— E tem tempo que você gosta de jazz? — pergunta o Velho à moça de boina.
Cenário é uma pizzaria do bairro de Jardim Camburi, na franja setentrional da mui leal cidade de Nossa Senhora da Vitória, metrópole-mor e grã-capital do egrégio Estado do Espírito Santo. O salão é amplo no sentido longitudinal: um passadiço mal iluminado que se estende por dir-se-íveis léguas e mais léguas a fora até a longínqua, quase inacessível, cozinha. Se estivéssemos na Europa, onde fronteiras entre diferentes nações cortam, às vezes, pelo meio, um dos cômodos de uma casa, conferindo a ela uma indesejada dupla nacionalidade, poderia acontecer, se na Europa estivéssemos, de comerem os fregueses aqui na Bélgica a pizza preparada ali na Holanda. Mas não estamos na Europa, estamos, pro que der e vier, no Brasil, e o salão da pizzaria, embora extenso a perder de vista, não passa disso (ah, amigo Alfred, eis aí mais uma vez a tua perniciosa influência!), ou seja, não passa de um mega-refeitório, e qualquer distração pode levar o freguês a imaginar-se sentado pra comer em uma caserna ou em um mosteiro.
Diga-se de passagem que nem se deram os proprietários por satisfeitos com os vastos acres de chãs e planas estepes de que dispõem aqui embaixo para acomodar as esperadas hordas de fregueses famintos e pagantes. Não. Na impossibilidade de estender o recinto da pizzaria, para oeste, até o meridiano de Tordesilhas, contornaram a restrição geográfica seguindo a bem sucedida estratégia das incorporadoras e estenderam-no — o recinto — para cima. Para cima, sim, pois a um canto do recinto um lance de degraus — compondo uma escadaria sem corrimão — conduz ao tão quão vasto convés superior que, como nos Titanics da vida, destina-se a uma classe restrita e diferenciada de fregueses: neste caso, aos não fumantes.
Não se sabe quanto a lá em cima, mas quanto a aqui embaixo não foi feito nem o menor esforço pra se cometer uma decoração do ambiente. As paredes tiritam em sua gélida nudez, e as mesas e as cadeiras ocupam maciçamente o salão, a ponto de inviabilizar a presença de qualquer corpo estranho que ali pudesse se imiscuir com tímida veleidade decorativa, como, digamos, uma pobre palmeirinha chinfrim enfiada num vaso anêmico de cerâmica. Mesmo sobre as mesas o que há são objetos congenitamente utilitários: saleiros, paliteiros, frascos de ketchup, de mostarda, de azeite, e um cinzeiro de vidro que já recolheu em seu seio várias gerações de guimbas de tudo quanto é marca de cigarro.
É incalculável, claro, no salão, o número das mesas e das cadeiras, e como tal impossível de ser calculado a não ser pelos garçons e por Beremis Samir, o homem que calculava. Mas quem disse que isso importa? Porque, dentre todas essas mesas — em sua maior parte esperando, entediadas como putas, os seus fregueses —, a mesa doze é a única que se pode chamar impunemente de umbigo da crônica. Definida em termos meramente geométricos, essa mesa nada mais não é que um quadrilátero um tanto vulgar, como as demais todas; difere delas, porém, em termos puramente metafóricos, que é o que realmente importa em literatura e adjacências, porque adotou esta noite a cidadania de triângulo, naturalizou-se triângulo, e triângulo escaleno, que é aquele cujos ângulos são todos entre si desiguais. A moça de boina, interpelada acima à queima-roupa pelo Velho, chama-se Maria da Penha Gotti. À sua esquerda, lado do coração, vê-se o namorado dela, um chato profissional histórico chamado José Garibaldi Magalhães. À sua direita, lado da razão, vêem-se três pessoas numa só: o sujeito que ali está, a quem o texto se refere, inexorável, como o Velho, tem uma trindade de funções vitais: é presidente do Clube das Terças-Feiras, amigo de Garibaldi e apaixonado por Maria da Penha. Pronto. Está posta a mesa pro primeiro capítulo à vera da história inconfessável. Vamos em frente, que temos quatro anos de atraso narrativo pra recuperar.
Maria da Penha Gotti pensa duas vezes e duas vezes sopra pro lado miasmas de fumaça do cigarro antes de responder à pergunta impertinente do Velho: se tem tempo que ela gosta de jazz.
— Estou aprendendo a gostar de ouvir, — ela diz, modesta e precisa, e tritura, no cinzeiro de vidro, o toco do cigarro, apagando o último sopro de vida que ainda fulgia nele. — Antes de conhecer Garibaldi eu gostava de ver.
— De ver jazz? — O Velho ergue um sobrolho.
O Velho é um homem de cinqüenta e um pra cinqüenta e dois anos. Não é, dirá alguém, idade tão provecta assim que justifique o epíteto que, inexorável, lhe impõe o Texto. Justificam-no, porém, a barba alvacenta que lhe cobre o baixo ventre do rosto — uma barba velhaca que embranqueceu antes do tempo, antes dos pêlos cranianos e pubianos — e a alma borolenta que lhe governa os pensamentos, as palavras e os atos, em sua maioria, é justo que se diga, bisonhos e mesquinhos.
— Sempre me amarrei, — Maria da Penha explica, — em fotografia de jazz, sobretudo no trabalho de fotógrafos como William Gottlieb, Ted Williams, Bob Parent e Herman Leonard. — Os nomes ela pronuncia à latina, adicionando sílabas onde caibam: Gottiliebi, Parenti, Leonardi. — Eles descobriram a beleza plástica do mundo do jazz e passaram a vida à caça de imagens desse mundo.
A mesa ao lado acaba de ser ocupada por um grupo de três mulheres e um homem. A mesa justamente ao lado; estranho o instinto gregário dos seres humanos, que os leva, como aqui, em que a oferta de mesas se faz às grosas, a buscar uma estreita contigüidade com seus semelhantes, pra não deixar passar sem ser colhida a ocasião oportuna de importuná-los ou de serem importunados por eles.
