Telefone tocou quatro vezes antes de atenderem.
— Agência Ajax de Produções Literárias, boa tarde, Mônica falando, — disse Dona Mônica. A voz viçosa, a voz florida, a sumarenta voz.
— Boa tarde, Dona Mônica, — eu disse.
A voz perdeu viço, perdeu sumo, pétalas perdeu; virou fria, seca:
— Ah, é você, — disse a filha da puta.
Sim, era eu, e que fizera eu pra merecer tanta friagem? Ou não era nada de pessoal comigo? Ah. Já sei. Amorosa Dona Mônica estava esperando telefonema do namorado, o inefável Teodomiro Reis. Então era isso? Ardi de raiva. Juro que rosnei, em pensamento: “Qual é, sua vadia, meu telefonema é puramente profissional; eu digo a que venho, você responde o que couber, e tchau e bênção.” E a seguir, sem rosnar, mas ainda em pensamento: “Pelo visto, o Sr. Eylau deve continuar encagaçado em Barra de São Francisco. E você, sua vadia, aproveita pra regar e adubar a cifra da conta telefônica da agência.” E por fim, dando conta, em pensamento, de uma saborosa emoção: “Que bel-prazer tratar Dona Mônica assim devidamente de vadia — sua vadia —, ainda que em pensamento.”
— Sou eu, sim, minha musa, — eu disse, em tom mavioso. — Aposto que o Sr. Eylau ainda está em Barra de São Francisco.
— Ele está aqui, — ela disse, pra minha surpresa. — Quer falar com ele?
— Não necessariamente, — eu disse, contornando a surpresa. Que teria eu pra dizer a esse estrupício? Só liguei mesmo foi pra jogar sedução fora com Dona Mônica; pra ouvir-lhe a voz viçosa, a voz florida, a sumarenta voz.
— Mas ele quer falar com você, — disse Dona Mônica. Ouvi um silêncio; senti, com minha audição canina, com minha canina imaginação, a pele macia da patinha de Dona Mônica tapando, do outro lado da linha, o bocal do telefone. Do lado de cá da linha, dei-lhe um beijinho sonoro bem na palma da mão.
— Que estalo foi esse? — disse, do outro lado, a voz do Sr. Eylau. — Um beijo?
É demais, cara. O filho da puta veio falar comigo no próprio aparelho de Dona Mônica; devia estar zanzando na saleta dela quando liguei.
— Não, não, — apressei-me a dizer. — É que estou palitando os dentes, aí fiz esse ruído de estalo, foi só isso.
O Sr. Eylau, empresário de alto gabarito, passou imediatamente aos negócios:
— Li o seu relatório, — ele disse. — Quero uma reunião de projeto com o senhor sem falta ainda hoje. Estarei livre às 17:47. Seja pontual.
E mais não disse nem me deu tempo de perguntar. Ou melhor, não me deu tempo de inventar um compromisso inadiável no mesmo horário, tipo audiência em juizado de pequenas causas ou final de campeonato de porrinha em Gurigica de Dentro, coisas assim. Ou melhor, não me deu tempo de porra nem de porrinha nenhuma. Simplesmente desligou, empresarial, bem na cara do meu ouvido. Fiquei com o fone pulsando tu, tu, tu, tu, na mão, e olhei-o censor, como se fosse dele a culpa do Sr. Eylau ter desligado no meu focinho. Aí interessei-me em aproveitar, à falta do que fazer, pra contar os orifícios cavados no bocal e no auscultador. Meu aparelho é antigo. O bocal tem vinte e cinco orifícios. Daí examinei o auscultador e contei ali apenas oito orifícios — um a menos que os mictórios, que têm nove. O que significa essa injusta distribuição de orifícios? Filosofei: Falamos mais do que ouvimos? Ou ouvimos melhor do que falamos? Aí, pousando na base do telefone o enigma insolúvel, entreguei-me ao destino: Bem, já tenho programa pro final de tarde.
Eram 14:15 e eu estava em meu escritório, o que quer dizer, estava em minha casa. É onde, além de viver e morar, também trabalho. Preparei um suco de maracujá, bom contra stress, e me entreguei todo corpo e todo alma à revisão de texto que me tinham contratado pra fazer.
Sim. Ganho a vida, ou uma parte substancial dela, fazendo revisão de textos. Não já disse isso antes? Acontece que sou mais ou menos amigo pessoal de um sujeito que é mais ou menos editor de livros em Vitória. Certamente o leitor ou a leitora já viu algum livro com a marca de um passarinho de bico vermelho voejando na capa, na contracapa, na lombada. É a marca da Bico de Lacre Editores, a editora em questão. Esse meu mais ou menos amigo e editor chama-se Djalma Smee, vulgo Barrica, mas vou logo avisando que ele odeia ser chamado pelo apelido, vira bicho, a menos que seja alguém de quem tenha medo (a mulher, por exemplo) ou de quem contemple tirar dinheiro. Aí ele sorri aberto. Se há muito dinheiro em vista, então, chega mesmo até o extremo de exclamar: Barrica, sim, ao seu dispor!
