espírito do jazz. O que foi feito ontem, tenha sido gravado ou não, ficou pra ontem. O que interessa é sempre o próximo solo. Por aí você vê que eles não colecionam nem mesmo as próprias obras-primas. O músico de jazz ideal, que aliás está extinto ou em extinção, é aquele que reduz as suas propriedades materiais ao mínimo: os instrumentos, é claro, e algumas roupas. Não precisam de mais nada pra serem o que são.
— Rogério Coimbra, — diz o Velho, — vive falando de Lee Konitz, que está com mais de setenta anos e mora num apartamento que só tem uma cama e um frigo-bar. E ele próprio só tem, além da roupa e dos instrumentos, um copo pra beber água.
— Ainda tem coisa demais, — diz Garibaldi. — Como fez filósofo Diógenes, bem que podia dispensar o copo porque dá pra beber água na concha das mãos.
— Mas será que dá pra beber uísque e vodka na concha das mãos? — diz o Velho.
— Vou experimentar, — diz Garibaldi.
Maria da Penha arrematou sua pizza de palmito e bebe um grande gole de cerveja. Depois disso acende um cigarro e tira logo dele o benefício de uma tragada.
— O jazz, — diz Garibaldi, — é um planeta quase que exclusivamente masculino. Tirando as cantoras, você conta nos dedos as mulheres que fizeram carreira no jazz, e a maioria se dedicou ao mais unissex dos instrumentos, o piano. Quer ver?
Garibaldi põe-se a marcar nos dedos à medida que vai cantando a víspora de cada nome:
— Lil Armstrong; Mary Lou Williams; Marian McPartland; Jane Getz; Jessica Williams; Susan Chen; Patti Bown.
— Patti Bown tocou, — diz o Velho, exibindo conhecimento, — naquela célebre jam session de 1960 em Paris que reuniu Bill Coleman, Quentin Jackson, Budd Johnson e outros. Quando eu fazia meu programa na Rádio Universitária de vez em quando eu tocava uma faixa desse cd.
O Velho manteve, durante sete anos, na Rádio Universitária FM, um programa de jazz, quem diria. Sete anos de pastor serviu ao jazz e ganhou o quê com isso? Não entende de jazz um terço.
— Foi no seu programa que eu ouvi esse cd, — diz Garibaldi.
— Na verdade o que você ouviu foi uma gravação em fita desse cd, — explica o Velho. — Eu tinha um trato com Alcides, da Fígaro. Ele me emprestava os cds e eu gravava em fita pra tocar na rádio. Em troca, eu dava a ele o patrocínio do programa.
— Ele saía perdendo, — diz Garibaldi, — porque o programa só tinha dois ouvintes: João Luiz Mazzi e eu.
— Três, — diz o Velho. — Eu também ouvia, em casa.
— Você não conta, — diz Garibaldi. — Você é hors concours. Você e o locutor da Rádia.
— Da Rádia? — Maria da Penha esboça um sorriso.
— É assim que Lady Coimbra chama a Universitária, — esclarece Garibaldi. — Ele também já teve um programa lá. Uma noite uma moça ligou por alguma razão e perguntou se era da Rádia. Lady Coimbra adotou o nome na hora.
— Até hoje eu me arrependo, — diz o Velho, — de não ter comprado aquele cd de Bill Coleman.
— Até hoje eu me arrependo de você não ter comprado, — diz Garibaldi. — Você devia ter pedido a minha opinião.
— Eu nem conhecia você, Garibaldi, — diz o Velho.
— Isso não é desculpa, — diz Garibaldi. — Você podia ter perguntado a Alcides quem era o formador de opinião da loja e ele teria encaminhado você pra mim.
— Pra te dar o gostinho, — diz o Velho, — de formar a minha opinião? Muito obrigado. Não preciso da sua opinião em matéria de jazz. O que me faz lembrar, Maria da Penha, uma situação esdrúxula que eu passei uma vez com seu namorado. Estou eu na Fígaro vendo as novidades. Tinham chegado duas cópias de um cd de Lester Young com velhas gravações dos anos 40. Resolvi ficar com uma cópia. Aí chega esse filho da mãe. Lá vou eu mostrar a ele o cd, pra ele ficar com a outra cópia antes que outro aventureiro passasse a mão. Pois esse sujeito pega o cd, dá uma olhada na ficha técnica, abre a caixa, dá uma cheirada no cd, fecha a caixa, dá outra olhada na ficha técnica, aí me devolve o cd e diz: É bom; pode comprar. O filho da mãe achou que eu estivesse pedindo o raio da opinião dele! Vai ser presunçoso assim em São Mateus!