— Penha é fotógrafa, — Garibaldi esclarece.
— Ah! — exclama o Velho, como se isso explicasse tudo que é mistério na moça de boina. Explica, pelo menos, a máquina fotográfica com que Maria da Penha disparou em cheio contra os dois varões da mesa, há qualquer coisa de cinco minutos atrás, nos idos de dezembro de 1998: Maria da Penha tem porte de arma. — Fotógrafa profissional, eu presumo?
— Sim, — diz ela. — Faço fotos de arte, de moda, books de manequim, casamentos, batizados, aniversários, formaturas, recepções, reproduções, o que der e vier eu faço, em p&b ou a cores. Só não faço fotos aéreas porque enjôo no avião. É. Você acertou. Sou profissional, sim.
— Só que às vezes nem tanto, — diz Garibaldi. — Foi fazer um casamento semana passada numa igreja. Tirou duzentas fotos. Fotos da noiva entrando na igreja, fotos de damas e daminhas de honra, fotos da horda de convidados, fotos do padre, fotos dos pais do noivo e da noiva, fotos de padrinhos e madrinhas, fotos de bênção das alianças, fotos de noivo metendo aliança na noiva e vice-versa, fotos do beijo nupcial, fotos de noivo e noiva saindo da igreja, tirou foto de tudo que estava lá dando sopa. Só depois disso tudo é que descobriu que—
— Que não tinha filme na máquina, — antecipa-se o Velho.
— Não, — diz Maria da Penha. — Que era o casamento errado.
— Ou seja, — acrescenta Garibaldi, com um sorriso sarcástico: — Tirou fotos da noiva errada, do noivo errado, das damas e daminhas erradas, dos convidados errados, do padre errado, dos pais dos noivos errados, dos padrinhos e madrinhas errados, das alianças erradas, do beijo nupcial errado e da igreja errada. Em duzentas fotos, não foi capaz de tirar uma só foto que prestasse.
— Por Tupã! — exclamou o Velho: uma de suas exclamações favoritas em circunstâncias de espanto ou surpresa. — Mas como é que—?
— Fui na igreja da Praia do Canto, — diz Maria da Penha, — e o casamento era na igreja da Praia do Suá. Troquei São Pedro por Santa Rita.
— Por essa e por outras, — diz Garibaldi, — é que chamam Santa Rita de Santa Rita dos Impossíveis.
Garçom chega trazendo uma bandeja com bebidas. Nada estranhe o leitor atento e memorioso de quatro anos atrás: foi feito, sim, pela mesa doze, um pedido de bebidas, só que o narrador anterior deixou de registrá-lo no texto do capítulo 20 da primeira parte desta série, talvez por julgá-lo implícito, talvez por pura imperícia narrativa, talvez porque Garibaldi, heróico herói desta epopéia, não tenha pedido bebida alguma. Garçom põe sobre a mesa, diante de Maria da Penha, um cálice de martini com uma cereja empalada num palito; diante do Velho, um copo de Malzbier. Ela, com dedos prestes, faz a devida troca e dá a cada qual o que é de cada qual. Garçom se desculpa e vira-se pra atender os fregueses da mesa ao lado, que estão discutindo quais dos trinta e seis modelos de pizza devem pedir pra melhor satisfazerem seu quarteto de paladares e estômagos.
— Bem que eu percebi, — continua Maria da Penha, — que os outros fotógrafos olhavam pra mim e davam um risinho cínico, mas só depois é que eu fui entender por quê.
Aí ela ergue o copo e permite-se o consolo de um sumo gole de cerveja.
— O casamento era em Meca, ela foi em Ceca, — diz Garibaldi. E, raspando o sarcasmo do fundo do tacho: — Por essa e por outras é que eu chamo nossa amiga aqui presente de Maria da Penha dos Impossíveis.
— Garibaldi, — diz o Velho, saboreando aperitivamente sua cereja no palito, — por que tripudiar tanto assim sobre o equívoco de Maria da Penha? Estou vendo que você e ela têm isso em comum: confundir as coisas. Só que cada um à sua maneira. Você sabe o lugar onde tem de ir mas não sabe a hora, e Maria da Penha sabe a hora mas não sabe o lugar. O que me remete a uma coisa que li uma vez: que o corvo sabe o lugar onde deve encontrar a presa mas não sabe a hora, e a águia sabe a hora mas não sabe o lugar. Ou seja, nisso você é o corvo e Maria da Penha é a águia.
— Onde você leu essa história? — diz a águia, ligeiramente admirada da analogia que o Velho tirou do fosso da cartola.
— Está no velho Giraldus Cambrensis, — diz o Velho, — um escritor do século XII, também conhecido como Gerald of Wales.
— Contemporâneo seu, — diz o corvo.
O Velho deixa passar a maledicência sem nem um peteleco de riposta. Sabe, o finório, que a citação de Giraldus Cambrensis, também conhecido como Gerald of Wales, está furos acima do sarcasmo de botequim de Garibaldi. Tanto que retoma com serena majestade a estrada real da conversa com Maria da Penha:
— Quer dizer então que você chegou ao jazz por via da fotografia, — diz ele.
— Me interesso muito por fotos de trabalho, — ela diz, brincando entre os dedos com um cigarro que subtraiu do maço, — e música é trabalho.
— Nem é à toa, — diz Garibaldi, — que os saxofonistas de jazz chamam o instrumento de ax, ou seja, machado.
— São axofonistas, — diz o Velho, querendo mostrar espírito, e trata de bebericar o seu martini.