Eu o chamo de Djalma. Ele é bem conhecido no meio empresarial de Vitória como proprietário da Desentupidora e Higienizadora Clean, que, conforme anúncio nas páginas amarelas do catálogo telefônico, executa limpeza de fossas, filtros, sumidouros, caixas de gordura, caixas d’água, sisternas (sic) e esgostos (sic: não fui eu que fiz a revisão do anúncio) e desentupimento de pias, ralos, vasos, tanques, colunas, manilhas e tubulações em geral. A Bico de Lacre é digamos o braço literário da desentupidora, e consolida um velho xodó do empresário pela poesia. Por conta disso, de vez em quando Djalma Barrica organiza uma coletânea de crônicas, ou de contos, ou de poesia, ou até de crônicas, contos e poesia, tudo junto e atravessado, e tira uma graninha honesta de cada participante e me dá um troco pra fazer a revisão das provas. Ele faz questão, editor solidário, de estar presente em todas as coletâneas, seja como poeta, seja como apresentador. Como poeta, e não vai aqui nenhuma bajulação gratuita, Djalma sempre se destaca como autor dos piores poemas de cada coletânea, e olha que cada qual dos demais autores também dá tudo que pode pra ser reconhecido como tal; já como apresentador, contenta-se em assinar um texto mambembe que me paga por fora pra escrever. De vez em quando edita, pra variar, um livro de autor individual. Nesse caso, de duas, uma. Se o livro é dele próprio, a edição é feita com recursos do Projeto Rubem Braga, a lei municipal de apoio à cultura, que o xodó de Djalma Barrica pela poesia não chega ao extremo de fazê-lo aplicar um centavo de seu bolso em produtos invendáveis. Se o livro é de outro beletrista, a edição se faz com subsídios do próprio autor, a partir de orçamento editorial astronomicamente inflado. Folgo em dizer que a Bico de Lacre, que existe há uns cinco anos, já pode exibir um seleto catálogo de quase trinta títulos; à edição de todos eles, posso dizer com orgulho, dei minha contribuição profissional.
Se têm algum valor literário? Claro que não; menos que nenhum. Então, ora, direis, leitores amigos, como pode você sentir orgulho de contribuir pra perenização de trinta títulos de diarréia impressa? Defendo-me invocando a tese de certos sociólogos e historiadores, segundo os quais tudo que é impresso tem um valor, se não científico ou literário, pelo menos sociológico e histórico, porque vai engrossar o caldo que representa a produção intelectual de uma comunidade em determinado período; no qual caldo, ou no qualdo, como diria meu amigo Alfred, os estudiosos do futuro, em parte graças a gente como o editor e o revisor da Bico de Lacre, poderão mergulhar suas colheres acadêmicas pra extrair dali os elementos necessários às suas análises críticas retrospectivas sobre a história da inteligência espírito-santense na virada dos nossos séculos passado e presente.
Nessa tarde encontrava-me debruçado sobre as provas de mais uma edição da Bico de Lacre. O que era? O texto indigesto de uma professora de Economia da Ufes, uma mulher de trinta anos com impressionante currículo acadêmico culminando com um Ph. D. em Economia pela Universidade de Yale, e que no entanto não sabe escrever uma só frase que tenha começo, meio, fim e sentido claro.
Fiz a leitura atenta de duas ou três páginas, cobrindo o texto de correções em vermelho, e aí o sono bateu forte. Bocejei uma trilogia de bocejos. Cabeceei sobre as provas. Não tenho nenhuma força de vontade pra resistir a tão insidiosa sedução. Larguei a revisão em cima da mesa, armei o relógio pra despertar às 17:00 e desabei no sofá da sala.
Se eu ganhasse dinheiro pra dormir seria milionário. É o que faço de melhor, com a maior eficiência e perfeição, a qualquer hora, em qualquer lugar. Não levei três minutos pra mergulhar naquele éter voluptuoso que é o sono imediato. Eram 15:00. Pouco depois o despertador tocou. Talvez Einstein já tenha explicado, em termos físicos e quânticos, como é que duas horas de sono podem ter peso e gosto de quinze minutos. Saltei do sofá, corri ao banheiro, dei uma bela mijada caudalosa, calcei os sapatos e me mandei pra rua. Eram 17:07. Tinha quarenta minutos pra chegar a tempo de chegar a tempo à audiência com o Sr. Eylau.
Na calçada, saindo do prédio, quase dei de encontro com o desembargador Furtado.
— Boa tarde, desembargador, — cumprimentei.
— Boa, — ele disse. E passou. Sei que ele nem sabe quem sou, mas de tanto vê-lo na rua, pois mora nas proximidades, me acostumei a cumprimentá-lo. É um tipo sisudo, encorpado, pombalino, que deve ter noventa anos de idade mas aparenta oitenta e cinco, estourando oitenta e seis. Perpetrou suas literatices quando jovem e com isso, mais um milhar de sentenças judiciais, que a rigor em sua maioria nem lhe pertencem, porque as vendeu a peso de ouro, entrou pra Academia Espírito-santense de Letras. Os literatos que namoram uma vaga naquele excelso sodalício já perderam as esperanças de ocupar a vaga dele; dizem que vai durar mais do que uma dúzia dos jovens sexagenários que lá estão; dizem que é, entre o comum dos imortais mortais, a exceção incomum: o imortal imortal.