— Não lembro disso não, — diz Garibaldi.
— Me faça o favor de se lembrar, pelo menos, que eu também tenho ouvido.
— Muito ruim, — diz Garibaldi. — Já vi você confundir sax-alto com sax-tenor.
— Quando? Me diz quando, — exige o Velho.
— Me lembro de uma vez, — diz Garibaldi, — que você quis terminar o seu programa com uma homenagem a John Coltrane, que estava fazendo vinte anos de morto, sei lá, e escolheu uma das faixas do cd Cannonball & Coltrane. Lembra disso?
O Velho começou a ficar vermelho.
— Aí você tocou “Stars Fell on Alabama”, — diz Garibaldi. E, virando-se pra Maria da Penha: — A única faixa do cd em que Coltrane não tocava.
— Eu não me dei conta, — defende-se o Velho. — Tinha tempo que não ouvia aquele cd. Não lembrava que tinha uma faixa em que Coltrane ficava de fora, e por azar escolhi logo aquela faixa pra tocar no programa.
— Mas voltemos ao assunto que interessa, — diz Garibaldi. — Temos sete pianistas fêmeas no jazz, sem falar nas mais recentes, tipo Geri Allen e Renee Rosnes, e nas doidas de pedra, tipo Carla Bley e Marilyn Crispell. E fora do piano você encontra no saxofone uma Vi Redd, que fez a primeira gravação de “I Remember Bird”, no trombone uma Melba Liston, na guitarra uma Emily Remler, no sax-soprano uma Janeira Bloom.
— Janeira Bloom? — o Velho estranha.
— Jane Ira Bloom, se você prefere, — diz Garibaldi.
— Você esqueceu Lorraine Geller, — diz o Velho, com um sorriso de triunfo. — E Jutta Hipp.
— Não me venha com jazz europeu, — diz Garibaldi. — Jutta Hipp era só uma pianista alemã que tocava igual a Hank Jones e que gravou um disco com Zoot Sims e depois? Depois pocou e fedeu. E Lorraine Geller, quem é mesmo?
— Esqueceu? — diz o Velho. — É a pianista daquele cd que André Gurgel emprestou pra gente, lembra não? Presenting Red Mitchell.
— Ah, sim, — diz Garibaldi. — Lembra, Penha? Você gostou muito da capa do disco, que tem um gato abraçado às cordas do contrabaixo de Red Mitchell.
— Sim, claro, — diz ela. — Parecia até o Juninho.
— Mas que fim levaram pianistas como Jane Getz e Lorraine Geller? — diz Garibaldi. — Jane Getz, que não tem nada a ver com Stan Getz, depois que gravou com Mingus o disco Right Now, não sei o que foi feito dela. E Lorraine Geller, que casou com Herb Geller, deve ter tido uma porção de filhos com ele e largado o piano pra fazer tortas de maçã.
— Pelo visto, o jazz não serve mesmo pra liberar a mulher, — diz Maria da Penha. — As esposas se recolhem às clínicas de repouso, as pianistas se recolhem às cozinhas.
— Será que teria liberado você? — diz Garibaldi.
— Eu sempre fui liberada, — retruca Maria da Penha. — Eu já nasci liberada.
— Por falar nisso, — diz o Velho, — vou tentar adivinhar onde você nasceu.
— Três chances, — diz Garibaldi, como um árbitro. — E vai errar as três.
— Marilândia, — diz o Velho, com a maior segurança.
— Não, — diz o árbitro.
— Não? Então Nova Venécia.
— Não, — diz o árbitro.
O Velho resolve arriscar uma das colônias italianas mais antigas e mais óbvias:
— Só pode ser então Santa Teresa.
— Também não, — diz o árbitro. — Quer mais trezentas chances?
— Ibiraçu? — diz o Velho. — Itarana? Castelo? Alfredo Chaves? Afonso Cláudio? São Gabriel da Palha? Venda Nova?
A cada tentativa do Velho, Garibaldi, enquanto espia as unhas, vai respondendo com um não sereno e feliz. Maria da Penha resolve interferir e acabar com a brincadeira:
— Eu não sou daqui. Sou de São Paulo.
— De São Paulo? — O Velho quase cai pra trás.
— E ainda por cima de Botucatu, — diz Garibaldi, fechando a crônica com chave de parafuso.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)