Garibaldi assume o papel, de que tanto gosta, de mestre-escola de jazz:
— A origem da metáfora deve estar na semelhança entre as palavras ax e sax em inglês, embora o termo já se tenha estendido das palhetas aos metais. Mas é uma metáfora feliz. Todo músico de jazz é um lenhador que desbasta o tronco de uma melodia até o miolo, revelando nódulos e mais nódulos de variações até que, se for um bom lenhador, derruba a melodia com tudo no chão: Madeira!
Pessoal da mesa ao lado reduziu suas opções a nove sabores. Meta é pedir duas pizzas gigantes de quatro sabores diferentes. Concordam, de modo democrático, em decidir a parada no voto. Que cada eleitor vote em quatro opções de sabor, das quais as mais votadas serão chamadas a integrar as duas pizzas mistas pra consumo do quarteto.
— Isso que você disse é pura poesia, Garibaldi, — diz o Velho.
— O jazz faz de mim um poeta a qualquer hora, — diz Garibaldi.
Hoje, porém, a atenção do Velho só quer pertencer a Maria da Penha:
— Música é trabalho, — diz ele, fazendo suas as palavras dela e devolvendo-as à autora como um mote pra ela glosar.
— É, — diz ela. E pontua sua afirmação com os dois dedos fumantes, entre os quais continua embutido o cigarro ainda ileso. — Mas, embora a fotografia de jazz me interesse muito como um todo, porque música é trabalho, quando eu olho uma determinada foto eu vou logo fazendo uma inspeção pra ver se ela contém os componentes estéticos que, pelo menos pra mim, são fundamentais nesse tipo de foto.
Diante da postura professoral de Maria da Penha, o Velho faz um trejeito de lábio e enfia o olho em Garibaldi, com olhar de quem está pensando: Isso pega.
— Esses componentes são quatro, — continua ela. — Em primeiro lugar, a data. Pra eu realmente gostar de uma foto de jazz, essa foto não pode ser de data posterior a 1960.
— Que coincidência, — diz o Velho. — Garibaldi também prefere o jazz produzido até 1960. Pelo menos foi o que eu li nas crônicas da tal série Dois graus a leste, três graus a oeste.
Garibaldi não se compromete. A tirada do Velho, ele próprio antigo narrador das crônicas da tal série, hoje destronado a bem da literatura, cai no vazio.
— Garibaldi chegou a essa preferência, — diz Maria da Penha, — por via do ouvido; eu cheguei por via do olhar. Gosto do ambiente do jazz das décadas de 40 e 50. Gosto de ver os músicos tocando de terno e gravata. O traje em si já me agrada, e eu chego a viajar no exame do corte e do padrão do terno, do desenho da gravata, do número e do formato dos botões do paletó, e de outros detalhes mais. Além disso, gosto do contraste entre o traje e o instrumento, entre o traje e os movimentos do corpo. Gosto também de imaginar que, por baixo do traje convencional, exigido pela etiqueta da época, está a alma endiabrada de um transgressor. Ali está um lobo solitário, um aventureiro, um fora-da-lei, um soldado da fortuna. Ali está um cidadão da noite e da sarjeta, irmão de outros tantos fodidos e mal pagos que nem ele: traficantes, cafetões, prostitutas, alcoólatras e bandidos. O típico músico de jazz, nessa época, era um sujeito que vivia na corda bamba, que não sabia se teria onde cair morto no dia seguinte. Isso me arrebata. Você olha a foto do cavalheiro de terno e sabe que ali está um sujeito que vive a perigo, que vive de roldão, que provavelmente não vai chegar à casa dos quarenta, e que não está nem aí pra isso, porque ainda tem tempo pro próximo drinque, pro próximo pico, pra próxima foda e, principalmente, pro próximo solo. Que que ele quer mais da vida? Afinal, se a vida é mesmo pra ser destruída, vamos destruí-la com o máximo de arte e competência.
Vê-se, visivelmente, que o Velho está impressionado com a efusão verbal de Maria da Penha; só que ao ouvir, na boca da moça, as palavras fodido e, logo depois, foda, retraiu-se como se tivesse levado, a cada palavra, um beliscão na bunda. Quanto a Maria da Penha, ela dá por encerrado o parágrafo de ouro de sua peroração pendurando entre os lábios o cigarro que ainda não teve tento pra acender.
— Penha está escrevendo, — diz Garibaldi, — um ensaio sobre a fotografia de jazz. Isso que você ouviu é um trecho do ensaio.
— Se é um ensaio, — diz o Velho, — talvez fosse o caso de substituir uma ou outra palavra excessivamente coloquial, como, por exemplo, hã, f-o-d-a.
— Foda? — diz Maria da Penha, e o cigarro, apenso ao lábio por um fio de saliva, quase lhe cai da boca. — Não precisa. O ensaio é pra publicar numa coletânea da Bico-de-Lacre. Conhece? É uma editora de ponta. Lá não fazem esse tipo de censura.
— Sendo assim, — diz o Velho, não querendo correr o risco de parecer moralista — já não está mais aqui quem falou. Queira, por favor, continuar a sua tese.
Os vizinhos de mesa realizaram sua eleição: saíram vencedoras as pizzas de atum, de cinco queijos, de frango e de nozes, com três, três, dois, dois votos respectivamente. Nenhum dos sabores teve unanimidade.
— Em segundo lugar, — diz Maria da Penha, tirando da boca o cigarro, — a foto tem de ser em p&b. Pra mim, aliás, qualquer foto de arte tem de ser em p&b, quanto mais a foto de um músico de jazz. O universo de jazz, na minha concepção estética, é essencialmente noir e dark. É noturno, é escuro, é sombrio. Só pode ser retratado em p&b. Fotografá-lo em cor seria profanar a sua própria mística. Não concorda?
— Concordo, — diz o Velho.