Moro em Jardim Camburi, ou seja, como se diz, no sul da Bahia. Peguei um ônibus que já ia saindo do ponto, que sorte, e me mandei pro centro da cidade. Cheguei ao Edifício Pongal às 17:35. Às 17:38 o elevador me depôs, solícito, no oitavo andar. Estava nove minutos adiantado, o que era tão grave quanto estar nove minutos atrasado. Encaminhei-me pelo corredor mal iluminado. Diante do escritório de advocacia onde trabalha a doce Fúlvia passei sem bater e, dobrada a esquina do corredor, sem bater passei diante da Agência Ajax; por fim, também sem bater, nem havia por quê, passei diante da Agência de Detetives Falcão Negro. Diante da janela parei, no fundo do corredor. Sem pensar em suicídio, acendi um cigarro, com o propósito de ruminá-lo em oito minutos e aí bater à porta da Agência Ajax pontualmente às 17:47. Estava ali não havia nem cinco minutos, fumando pra meus botões, quando ouvi ruídos inquietantes: ruídos de elevador parando, de porta de elevador abrindo, de passos vindo rasteiros pelo corredor. Daí a pouco um sujeito alto e comprido, vestido numa capa de chuva que lhe descia até o nível dos joelhos, dobrou a esquina do corredor e estacou diante da Agência Falcão Negro. Olhou pra mim. Vi que tinha uns bigodões de palha de aço.
— Esperando por mim? — perguntou ele, presunçoso.
— Agência Ajax, — eu disse, apontando pra porta vizinha.
— Por que não entra? — perguntou ele, indiscreto.
Em resposta, ergui no ar dois dedos e entre eles o cigarro aceso. O homem se deu por meio satisfeito, tirou do bolso um chaveiro e deslizou uma chave na fechadura. Antes de entrar, ainda me pespegou uma olhada de soslaio, como quem diz: Tou de olho em você.
Mais três minutos de tabagismo e joguei o cigarro numa caixa de areia suja a um canto do corredor. Caminhei até a Agência Ajax e bati à porta. Senti que o grandalhão da Falcão Negro me observava pelo olho mágico: estava mesmo de olho em mim. Dona Mônica reconheceu-me por uma fresta de porta e me pôs pra dentro.
Tinha largado, graças a Deus, de uma vez por todas o hábito de freira: estava linda num vestido vermelho que lhe caía às mil e uma maravilhas sobre as mil e uma maravilhas do corpo. Quanto à saleta, nada mudara ali desde a minha visita anterior: a mesma violeta sobre o arquivo, as mesmas telas nas paredes — o saco de batatas cantando ao microfone, o palácio Anchieta depois da gripe —, e a mesma visão do morro do Cabral, também conhecido como da Caixa d’Água.
— Estou atrasado? — eu disse, pra chamar-lhe a atenção pra minha pontualidade.
— O Sr. Eylau está com cliente, — ela disse, sentando-se à sua mesinha. Os óculos, a postos sobre seu narizinho arrebitado, lhe asseguravam o ar intelectual condizente com a natureza artístico-literária da Agência Ajax.
— Pensei que eu tivesse hora marcada com ele, — queixei-me.
Dona Mônica nem respondeu. Sentei-me na cadeira de palhinha e admirei-lhe os hábeis movimentos secretariais. Ela levou três minutos pra arrumar os papéis sobre a mesa, depois levantou-se, com a bolsa na mão.
— Com licença, — ela disse. Havia uma porta no fundo da saleta e ali ela entrou. Deu pra perceber que era um banheiro minúsculo. Deu pra especular como é que cabia ali dentro uma mulher opulenta como Mônica Vicentina Quinamor. Tudo questão de relatividade, pensei. Vai ver Dona Mônica, com todo aquele volume de peito e de bunda, não tinha peso nem consistência mais do que eu.
Na ausência de Dona Mônica, tive de encarar a muda violeta plantada em seu vaso de cerâmica. Fiquei ali, à espera de ouvir o som da descarga, confirmando que Dona Mônica fora dar uma mijada. O que ouvi foi baterem à porta do corredor. E a voz de Dona Mônica:
— Quer atender à porta pra mim, faz favor?
Abri a porta e dei de cara com o sujeito da Falcão Negro. Curioso. Eu teria jurado que ele usava bigodões de palha de aço, mas agora não havia nenhum vestígio deles no seu rosto eqüino. Ele empurrou a porta e foi entrando.
— Cadê Mônica? — perguntou, olhando-me desconfiado, como se eu tivesse alguma coisa a ver com o desaparecimento dela.
— Estou aqui, Tell, — cantarolou Dona Mônica, do banheiro. — Já estou saindo.
Tell? Guilherme Tell? Pais dão cada nome aos filhos. Enquanto eu matutava sobre o seu nome, Guilherme Tell sentou-se na minha cadeira — temi pelo que restava de palhinha no assento — e cruzou as pernas. E ficou olhando pra mim, desafiante. Resolvi peitá-lo. Levei o dedo sobre o lábio superior e toquei ali algumas vezes, interrogativo. Ele entendeu o gesto.
— Disfarce, meu caro, — ele disse. — Estava seguindo um cavalheiro casado que anda mijando fora do penico. Caso muito fácil, até porque a amante está colaborando conosco.
— A amante está colaborando? — estranhei.
— Afirmativo, — disse Guilherme Tell. — Ela quer foder com o casamento do cavalheiro por interesse próprio. Foi ela mesma que ligou pra minha cliente, a esposa do cavalheiro, e contou tudo. Minha cliente não acreditou. Então a Outra disse: Hoje à noite, depois que ele voltar pra casa, procura em baixo do banco do carona que você vai encontrar minha écharpe. Vou deixar lá de propósito, como prova de que tenho um caso com seu marido. Dito e feito: minha cliente achou a écharpe do jeito que a Outra disse. Agora estou no caso, pra confirmar o envolvimento. Próximo passo é o flagra.
