— Projeto Garibaldi? — exclamei. — Que projeto é esse que não estou sabendo de nada?
— Não tem nada a ver com o senhor, — disse o Sr. Eylau. — Trata-se de um projeto para publicar a primeira parte de Dois graus a leste, três graus a oeste. A parte composta pelo velho narrador.
— E foi recusado? — exclamei, furibundo. Numa hora dessas uno-me solidário até mesmo ao chato do Velho. — Recusado por quê?
— A burocracia da Lei, — disse o Sr. Eylau, — exige um documento que nós esquecemos de anexar ao processo: uma declaração por escrito de Garibaldi Magalhães concordando em participar do projeto como personagem principal. Sem esse documento, nosso projeto nem sequer chegou à etapa de avaliação. Para usar linguagem futebolística, foi eliminado no torneio início do campeonato.
— Que pena, Sr. Eylau, — consolei-o. — Apesar de ser um texto do meu rival, não queria que passasse por situação tão patética.
— Coisas da vida, — disse o Sr. Eylau, filosófico. Logo, porém, menos filosófico, acrescentou: — Sei de pessoas que, para garantir seus próprios projetos, sempre que vão ao escritório da Lei levam biscoitos Alcobaça para distribuir entre os funcionários. Aposto que os projetos dessas pessoas não são recusados sumariamente, por falta de um documento, como foi o nosso. Tento encarar friamente essa situação, mas confesso que às vezes o sangue me sobe à cabeça e sinto vontade de fazer uma loucura.
Telefone sobre a mesa do Sr. Eylau zumbiu. Era Dona Mônica. Chegara o sujeito agendado pras quatro horas. O Sr. Eylau olhou pra mim e disse:
— Não se retire não. Do jeito que estou fragilizado esta semana, é bom contar com a sua presença aqui para me assistir se for necessário.
Bateram à porta, que se abriu pelas mãos de fada de Dona Mônica. Ela afastou-se pra dar entrada ao recém-chegado. Quem era? Leitor quer saber quem era? Pois era José Garibaldi Magalhães: o próprio. * Assim que José Garibaldi Magalhães, desengonçado como só ele sói, entrou gabinete do Sr. Eylau adentro, percebi que muito ainda mais amplo do que eu pensara a princípio era o paralelismo entre a visita que fizera mais cedo à Bico de Lacre Editores e a que fazia agora à Agência Ajax de Produções Literárias. Confira o leitor: lá, como cá, fui recebido por secretárias cujos nomes começam pela letra M; lá, como cá, sentei-me em audiência com os respectivos titulares de uma e outra empresa; lá, como cá, deparei-me com o que se poderia chamar de calamidade editorial; lá, como cá, tentei receber meus honorários (que me foram pagos lá mas não cá); e agora, por fim, se lá me vi em presença de um sócio emérito do Clube das Terças-feiras, a saber, Fernando Achiamé, cá me vejo em presença de outro sócio (só que mais emérito ainda: o mais emérito de todos) do mesmo clube, a saber, José Garibaldi Magalhães.
Confesso que me bateram no peito um tique e um taque de pura emoção diante da perspectiva de conhecer pessoalmente, agora vis-à-vis e tête-à-tête, o meu personagem principal. Garibaldi descambou porta adentro alto e sem engonços, plantado sobre suas longas pernas de Dexter Gordon e sobraçando um texto impresso encadernado em capa dura. Levantamo-nos, o Sr. Eylau e eu, corteses, pra apertar-lhe a mão. Quanto a mim, coração bateu ainda mais taquicardíaco (ou mais tiquetaquicardíaco, como diria o meu amigo Alfred) nessa hora histórica. O Sr. Eylau é que nem se tocou: triste ficou como triste estava. Sentamo-nos os três. Garibaldi depôs maternal sobre o próprio colo o texto impresso, deu uma espiada nas unhas das mãos, pra ver se estavam no lugar, e não disse palavra. Apenas enfiou sobre o Sr. Eylau o olho esganiçado e espremeu entre os lábios um sorriso de maraçapeba.
— Em que posso servi-lo, Sr. Garibaldi? — perguntou o Sr. Eylau.
— Ah! — exclamou Garibaldi. — Era isso que eu esperava que o senhor dissesse. O senhor quer mesmo saber?
— Acho que é o senhor que quer que eu saiba, — disse o Sr. Eylau. — Ou muito me engano ou foi o senhor que pediu esta audiência comigo.
— Bem enunciado, — disse Garibaldi. — Nesse caso não me resta outra alternativa a não ser colocar as cartas na mesa. O motivo da minha visita, senhores, é submeter à apreciação da Ájax —
— Ajax, — corrigiu o Sr. Eylau.