Maria da Penha toma outro gole de cerveja antes de prosseguir:
— Em terceiro lugar, quero ver foto de músico fazendo música. Quero ver músico tocando no seu habitat natural, que é o night-club fechado, acanhado, abafado, com pouca luz e muita fumaça, e aí temos exatamente o quarto componente estético: a fumaça. Se eu tiver que escolher um símbolo pra fotografia de jazz, escolho a fumaça dos cigarros. — Agita o cigarro diante dos olhos do Velho, como que achando que ele não sabe que diabo é isso. — Tem tudo a ver. O cigarro é, à sua maneira, um instrumento de sopro, como o sax e o trompete, só que, através do seu parceiro, o fumante, o cigarro em vez de som produz fumaça. Mas na fotografia o sax, o trompete e os outros instrumentos também não produzem som. Aí, então, cabe à fumaça do cigarro representar o som da música. Sim, sim, é isso mesmo, a fumaça é a própria imagem da música. Afinal, tanto a fumaça como a música se esvaem no ar.
Aí, enfim, Maria da Penha acende o cigarro e se rende ao prazer da tragada que por tanto tempo protelou.
— Mas eu acho um contra-senso, — diz o Velho, — um cigarro na mão, por exemplo, de um saxofonista, pelo que sugere de prejuízo pros pulmões.
— Ah, mas a mim me agrada muito isso que você chama de contra-senso, — diz Maria da Penha, com um brilho mórbido no olhar azul azul, e lança pro alto uma golfada de fumaça mais leve que o ar. Uma das mulheres da mesa ao lado, uma loura repolhuda, olha pra ela com cara feia e tenta enxotar com a mão a fumaça como quem enxota uma nuvem de mosquitos.
— Recapitulando, — diz o Velho, — uma foto de jazz, pra você gostar dela, tem de ser dos anos 40 ou 50, tem de ser em p&b, tem de ter músico tocando, e tem de ter fumaça como marca da própria qualidade etérea e efêmera da música. É isso?
— É, — diz ela, — mas é lógico que tem de ter também o quinto componente, que é o artístico. Gosto de certas fotos só pelo componente artístico, como a foto que Francine Winham fez de John Coltrane tocando sax-soprano. Ela tirou a foto de frente, de modo que a perspectiva é quase nula, e a abertura do instrumento parece a boca do músico. Ou seja, a foto sugere perfeitamente o que eu chamo no meu ensaio de conjunção anatômica de músico e instrumento. Dá até pra achar que é possível distinguir, lá dentro, as amígdalas de Coltrane.
Outra baforada de Maria da Penha, outro olhar de censura por parte da loura repolhuda.
— Um fotógrafo que me seduz principalmente pelo componente artístico, — diz Maria da Penha, — é Terry Cryer. A impressão é que ele é como aqueles fotógrafos de pássaros, que ficam o dia inteiro esperando o momento da foto magistral. Já vi grandes fotos dele. Tem uma de Zoot Sims com as mãos em concha diante da boca, acendendo um cigarro. Tem uma de Frank Wess tocando flauta com um cigarro enxerido entre os dedos. Tem uma de Coleman Hawkins de perfil, com a mão espalmada sobre o lado do rosto. Tem outra de Hawkins, de costas, fantástica, com Sonny Stitt ao lado fazendo bico, prestes a dar um beijo na cabeça de Hawkins. São fotos maravilhosas.
— De onde é que você me desentranha essas fotos? — pergunta o Velho, e comemora com um gole de martini tanto a pergunta como o dativo ético nela inserida em itálico.
— Da internet, — responde Maria da Penha, e com um leve toque do cigarro na borda do cinzeiro faz cair ali dentro uma tripa de cinzas. — Às vezes eu e Garibaldi passamos horas na internet só abrindo e fechando fotos de jazz, e gravando aquelas que a gente gosta mais.
O Velho não parece receber à vontade uma informação que atesta o bem estar doméstico de Garibaldi e Maria da Penha. Trata logo de fugir do assunto:
— Me fala de outros fotógrafos de jazz que você gosta.
— William Gottlieb, — diz ela, — é um dos pioneiros, mas o que me desagrada na maioria das fotos dele é que são fotos feitas em casa ou em estúdio, e o que estraga essas fotos, pra mim, é a pose tanto do músico como do instrumento. A pose é dura, rígida, quase cadavérica, e reduz músico e instrumento a objetos sem vida nem alma. Há exceções, é claro. Gottlieb tirou uma foto de Dizzy Gillespie na esquina da rua 52, a rua do jazz nos anos 40. Gillespie está ao pé do poste que mostra a placa da rua, e está fazendo uma pose, mas é uma pose vivaz, que estabelece uma relação dinâmica entre o homem e o poste e uma relação semântica entre o músico e tudo que a rua 52 significava na época. Pois nessa rua ficava o Minton’s, que foi o berço do bop.
— E não dá pra esquecer, — diz Garibaldi, — que Gottlieb nessa mesma época fotografou Thelonious Monk no Minton’s, quando Monk ainda era praticamente uma quantidade desconhecida no jazz.
— Amo aquela foto de Monk de boina na cabeça, — diz a moça de boina na cabeça.
— Gottlieb devia ter fotografado você também, — diz o Velho.
— Penha ainda não era nascida, — diz Garibaldi.
Maria da Penha toma um gole de cerveja, dá, logo de per cima, uma tragada no cigarro e por fim emite um sopro de fumaça úmida de álcool.
— Outra coisa que me desagrada em Gottlieb, — diz ela, — é que ele gostava de flagrar os músicos fora do ambiente musical.
— O pior exemplo disso, — diz Garibaldi, — é aquela seqüência de fotos em que aparecem alguns músicos da orquestra de Stan Kenton em campo aberto jogando baseball, e logo o quê, o jogo mais imbecil jamais inventado pelo homem. Até June Christy, a cantora da orquestra, aparece numa foto empunhando um taco. É verdade que Gottlieb também fotografou a orquestra tocando, e eu gosto muito de uma foto que mostra Art Pepper de perfil, em pé, em pleno solo, com a platéia lá embaixo como uma enseada de gente.