— Mas que sacana, — eu disse.
— Quem? O marido? A Outra? A sociedade? — quis saber Guilherme Tell. — Mas não importa. Pra mim, quanto mais adultério, melhor pra minha conta bancária. Por mim, eu queria que todos os cônjuges de Vitória pusessem um monte de chifres uns nos outros. Já perdi a conta de quantos casamentos fiz desmanchar. Tem um cara que é meu cliente há três casamentos. Todas as esposas meteram chifre nele. A última, então, ninguém podia imaginar. Tem cara de anjo. Só foi desmascarada por acidente.
— Como é que foi? — perguntei, interessado.
— Vou contar, — disse Guilherme Tell. — Ela levou o amante pro motel no próprio veículo. Já estava saindo do motel quando o sujeito que vinha atrás bateu no veículo dela. Ela não quis nem saber de discutir, mas se mandou. Mas deu tempo do motorista de trás anotar a placa. Alguns dias depois, a maior coincidência. O cara viu o mesmo veículo no estacionamento de um shopping. Consciencioso, esperou pra falar com o motorista. Daí a pouco chegou o marido, que tinha saído com o veículo da mulher. O cara se apresentou, se desculpando todo, e referiu-se à batida na saída do motel. Dali mesmo meu cliente me ligou e me contratou pra um flagra.
— A coisa mais difícil, — eu disse, — é alguém querer pagar o prejuízo de uma batida de carro. Quando aparece alguém consciencioso, é pra acabar com o casamento do outro.
— O mundo é cheio de contradições, não é mesmo? — disse Guilherme Tell, com um sorriso feliz.
Dona Mônica acionou a descarga no banheiro e logo depois abriu a porta e saiu. Vinha sem óculos, portanto bem menos intelectual e muito mais maravilhosa. Guilherme Tell levantou da cadeira, foi até ela, segurou-lhe as mãos e deu-lhe um beijo possessivo na boca. Cara, fiquei surpreso e furioso. Talvez até, apesar da corpulência do ofensor, abrisse o verbo pra tomar satisfação contra aquele assédio sexual, mas Dona Mônica disse:
— Tudo bem, Amor?
E, dirigindo-se a mim:
— Este é Teodomiro Reis, meu namorado.
— Muito prazer, — disse Teodomiro Reis, não mais Tell mas Téo. E me apertou a mão no torno de sua manopla. Aí do bolso da camisa tirou um cartão. — Você é casado?
— Não, — respondi.
Ele hesitou um momento. Depois me estendeu o cartão.
— Pois fica com meu cartão assim mesmo, — disse. — Dá pra um amigo seu que seja casado. Nunca se sabe.
Dona Mônica explicou a Téo a minha ligação com a agência.
— Muito interessante, — disse Teodomiro Reis, desinteressado. E, voltando-se pra Dona Mônica: — Vamos, querida?
Estava com pressa: ansioso talvez por jogar com Dona Mônica uma partida de mico preto.
— Você pode dizer ao Sr. Eylau que eu já fui? — pediu-me Dona Mônica.
— Claro, — eu disse, engolindo o engulho que senti ao ver-me feito moço de recados da vadia.
Teodomiro Reis abriu a porta da agência, Dona Mônica saiu na frente, ele atrás. Antes de fechar a porta, o detetive piscou, filho da puta, um olho pra mim.
Fiquei inevitavelmente sozinho e, como diria Fernando Achiamé, na lama por amor. Ruminei com alguma bile o ato antecedente, que mal acabara de acabar mal, e tentei raciocinar. Afinal, eu já sabia que Dona Mônica tinha um namorado, e já sabia até que esse namorado se chamava Teodomiro Reis. Só não tinha visto a figura ainda, com bigode ou sem, nem podia imaginar que estivesse geograficamente situado tão perto da musa da Agência Ajax a ponto de ser vizinho de parede do banheiro da agência. O que tanto me incomodara então na experiência de ser apresentado a Téo e apertar-lhe a mão? Incomodara-me ver provada em definitivo a existência de uma criatura que, até essa maldita prova em contrário, podia ser — como aqueles amigos invisíveis que as crianças inventam — pura e inocente fantasia de Dona Mônica? Ou a existência de uma criatura que podia ser — quem dera — uma ficção criada pela moça pra incutir saudáveis ciúmes em seu pretenso e pretensioso pretendente? De qualquer modo, Teodomiro Reis era, tirando os seus bigodes, uma criatura realmente real. A mão que me apertara a mão era a mesma que usava pra afagar e afanar as delícias do corpo de Dona Mônica. Cara, isso era cru e cruel. Mas, em defesa própria, tentei ser filósofo. Afinal, Teodomiro Reis certamente não fora o primeiro a saborear, com mão, língua e pau, aquelas delícias, nem seria certamente o último. Minha vez, certa ou incertamente, um dia haveria de chegar.
Nisso abriu-se a porta do gabinete do Sr. Eylau e a saleta foi tomada de assalto por um forte odor de incenso. Na esteira do cheiro, como se anunciadas por ele, saíram do gabinete duas pessoas. Uma era o Sr. Eylau, que nem crescera desde a vez anterior nem se tornara mais bonito. A outra era uma mulher magra e baixa, de pele mortiça como a de um cadáver, embalsamada num vestido negro que lhe ia até os joelhos. Seus lábios estavam pintados com várias demãos de batom de um vermelho sanguinário. O Sr. Eylau vinha trocando com ela alguns arremates de conversa. Nem se dignou a cumprimentar-me nem muito menos a apresentar-me à distinta dama. Acompanhou-a até à porta, saíram juntos pelo corredor, falando ambos ao mesmo tempo. Devia ser uma cliente internacional, pra que o Sr. Eylau julgasse de bom tom acompanhá-la até o elevador, onde ela tomaria o avião pra Londres, Paris ou Nova York.