Saxofonista Art Pepper, diga-se de passagem pela primeira vez na segunda parte desta série, é o ídolo maior de Garibaldi no jazz.
— Também gosto dessa foto, — diz Maria da Penha, — embora falte fumaça. Gosto muito quando a foto mostra o músico e seu público. Principalmente se o local é um night-club apertado, com as mesas bem junto dos músicos, de modo que dá pra ver os homens e as mulheres que estão lá, dá pra distinguir rostos, mãos, roupas, copos, taças, garrafas, saleiros, maços de cigarro, cinzeiros, talheres, restos de comida nos pratos, e até os cartões em cima das mesas, com a palavra reserved escrita neles. Você vê as duas dimensões econômicas da música: a oferta e a procura.
Maria da Penha faz uma pausa pra nova tragada. O Velho não quer silêncio da parte dela:
— Fala mais, moça, — diz ele. — Estou ouvindo e aprendendo.
— Bom, dois dos melhores fotógrafos de jazz — diz ela, — são, sem dúvida, Herman Leonard e William Claxton. Entre os dois, eu prefiro Leonard. As fotos dele têm mais fumaça. Foi ele que fez aquela foto clássica de Dexter Gordon quando jovem, em que Gordon, que sempre foi um ator, contracena com uma nuvem de fumaça.
— Maria da Penha, — interrompe o Velho, — você não acha Garibaldi parecido com Dexter Gordon não?
— Acho não, — diz ela, soprando mais fumaça pra mesa ao lado.
— Eu também não, — diz Garibaldi.
— Pois eu sempre achei, — diz o Velho, meio ressabiado em sua condição de minoria.
Maria da Penha aspira o que ainda resta de fumo no cigarro, sopra a fumaça pro lado e num golpe digital de misericórdia esmaga o toco no cinzeiro ao lado do toco anterior. A loura repolhuda resolve dar um palpite:
— Não me diga que esse é o último cigarro da noite.
Maria da Penha vira-se pra loura e, logo em seguida, pra Garibaldi:
— Ela está falando comigo? — pergunta, com inocência talvez simulada.
— Que eu saiba, não tem ninguém mais fumando aqui, — a loura responde por Garibaldi.
— Acho que ela está querendo um cigarro, — diz Garibaldi.
— Então sirva-se, — diz Maria da Penha, estendendo o maço na direção da loura.
— Quero fumar porra nenhuma, — diz a loura, rejeitando o maço com repulsa de autêntica antitabagista. — Quero é não ter de respirar tua fumaça a noite toda.
— Então sobe, — retruca Maria da Penha. — Lugar de não fumante é lá em cima. Aqui eu tenho o direito de fumar o tanto de maços que eu quiser sem ninguém me encher a paciência.
Dito isso, ela deu prosseguimento à sua aula:
— Um sujeito chamado Jim Merod escreveu um ensaio sobre a luz e a fumaça na fotografia de Herman Leonard, e analisa a fundo essa foto de Dexter Gordon, a ponto de compará-la com uma variação da Pietà, por causa de vários fatores: a paz eclesiástica do cenário, o sax aninhado no colo de Dexter Gordon, o olhar beatífico voltado pro céu como sinal da satisfação do músico com o seu trabalho… Ah, pode-se viajar muito nessa foto!
Os fregueses da mesa ao lado, depois de conferenciarem entre si, resolvem bater em retirada pra ambiente menos poluído. Recolhem bolsas, garrafas e copos e tomam rumo da escada. A loura repolhuda ainda lança um olhar de hostilidade sobre Maria da Penha, e rilha entre os dentes uma maldição: Tomara que tu morra de câncer. Maria da Penha recebe o agouro como se nem fosse com ela.
— Já as fotos de William Claxton, — diz ela, — são muito clean. Muito cool. Também não admira. Ele é o fotógrafo do jazz da Costa Oeste, o cool jazz. A proposta dele era mostrar músicos de jazz no ambiente saudável da Califórnia. Nada de suor, nada de fumaça, nada de ambientes fechados e viciados. Ele tirou os músicos da noite e colocou em pleno dia, ao ar livre, nas praias, nas montanhas, nas estradas, e até os carros eram conversíveis abertos. Fez com que os músicos transmitissem uma imagem de saúde e de vida regrada. Como se o jazz da Costa Oeste não tivesse também o suor, a fumaça e a autodestruição do jazz do leste.
Garçom surgiu do nada e estranhou a ausência dos fregueses da outra mesa. A princípio deve ter pensado que fugiram do país sem pagar as bebidas nem esperar as pizzas.
— Subiram, — diz o Velho, vindo em seu socorro.
— Garçom, me traz mais uma, — diz Maria da Penha, mostrando o copo quase vazio.
— Quero mais uma dose de martini, — diz o Velho, audacioso, e, virando o cálice, enxuga-o até o fundilho.
— E o senhor, nada? — garçom pergunta a Garibaldi.
— Só quando a pizza vier, — rebate Garibaldi: — quando e se.
— Já está saindo, senhor, — garçom afirma.
— Uma das poucas fotos de Claxton, — diz Maria da Penha, — em que eu vi alguma fumaça é uma foto de dois bateristas, quem são eles mesmo, Garibaldi?
— Philly Joe Jones e Larance Marable, — diz Garibaldi.
— Seja, — diz Maria da Penha. — Os dois estão sentados no chão, ao lado das peças de uma bateria, olhando pra uma mulher de quem só dá pra ver na foto o braço, apoiado na banqueta do baterista. Entre os dedos ela segura um cigarro aceso que deixa no ar uma nódoa de fumaça. O que eu acho sintomático é que os dois músicos são negros, e isso parece significar que, na cabeça de Claxton, a saúde fotográfica era um monopólio dos músicos brancos.
— Nem tanto, Penha, — diz Garibaldi. — Você está esquecendo, só pra exemplificar, aquela foto que Claxton fez de Chet Baker sentado no chão aos pés do piano de Teddy Charles.
— Não é uma foto que foi tirada de cima? — diz Maria da Penha. — Não me lembro de fumaça naquela foto.
— Não tem fumaça, — diz Garibaldi, — mas sobre o teclado do piano, no canto direito, tem um cinzeiro cheio de guimbas de cigarro dentro.
— É? — diz Maria da Penha, franzindo a testa por via das dúvidas.
— Mas eu, — diz Garibaldi, — que não faço questão de fumaça numa foto de jazz, tenho que reconhecer que Claxton tirou belas fotos de Art Pepper. Era ele que fazia as fotos pras capas dos discos das gravadoras Pacific Jazz e Contemporary, que lançaram os discos de Art Pepper nos anos 50 e 60.
— Todas as fotos que ele fez de Art Pepper são muito clean, — diz Maria da Penha. — Elas salientam o bom mocismo do rapaz, a serenidade, a suavidade, quando a gente sabe que a coisa era bem diferente. O próprio Art Pepper confessou que aquelas fotos dele junto às árvores de um bosque foram tiradas num momento em que ele estava agoniado por falta de heroína.
— Nessa mesma ocasião, — diz Garibaldi, — Claxton tirou a foto mais fabulosa de Art Pepper. Dá pra deduzir que é a mesma ocasião pelas roupas que ele está usando, um paletó de lã por cima de uma camisa quadriculada.
— É a foto da ladeira, — diz Maria da Penha.
— Isso mesmo, — diz Garibaldi. — A foto é tirada do alto de uma ladeira de terra, quase a pique, mostrando lá embaixo uma área residencial meio rural, um subúrbio de Los Angeles em 1956. Pepper está subindo a ladeira, com o sax seguro no vão do braço, e a impressão que dá é que um passo em falso e ele rola ladeira abaixo com sax e tudo. A foto tem um toque de vertigem que sempre foi a marca registrada da vida e da música de Art Pepper, por isso eu tenho que bater palmas pra William Claxton.
Garçom volta com as bebidas. Agora ele aprendeu: vai o copo de Malzbier pra Maria da Penha e pro Velho o cálice de martini com a cereja empalitada.
— Agora, tanto Leonard como Claxton, — diz Maria da Penha, — fizeram algumas fotos que eu tenho especial predileção por elas. Nessas fotos a pessoa do músico não aparece, mas está representada pelo instrumento ou até por outros objetos. São fotos metonímicas.
— Já vi uma foto assim, — diz o Velho. — É uma foto da maleta de Dizzy Gillespie, aberta, mostrando todo o conteúdo.
— Essa foto, — diz Maria da Penha, — foi tirada por um fotógrafo chamado Mephisto.
— Deve ser um capeta dando uma de fotógrafo, — diz Garibaldi. — Ou então é só um veado querendo dar uma de capeta. Mephisto… Um pseudônimo desses me cheira a coisa de veado. Esse cara não é veado não, Penha?
— Não sei nem quero saber, — replica ela, e toma um gole de cerveja.
— Mas, além do trompete inconfundível de Gillespie, — continua o Velho, — dá pra ver na maleta escovas, estojos, toalhas, e até um caderno de partituras, o famoso Real Book.
— Famoso no pior sentido, — diz Garibaldi. — Lady Embratel conta que, aqui mesmo em Vitória, quando um músico comete erros na exposição de um tema os colegas dizem uns pros outros: Estudou pelo Real Book.
O Velho já traçou a cereja e num só gole ingere metade da dose de martini.
— Tem outras fotos nessa linha, — diz Maria da Penha. — Tem uma de William Claxton, por sinal célebre, que mostra o trompete de Chet Baker repousando sobre o assento do Cadillac conversível dele. É uma das fotos esterilizadas de Claxton. Já Herman Leonard fotografou os sapatos de Duke Ellington e o chapéu de Lester Young, aquele chapéu de feltro de copa chata e de aba virada pra cima, que na foto parece que está suspenso no ar. Também tem uns rabiscos de fumaça na foto, escapando de um cigarro aceso equilibrado no bico de uma garrafa. Uma garrafa fumante, quem diria.
— Pork pie hat, — diz Garibaldi. — É como se chama esse chapéu em inglês. Por isso é que Charles Mingus chamou de “Goodbye Pork Pie Hat” o réquiem que compôs em homenagem a Lester Young.
— Belíssimo réquiem, — diz o Velho, que em tudo quer dar palpite. — Ouvi uma versão muito bonita com John Handy no sax-alto. Está no disco Mingus Ah Um.
— Gosto mais, — diz Maria da Penha, — daquela do disco Mingus Mingus Mingus. Tem uma atmosfera fantasmagórica e um solo doído de sax-tenor. Nunca ouvi tanta dor num sax a não ser no solo de Art Pepper em “Summertime”.
Parece que ela está aprendendo depressa.
— Também gosto mais dessa versão, — concorda professor Garibaldi. — O solo de tenor é de Booker Ervin. O arranjo é tão lúgubre que os instrumentos soam como carpideiras, e a sensação é que você está num velório. Já a versão com John Handy, sem querer desmerecer o moço, pode até ser usada como acompanhamento pra um strip-tease. Não ouço luto nenhum ali.
— Bom, — o Velho começa a dizer, e acaba ali mesmo onde começou, por falta de argumentos. Pra disfarçar, emborca o cálice de martini e sorve tudo que flutuava ali pintado de vermelho.
— Mas será que ninguém vai me perguntar qual a foto que eu gosto mais? — queixa-se Garibaldi.
— Está bem, Garibaldi, — diz o Velho. — Considere-se perguntado.