Voltou em questão de alguns minutos. A primeira coisa que fez, ao entrar, foi olhar pro relógio de pulso e resmungar, patronal:
— São 18:23. O senhor está atrasado trinta e seis minutos.
— Mas eu cheguei aqui pontualmente às 17:47, — aleguei em minha defesa.
— Não sei nada disso, — replicou ele, inflexível.
— Dona Mônica é testemunha, — exclamei.
— Onde está ela? — perguntou o Sr. Eylau.
— Pediu pra dizer-lhe que já foi, — respondi. Ia acrescentar: com o namorado. Mas esse acréscimo ficou preso na garganta.
— Não aceito uma testemunha in absentia, — decretou ele. — E não percamos mais tempo discutindo esse assunto. Aconselho-o a ser pontual da próxima vez.
O Sr. Eylau entrou no seu gabinete. Se ele certamente não crescera nem um centímetro nem uma polegada desde que eu o vira pela última vez, sua mesa parecia maior ainda em sua imensidão do que antes. De uma mera vareta fumegando sobre a mesa vazava o aroma de incenso que, segundo me pareceu, ameaçava tragar o mundo inteiro. O Sr. Eylau aspirou a fumaça como quem aspira o perfume de uma petúnia ou de um resedá e sentou-se. Sentei-me também.
— Excelente senhora, — ele disse, apontando metonimicamente pra vareta de incenso. — E muito intelectual. O livro dela vai inaugurar uma nova fase na história da Agência Ajax.
Cara, a dama sinistra estava mancomunada com o Sr. Eylau com objetivos de produção literária. Fiquei curioso:
— Com que então temos uma obra-prima no gatilho?
— Temos? — rebateu o Sr. Eylau. — Temos, por quê? O que tem o senhor a ver com esse projeto? Ponha-se no seu lugar, que é o de narrador de tantos graus a leste, outros tantos a oeste. Ou seja, narrador de um dos mais insignificantes projetos desta agência, e mais confusos também. Se eu pudesse cancelaria o contrato que em má hora assinei com o autor desse, desse, desse — faltou-lhe uma palavra adequada pra definir este livro, até que ela veio, como um espirro: — desse troço.
Aí ajeitou sobre a mesa o porta-retrato contendo a santa imagem de sua mãe, e afagou com carinho o retalho de pano negro que levava à lapela. Depois, mais calmo, disse:
— Essa senhora que acaba de sair daqui é nada mais nada menos que Eros Volapük.
Esperou que eu me desfizesse em interjeições de admiração e encantamento. Não fiz nada disso, por mais que me agradasse a idéia de agradá-lo. Não o fiz porque nunca ouvira aquele nome mais gordo antes.
— Não espera que eu acredite que não a conhece, — repreendeu ele. E, diante de minha cara de tacho, acrescentou: — Certamente a conhece pelo seu verdadeiro nome, Pulquéria de Souza.
Continuei encarando-o com a mesma cara de tacho e temi pelo meu emprego. O Sr. Eylau foi, porém, filosófico:
— Não posso esperar outra coisa, — regougou, e se digo regougou é porque somente ao Sr. Eylau, dentre todas as pessoas que conheço, pode aplicar-se esse verbo. E o que ele queria dizer com o que regougou era: Não posso esperar que o narrador de um mero projeto de subsolo tenha ouvido falar de Eros Volapük ou de Pulquéria de Souza.
— E quem que é ela? — perguntei.
— É uma célebre médium de Vitória, Portugal e Algarve, — ele disse. — Mas não só. É também poeta de primeira linha, tanto que pertence à Academia Feminina Espírito-santense de Letras, e aliás me fez a gentileza de confidenciar que pretende ingressar também na Academia Masculina. Além disso, tem uma loja de produtos místicos no Shopping Shopping e apresenta no canal 2 um programa chamado Fractais de Sonho.
— E trouxe pra agência um livro de poesia? — perguntei.
— Não, claro que não, — respondeu ele, com repulsa. — Poesia não vende. O que ela trouxe foi um livro de mensagens psicografadas.
— Sério? — eu disse.
— Serissíssimo, — ele disse, todo superlativo. — Belíssimas mensagens ditadas por vários irmãos desencarnados.
— Como? — eu disse.
— Irmãos já falecidos, — ele disse. — Alguns deles são pessoas famosas no Estado e até no país. Eis aqui o sumário do livro.
Passou-me às mãos uma folha de papel com o timbre da Fractais de Sonho, e por aí entendi que a loja mística de Eros Volapük tinha o mesmo nome de seu programa de televisão, ou vice-versa. O documento, como convém chamá-lo, continha as informações essenciais sobre o livro Mensagens sem carne. O sumário relacionava trinta e três mensagens, enviadas por dezoito espíritos desencarnados — expressão que me soou redundante —, todas elas psicografadas por Eros Volapük. Havia mensagens de personalidades históricas nacionais, como Conselheiro Barbarossa e Antônio Conselheiro, Carmen Miranda, Nelson Rodrigues, e regionais, como o presidente Jerônimo Monteiro, Vidocq Silva — entre parênteses a informação de que fora Rei Momo em Vitória em 1958 —, a pianista clássica Guilhermina Abranches e dois desembargadores, Domingos José Furtado de Mendonça e José Luís de Santa Rita Durão.