— Pois a foto de jazz que eu mais gosto, — diz Garibaldi, — é a foto que Art Kane tirou em agosto de 1958 no Harlem.
— Muito bem lembrado, Garibaldi, — concorda Maria da Penha. — Aquela foto é sensacional.
O Velho está por fora e precisa ser informado a respeito. Garibaldi se encarrega disso com prazer:
— Nunca houve uma foto como essa, nem antes nem depois. Art Kane, que era fotógrafo da revista Esquire, fez espalhar a notícia que em tal dia, às dez horas da manhã, ia estar na rua 126, no Harlem, entre as avenidas Quinta e Madison, pra tirar uma foto de músicos de jazz. Porra, dez horas da manhã é um horário proibitivo pra músicos. Os colegas dele disseram: Não vai aparecer ninguém. Mas apareceu, sim. Apareceram 57 músicos, e Art Kane fez a foto mais histórica do jazz: é um dilúvio de músicos que transborda pelos degraus de um prédio e alaga a calçada até o meio-fio. Tem gente de todos os tipos ali, de todas as idades, de todas as escolas de jazz. Só pra citar os mais conhecidos, Count Basie está ali, e Coleman Hawkins, e Lester Young, e Thelonious Monk, e Charles Mingus, e Dizzy Gillespie, e Roy Eldridge, e Pee Wee Russell, e Sonny Rollins.[ * ] No meio deles tem até um músico misterioso, Bill Crump, que, segundo as poucas informações que existem sobre ele, era um saxofonista de strip-tease que veio de Buffalo pra Nova York à procura de trabalho. Na internet você pode ver a foto de fora a fora mas pode também selecionar grupos de músicos, pra examinar melhor os detalhes. Dizzy Gillespie, palhaço como sempre, está botando a língua de fora. Lester Young, ao contrário, parece que está engolindo a língua. Gerry Mulligan parece um fantasma: branco de dar medo. Count Basie cansou de esperar que a putada se arrumasse pra tirar a foto e sentou no meio-fio ao lado de uns doze pivetes do Harlem. Cara, a foto é do cacete. A idéia foi brilhante e o resultado está à altura da idéia.
— A gente viu também, — diz Maria da Penha, — o documentário de Jean Bach sobre o making of da foto, que Rogério Coimbra emprestou pra gente. Esse documentário, que é de 1995, inclui entrevistas com alguns dos poucos músicos que ainda estavam vivos e alguma filmagem que fizeram no dia, mostrando a chegada dos músicos, os abraços, as conversas, os preparativos. Esse documentário também é fantástico. Chama-se A great day in Harlem.
— Foi realmente um grande dia, — diz Garibaldi. — Os músicos curtiram, os fotógrafos e cinegrafistas curtiram, os pivetes curtiram, e nessa brincadeira produziu-se um documento histórico sem precedentes nem sucedentes.
Garçom chega junto, apodera-se do cálice vazio de martini e pergunta ao Velho se aceita mais uma dose. O Velho aceita, álacre.
— Eu gosto dessa foto por duas razões principais, — diz Garibaldi. — Primeiro, porque é a foto da nação do jazz, tirada na capital do jazz, e num clima de curtição que está na alma do jazz: aquela foto é o resultado de uma jam session fotográfica. Segundo, porque Miles Davis não está na foto. O cara não foi ou porque deve ter se achado bom demais pra participar da brincadeira, ou porque achou que fosse passar despercebido no meio dos verdadeiros gigantes do jazz, ou porque não ia receber cachê nenhum. Quem quiser que escolha a razão mais plausível pra ausência de Miles Davis, ou até todas essas razões juntas e outras mais. Não importa. Importa é que Miles Davis ficou em casa se olhando no espelho e ainda bem. Assim a foto não ficou poluída com a presença dele.
Garibaldi conclui a peroração com uma risada gutural.
— Tive uma idéia, — diz o Velho; sua voz soa mais solta do que nunca. — Uma idéia brilhante. Maria da Penha precisa tirar uma foto da gente.
— Da gente quem? — pergunta Garibaldi.
— Da gente, de nós todos, da turma, do Clube das Terças. Do decateto.
Garibaldi derruba o beiço e fica pensativo.
— Por incrível que pareça, — diz ele, — a idéia não é de todo ruim. Não, não é nada ruim. Pelo contrário, não deixa de ser uma boa idéia. É, tenho de admitir que a idéia até que é boa. Mais que boa. É muito boa. Se facilitar, vai ver que é uma ótima idéia.
— Que que você acha, Maria da Penha? — pergunta o Velho.
— Eu cobro pela tabela do sindicato, — diz ela, profissional.
— A gente faz uma vaquinha e paga, — diz o presidente do Clube, metendo de antemão a mão no bolso dos demais sócios. — Olha só: Maria da Penha faria uma foto oficial, com os dez sócios juntos, e fotos individuais de cada um de nós. Tudo em p&b, é claro. E de repente a gente até publica um livro sobre o Clube, ilustrado com todas as fotos que Maria da Penha tirar.
— Com que dinheiro? — diz Garibaldi.
— Com dinheiro da Lei Rubem Braga, — diz o Velho.
— Vai ser um best-seller, — diz Maria da Penha, sardônica.
— Gostei da idéia das fotos individuais, — diz Garibaldi. — Cada um de nós seria fotografado na sua postura mais característica. Lady Moraes tomando um gole daquele garrafão de água que ele leva pro Clube; Lady Mazzi parado no ar, que nem um beija-flor, no meio de um daqueles saltos que ele dá na tentativa, sempre frustrada, de cabecear uma das placas que pendem do teto do Centro da Praia; Lady Romero se apresentando num dos happy-hours do shopping, só que tocando três instrumentos ao mesmo tempo, que nem Roland Kirk: um sax, uma casquinha de sorvete de abacaxi e um livro de Jacques Derrida; Lady Nunes fumando placidamente em sua cadeira, olhando pro alto, que nem Dexter Gordon.
— Uma foto do jeito que você gosta, — diz o Velho pra Maria da Penha: — com fumaça que não acaba mais.
— Lady Gurgel, — continua Garibaldi, — com um pão de mel numa mão e uma xícara de café frio na outra e, sobre a mesa, o cd de algum músico de jazz bem obscuro, tipo Phil Urso ou outro qualquer; Lady Embratel no ato exato de sorver um gole de sua tulipa de chopp, com a cuia dos pães de queijo na cabeça; Lady Coimbra sentado numa cadeira, com um braço em torno de outra cadeira, com cara de quem está cansado pra caralho; Lady Achiamé chegando atrasado à reunião, naquele passo de quem curte uma balada; você, Lady Pres, comendo um pé-de-moleque presidencial; e, finalmente, eu, Lady Magalhães, ouvindo na ostra um cd de Art Pepper, com uma cara bem inteligente.
— Essa vai ser a mais difícil de fazer, — diz Maria da Penha.
— Difícil vai ser você chegar no shopping certo, — diz Garibaldi. — Em vez do Centro da Praia, é capaz de ir parar no Boulevard da Praia.
— Só está faltando uma coisa nessas fotos, — diz Maria da Penha. — Não tem ninguém olhando pra uma bunda de mulher.
O Velho fica vermelho, como se tivesse culpa no cartório. Garibaldi ri:
— Penha botou na cabeça que a gente vai pro clube pra olhar mulher. No nosso clube não tem veado, mas todo mundo é sério e fiel aos seus compromissos, não é, presidente?
— Não, claro que não, — diz o Velho, confirmando a primeira metade da declaração de Garibaldi e deixando a segunda pra lá.
— Acredito piamente, — diz Maria da Penha, e acende, sem remorso, um novo cigarro.
— Lady Gotti, — diz o Velho, — se me permite, tenho um pedido a fazer.
— Lady Gotti? — diz Garibaldi. — Cara, isso de chamar as pessoas de lady, que nem Lester Young fazia, é prerrogativa minha e só minha. Tá querendo me plagiar?
— Você chama os homens de lady, — defende-se o Velho. — Eu chamo de lady as próprias ladies. É diferente.
— Qual é o pedido? — pergunta Lady Gotti.
— Depois dessa conversa toda sobre fumaça, — diz ele, — fiquei seco por um cigarro. Você pode me dar um dos seus?
Lady Gotti fica um átimo surpresa. Só um átimo. No átimo seguinte estende o próprio cigarro pro Velho.
— É o meu último, — diz ela. — Pode ficar.
O Velho recebe o cigarro como uma dádiva do outro mundo. Olha-o entre os dedos com reverência antes de levá-lo aos lábios. Ali deixa-o arder espontâneo por trinta segundos, entregue, de olhos cerrados, ao arroubo de ter entre os lábios um cigarro que provém dos lábios mesmos da pessoa amada. Depois aspira a doce e sagrada fumaça.
Na primeira tragada sobrevém-lhe um acesso de tosse.
Lady Gotti levanta-se e dá-lhe umas palmadas nas costas. Garibaldi, de onde está, colabora com o tratamento dizendo: São Brás, São Brás. O Velho tosse mais um pouco, debaixo das palmadas terapêuticas de Lady Gotti, até que passa o acesso.
— Obrigado, — diz ele, com os olhos pingando de lágrimas.
— Não sabe nem fumar não? — pergunta Garibaldi.
— Pensei que fosse mais fácil, — diz o Velho.
Garibaldi abre a boca pra dizer uma coisa, mas os olhos resvalam por cima da cabeça do Velho e cintilam de êxtase. Aí ele, que abriu a boca pra dizer uma coisa, diz outra:
— Aí vem a nossa pizza!
Nunca se saberá que coisa Garibaldi abriu a boca pra dizer. Mas pode-se ter certeza de que dificilmente seria de mais suma importância do que aquilo que ele disse em seu lugar. Quatro anos depois de feito o pedido, eis que enfim chega à mesa doze da pizzaria de Jardim Camburi a pizza gigante, metade palmito, metade marguerita, pra consumo, com os leitores por testemunhas, dos três personagens ali reunidos. A ocasião é tão memorável que exige uma comemoração metalingüística.
Que se comemore a chegada da pizza, então, com a ovação silenciosa de uma quebra de capítulo.
[ * ] São os seguintes os 57 músicos que aparecem na foto de Art Kane: Count Basie, Hank Jones, Jimmy Jones, Marian McPartland, Thelonious Monk, Luckey Roberts, Horace Silver, Mary Lou Williams, pianistas; Red Allen, Emmett Berry, Buck Clayton, Roy Eldridge, Art Farmer, Dizzy Gillespie, Taft Jordan, Max Kaminsky, Rex Stewart, trompetistas; Scoville Browne, Bill Crump, Bud Freeman, Benny Golson, Johnny Griffin, Gigi Gryce, Coleman Hawkins, Hilton Jefferson, Gerry Mulligan, Rudy Powell, Sonny Rollins, Sahib Shihab, Joe Thomas, Ernie Wilkins, Lester Young, saxofonistas; Art Blakey, Sonny Greer, J.C. Heard, Osie Johnson, Jo Jones, Gene Krupa, Eddie Locke, Zutty Singleton, George Wettling, bateristas; Milt Hinton, Chubby Jackson, Charles Mingus, Oscar Pettiford, Wilbur Ware, contrabaixistas; Lawrence Brown, Vic Dickenson, Tyree Glenn, J.C. Higginbotham, Miff Mole, Dicky Wells, trombonistas; Buster Bailey, Pee Wee Russell, clarinetistas; Stuff Smith, violinista; Jimmy Rushing, Maxine Sullivan, cantores. Curioso não ter aparecido nenhum guitarrista.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)