— Vamos ao que interessa, — disse o Sr. Eylau, tomando-me das mãos e dos olhos a folha de papel. — Li o seu relatório sobre o Projeto Leste-Oeste, e confesso que estou apreensivo. Primeiro, estou apreensivo quanto à inserção do que o senhor chama de antecapítulos e intercapítulos.
— Sr. Eylau, — eu disse, e pigarreei pra limpar a garganta e o cérebro. — Entendo que não convém entrar direto na história inconfessável. Tem que haver uma preparação, uma espécie de aquecimento, tanto pro narrador, que sou eu, como pro leitor, como pro próprio texto. Daí a composição dos antecapítulos, que são em número de quatro: “Capítulo de primeira necessidade”; “Freira na terça-feira”; “Capítulo que vem”; e este agora, em que nos encontramos. Esses antecapítulos relatam o advento do novo narrador, apresentando-o assim aos leitores, revelam o Clube das Terças-feiras sob a ótica de um narrador por assim dizer externalizado, e definem as linhas gerais da estratégia narrativa e estilística que será adotada pra contar a história inconfessável. Aí, sim, poderemos entrar na história com o pé direito.
— E os intercapítulos? — cobrou o Sr. Eylau.
— Os intercapítulos, como o nome o indica, — esclareci, — mantêm o contraponto, iniciado nos antecapítulos, entre as duas dimensões do texto. Ou seja, enquanto os capítulos se referem diretamente à fábula, os intercapítulos acompanham os bastidores metalingüísticos do texto. Na dimensão da fábula está o triângulo amoroso formado por Garibaldi, Maria da Penha e o Narrador Original; aí estarão também, eventualmente, os demais sócios do Clube das Terças. Na dimensão extra-fabular, ou supra-fabular, está a Agência Ajax, está o senhor, estou eu, está Dona Mônica e estão outras personagens do nosso mundo substantivo. Até que um dia os dois mundos, as duas dimensões, venham a colidir, e aí salve-se quem puder.
— Muito inviável, — o Sr. Eylau disse.
— Permita-me dizer que não é, não, — eu disse. — Poeta Homero fez isso na Ilíada e na Odisséia, ao contar a história em dois planos, o dos gregos e troianos se fodendo aqui em baixo e o dos deuses do Olimpo dando pitaco lá de cima.
— Bom, se Homero usou essa técnica, — ele disse, — já não está mais aqui quem falou. Mas ainda continuo apreensivo, porque Homero é uma coisa, o senhor é outra; porque uma coisa é um triângulo épico formado por Menelau, Helena e Páris, outra coisa é um triângulo metalingüístico formado por Garibaldo, Maria da Penha e o Narrador Original. Vê lá o que o senhor vai aprontar. Agora tratemos do tal caldeirão de técnicas narrativas. Não sei se isso vai funcionar. Gostaria que o senhor me desse algumas razões para a escolha de fontes tão disparatadas.
— Pois não, — eu disse. — Luís de Almeida eu escolhi porque escreveu um conto tendo como personagem o detetive Teodomiro Reis. É um conto ultrametalingüístico, e acho que tem tudo a ver com esta segunda parte do projeto.
— Quem é Teodomiro Reis? — perguntou o Sr. Eylau.
— É o seu vizinho da Agência Falcão Negro, — respondi.
— E vai entrar na história? — perguntou ele.
— Acabou de entrar, — respondi.
O Sr. Eylau meneou a cabeça, pessimista.
— E Raymond Chandler? — perguntou.
— De Raymond Chandler, é óbvio, — respondi, — pretendo retirar um pouco da atmosfera noir do romance policial americano dos anos quarenta.
— Romance policial? — estranhou ele.
— Nada mais natural, — repliquei, — já que temos um detetive na fábula.
— Se facilitar, — resmungou ele, — esse detetive vai tomar o lugar de Garibaldo como personagem principal do livro.
— Deixa comigo, — eu disse, pra tranqüilizá-lo.
— É aí que reside o risco, — ele disse. — E esse tal de Marcos Tavares?
— Marcos Tavares, — esclareci, — contribui com a presença eventual de trocadilhos ao longo do texto e sobretudo com a falta ou a dificuldade de comunicação entre os personagens.
— Isso não me parece preciso, — ele disse.
— Posso explicar melhor, — eu disse. — É como se a atmosfera noir contribuísse pra embaçar também a comunicação entre os diversos personagens.
— Ainda não me parece preciso, — insistiu ele.
— Visualize então o ambiente da história, — eu disse, — como uma torre de Babel, só que light, porque os personagens não se entendem mas não percebem que não se entendem. Está preciso agora?
— Meu amigo, — ele disse, — eu não estava usando o adjetivo preciso com o sentido de exato, mas de necessário. Mas o senhor me convenceu. Com um narrador como o senhor, a influência de Marcos Tavares não só é precisa como necessária.
— Precisamente, — concordei.
— Quem é o próximo? — suspirou ele.
— Evelyn Waugh, — respondi. — Nesse autor quero me inspirar não só quanto à satirização desmedida da sociedade, mas também, e sobretudo, quanto ao tormento a que quero submeter o Narrador Original, o mesmo a que Waugh submeteu o personagem principal do romance The Ordeal of Gilbert Pinfold.
— ? — perguntou o Sr. Eylau com o olhar.
— Quero que ele seja vítima de alucinações, — informei.
— Temo que eu acabe submetido a tormento semelhante, — disse o Sr. Eylau.
A essa altura senti que a estratégia do caldeirão devia estar impressionando fundo o Sr. Eylau. Quis que Dona Mônica estivesse ali, naquela hora, pra ver-me bem sucedido na inquirição inexorável do Sr. Eylau. Quem sabe se ver-me incensado pela tácita aprovação do nosso exigente superior não lhe viraria a cabecinha? Quem sabe não dispensasse sem aviso prévio o seu Sherlock em benefício de um valor mais — figurativamente falando — alto?
O Sr. Eylau pediu-me que terminasse o meu arrazoado o mais rápido possível.
— Julio Cortázar entra no caldeirão como autor dos textos encadeados de Um tal Lucas, que pretendo que dialoguem com algumas cenas da história inconfessável. José Carlos Oliveira entra não como cronista nem como romancista, mas como folhetinista de O naufrágio do Dr. Stevenson no Edgar II, já que entrevejo no nosso livro um surrealismo dietético semelhante ao que José Carlos criou nesse texto. Francisco Manoel de Melo entra como autor da Carta de guia de casados, que espero que ajude a descrever a relação conjugal de Garibaldi e Maria da Penha Gotti. A Miscelânea quinhentista de Garcia de Rezende entra como contraponto caótico-poético. Quanto a Nuno Castanheira, cortei fora. Afinal, pra que incluir esse autor mineiro entre as fontes do projeto se Francisco Grijó me apresentou a um outro autor, semelhante a Castanheira, mas muito mais refinado, e que tem sobre este a vantagem de ser capixaba? Refiro-me a Viriato Gambini. O senhor leu Reykjavik submersa?
— Li não, — disse o Sr. Eylau.
— E Nudez na auto-estrada?
— Também não, — disse o Sr. Eylau.
— Devia ler, — eu disse. — Eu fiquei impressionado. Gambini trabalha a metalinguagem como Italo Calvino, mas as tramas dele têm mais a ver com o romance norte-americano contemporâneo, John Fante, por exemplo.
— E as histórias da revista Pato Donald? — perguntou o Sr. Eylau.
— Ah, o toucinho do caldeirão! — exclamei. — Histórias em quadrinhos como fonte intertextual de escrituras pós-modernas. Absolutamente epifânico, diria eu. O senhor notou que já comecei, ainda que timidamente, a empregar esse recurso nos antecapítulos?
— Notei, — disse ele. — Lembro-me especialmente de uma passagem em que o senhor escreveu que um dos sócios do clube comia e bebia como João Bafo-de-Onça.
— Isso mesmo, — disse eu. — Tirei a símile de uma história chamada “O tesouro de Domba”, publicada em 1953 ou 54. Agora imagine o senhor, daqui a alguns anos, quando se assentar a poeira dessa novidade, a histeria acadêmica diante da necessidade de adaptar as teorias da intertextualidade às aproximações que terei feito, no Projeto Leste-Oeste, entre Pateta e Garibaldi, por exemplo, e entre João Bafo-de-Onça e Rogério Coimbra. Quero viver pra ver! E, lógico, pra ser coroado de louros pelo rasgo criativo.
— Alto lá, — disse o Sr. Eylau. — Nesse caso, a agência é que seria coroada de louros, e não o senhor. Já esqueceu a renúncia de autoria estabelecida pelo artigo sexto do contrato que o senhor assinou? De qualquer modo, duvido muito que essa coroação venha a ocorrer.
— O senhor não gostou da sacada? — perguntei.
— Não posso dizer que tenha gostado, — ele disse. — Me pareceu muito infantil.
— No entanto, — eu disse, — há um precedente na primeira parte do projeto. No capítulo 19, pra ser mais exato. O Narrador Original se refere ali à chinamite, combustível inventado pelo Pato Donald. Foi essa referência que me deu a dica. E, se ele pôde fazê-lo, eu também posso.
— O senhor não pode fazer nada, — ele disse, — a não ser o que eu diga que o senhor pode fazer.
— Isso me lembra, — repliquei, — uma frase de José Carlos Oliveira, em que um personagem chamado Oskar diz a uma personagem chamada Anita: “Só farás o que eu ordenar, e eu ordeno que faças o que bem entendes.”
O Sr. Eylau fez silêncio. Sua respiração era pesada como seu pensamento.
— Como eu disse há pouco, — murmurou ele, por fim, — se eu pudesse eu bem que cancelaria o contrato do Projeto Três por Dois e jogaria no lixo tudo que foi feito até agora. Tenho as piores dúvidas quanto às perspectivas desse projeto, mas sou obrigado a ordenar que faças o que bem entenderes.
— Muito obrigado pela confiança, Sr. Eylau, — eu disse.
O Sr. Eylau me ofereceu uma pastilha de hortelã. Aceitei. Ele se serviu de uma também.
— Mas lembre-se de duas coisas — ele disse: — a primeira é que vou fiscalizar cada linha e cada entrelinha que o senhor produzir; a segunda é que o senhor só receberá pagamento quando começar efetivamente a contar a história inconfessável. Saiba que não vou pagar um centavo nem por antecapítulos, nem por intercapítulos nem por subcapítulos ou o que mais o senhor venha a inventar.
Cara, fiquei tão contrariado que até engoli a pastilha de hortelã. Contava como certo sair da agência com um cheque, ainda que magro, no bolso. Quis dizer alguma coisa, mas o Sr. Eylau levantou-se. Levantei-me também. Estendeu a mão. Apertei-a. Voltei-me pra sair. Aí percebi como era injusto que eu saísse frustrado no âmago do coração do bolso e que ele ficasse sentado ali aspirando tranqüilo o odor do incenso e meditando confiante sobre o livro de Dona Eros.
— Sr. Eylau, — eu disse.
— Sim? — ele disse, cortante.
— Não tenha muita pressa, — eu disse, — em publicar o livro de Dona Eros.
— Como? — ele exclamou. — O cronograma editorial da Agência Ajax não lhe diz respeito, senhor.
— Espere pelo menos, — sugeri, — até que morra o desembargador Furtado.
— Que quer o senhor dizer com isso? — ele blaterou.
— Quero dizer, — eu disse, com firmeza, — que o desembargador Furtado é um dos espíritos desencarnados que enviaram mensagem a Dona Eros.
O Sr. Eylau começou a entender o espírito da coisa.
— E acabei de cruzar com ele na rua antes de vir pra cá, — eu disse.
— Vivo? — ele exclamou.
— E com saúde, — eu disse.
O Sr. Eylau sentou-se e pousou a grande cabeça na concha das grandes mãos.
— Preciso pensar a respeito, — ele disse.
— Retificando o que eu disse acima, — eu disse, — acho que o que o senhor deve fazer é suprimir do livro a mensagem do desembargador. Não adianta esperar a morte dele: ele é imortal.
Saí do gabinete pra saleta de recepção. Saí da saleta de recepção pro corredor mal iluminado. Diante do elevador havia três pessoas em pé: dois homens e uma moça. Os homens, pelos ternos escuros, pelas maletas petulantes, pelo cheiro de vade-mecums, eram advogados. A moça era a doce Fúlvia: revi-lhe ali o lábio triste, o cabelo brando e anêmico. Os dois rábulas e suas maletas olharam-me com desprezo como se eu estivesse cheirando a incenso. Descemos juntos os quatro. Os rábulas falavam em acórdãos e liminares. Fúlvia e eu dividíamos o mesmo silêncio. Cutuquei-a com o olho, mas ela não reagiu. Saímos do edifício juntos os quatro. Os dois rábulas trocaram até-amanhãs com Fúlvia e se afastaram pela calçada, falando de liminares e acórdãos. Fúlvia atravessou a rua, seguiu até à avenida Florentino e juntou-se à corrente de gente que subia em direção à avenida Jerônimo. Segui-a como um ladrão à noite.
Eram sete e qualquer coisa. Quanta gente na calçada, quantos veículos na rua! Lá adiante, atracados ao cais de São Francisco, distraíam-se alguns navios a ver o movimento em terra. Segui a doce Fúlvia por entre a multidão ambulante até o ponto de ônibus em frente ao antigo hotel Tabajara. Ali ela parou, e no meio daquele povo todo, magricinha, quase passava por invisível. Achei que a noite podia ser que me desse coisa melhor do que o dia dera. Aproximei-me e saquei do bolso um exemplar do meu livretim, Musa do Transcol, publicado pela Bico de Lacre Editores com recursos da Lei Rubem Braga. Abordei a moça como um adolescente débil mental:
— Seu nome é Fúlvia, não é?
Ela se inteiriçou toda e apertou a bolsa contra o peito.
— Não se lembra de mim? — perguntei.
Ela apertou ainda mais a bolsa contra o peito.
— Descemos juntos no elevador, — rememorei.
Ela desviou o olhar de mim pro ônibus amarelo que vinha atracando no cais do ponto. Era um ônibus do Transcol, fazendo ali uma última escala antes de partir com destino ao Terminal de Campo Grande. O olhar dela acendeu-se numa chama de alívio.
— ‘Cença, — ela disse, passando por dentro de mim como por dentro de um fantasma.
Pensou que fosse escapar? Não tão fácil. Corri-lhe atrás e meti-lhe no vão entre peito e bolsa o exemplar do Musa do Transcol.
— Leva e lê, — sugeri; e acrescentei, já falando pras costas dela: — E depois me diz.
A doce Fúlvia foi arrastada pela voragem da multidão que invadiu o ônibus. Fiquei olhando pra ela com ternura. É muito tímida, pensei. Mas depois que ler meus poemas duvido que deixe de sorrir na próxima vez que bater o olho na pessoa deste poeta. Avancei no tempo, em pensamento, e já me vi sendo visto por Dona Mônica de braço dado com a doce Fúlvia; já me vi vendo o rubor de ciúme tingindo o belo rosto de Dona Mônica.
As portas do ônibus se fecharam herméticas sobre a multidão maciça. Já nem pude mais distinguir a doce Fúlvia no meio dos passageiros que se entrecosturavam de pé em cada polegada de espaço do ônibus. Que zarpou resoluto: próxima parada, Terminal de Campo Grande.
Aí que eu olhei e vi, na rua, junto ao meio-fio, na mais escarrada e cuspida das sarjetas, pisado e pisoteado por mil sapatos e sandálias, um exemplar do livro de poemas Musa do Transcol.
O pobre livretim dirigiu ao autor um mudo apelo de socorro. Fiz que nem o conhecia. Sim. Jazia ali tão degradado, física e literariamente, que neguei-o como Pedro negou a Cristo.
As baratas que o lessem.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)