— Da Ajax um projeto de minha concepção e autoria, que intitulei —
Aqui Garibaldi interrompeu-se pra, num borbotão, dizer:
— Não, não, acho melhor começar historiando como foi que me bateu o estalo que deu origem a esse projeto. Foi assim: um mês atrás, estava lá em casa arrumando a estante de livros e dei com minha velha edição das Novelas extraordinárias, de Edgar Allan Poe. É uma edição da Garnier, que pertenceu a meu pai, e estão até faltando as últimas páginas, e por isso perdeu-se a parte final do conto “Berenice” e alguma coisa mais que não tenho como descobrir, porque perdeu-se o sumário também. Mas ainda ficou muita coisa boa ali, inclusive os três melhores contos de Poe, na minha Modesta Opinião, que são “O escaravelho de ouro”, “A carta roubada” e “O duplo assassínio na rua Morgue”. Meus amigos, parei de arrumar a estante pra reler essas obras-primas. Regalei-me com elas. Li-as pra mim mesmo, depois chegou Penha, que é a minha, ham, pois é, chegou Penha e li “O duplo assassínio” de novo, em voz alta, pra ela ouvir e se regalar também. Depois, deu vontade de tomar um café, então fomos tomar um café. Durante o café eu estava tão absorto em mim mesmo que Penha disse, como dizem as atrizes nos filmes americanos em situações semelhantes: Alô! Alô! Aí eu acordei do meu devaneio. Penha me perguntou: Em que que você está pensando? E eu respondi: No título do conto de Poe que li pra você: “O duplo assassínio na rua Morgue”. E o que tem isso, ela perguntou. Tem, eu disse, que um título como esse seria fatalmente impossível no Brasil, porque os nomes das ruas, aqui, com rarissimíssimas exceções, não se prestam à literatura. Aí eu disse a ela: Quem ia querer ler um conto chamado “O duplo assassínio na rua Tenente-coronel Maximiliano José Alves da Fonseca Júnior”? Credo, ela disse. Exatamente, eu disse. Um título como esse faz broxar o mais tarado dos leitores de literatura. Os amigos, por exemplo: os amigos encarariam um conto com esse título?
— Dificilmente, — disse o Sr. Eylau. E professorou: — O título de uma obra literária é de capital importância para captar o interesse do leitor em potencial.
— Existe uma rua Tenente-coronel não sei das quantas? — perguntei.
— Acho que não, — disse Garibaldi, — mas bem que poderia existir. Vocês sabem que os nomes de ruas, praças, avenidas, ou seja, dos logradouros em geral, no Espírito Santo e no Brasil, estão sob a pior das custódias, que é a das câmaras de vereadores. Vereador não quer saber de outra coisa que não seja voto. E nome de rua dá voto. Se você apresenta um projeto pra dar a uma rua que se chamava, digamos, rua da Árvore, o nome de algum falecido comerciante, você garante, nas eleições do ano que vem, os votos da viúva, dos filhos e noras, das filhas e genros e até dos netos votantes do homenageado. É uma tentação muito grande pra qualquer vereador que se preze, e afinal árvore não dá voto. Que importa então a ele se a pobre rua está condenada a carregar pela eternidade afora o nome, digamos, de Delecarliense Drummond de Alencar Araripe? Importam, sim, os votos que ele vai garantir com essa condenação. Porque por voto vereador dá até a, ham, a camisa. Nada o detém. Por voto vereador se arrisca até a queimar no fogo do inferno. Não vê o que aconteceu aqui mesmo em Vitória: a câmara em peso teve a coragem de espoliar a própria Nossa Senhora, mãe de Deus, pra bajular a família de um empresário poderoso. Lembram não do caso?
Eu lembrava. Garibaldi referia-se ao caso da avenida Nossa Senhora dos Navegantes, que os vereadores julgaram extensa e importante demais pra levar só o nome de Nossa Senhora e cortaram-na ao meio, pra fins onomásticos, bem entendido, dando à metade dela o nome de Américo Buaiz. Consolo de Nossa Senhora é que os hereges ainda lhe deixaram metade da avenida. Fosse uma santa menor, tipo Santa Rita dos Impossíveis, teria, apesar de toda a sua capacidade pra lidar com casos impossíveis, perdido a avenida toda pro falecido empresário. Garibaldi esperou a conclusão deste parágrafo narrativo pra continuar:
— Mas não me interessam aqui ilações religiosas mas literárias. Estou defendendo é o direito da literatura brasileira de poder usufruir de nomes de ruas literários. Todo país civilizado garante esse direito a seus escritores. “O duplo assassínio na rua Morgue” é o caso clássico. Mas tem muitos outros. O nome do romance póstumo de Eça de Queiroz é A tragédia da rua das Flores. Ora vejam só. Nós tivemos uma rua das Flores em Vitória, que se chamou assim, segundo diz a lenda, porque nela moravam, lá pelos idos de 1820, as moças mais bonitas da cidade, que eram as filhas do Dr. Pientznauer. Veio a vereança predadora, que não respeita nem moça bonita, e mudou o nome da rua pra Dionísio Rozendo. Pronto. Cagaram no pau dos nossos escritores que, agora, se quiserem, vão ter de escrever um romance chamado A tragédia da rua Dionísio Rozendo.
— Muito correto o seu ponto de vista, — disse o Sr. Eylau. — Como agente de produções literárias, minha simpatia está toda com o senhor. Mas ainda não vi aonde —
— Deixe-me dar mais alguns exemplos, — interrompeu Garibaldi. — Um: o grande Henry James escreveu um romance chamado Washington Square. Nossos escritores teriam a opção de escrever, digamos, Praça Antônio Jacob Saad. Outro: existe um conto de Dashiell Hammett com o título “A casa da rua Turk”. Um título equivalente entre nós seria “A casa da rua Carlos Eduardo Monteiro Lemos”. Mais outro: eu li uma vez um romance policial de Stanley Ellin chamado A chave da rua Nicholas.
— Belo título, — eu disse.
— Também acho. Em Vitória, qualquer coisa análoga viraria, por exemplo, A chave da rua Amélia Tartuce Nassar. Não há nada de belo nesse título.
— Concordo, — concordei.
Garibaldi, empolgado, continuou:
— E Sinclair Lewis, que escreveu um romance chamado Rua Principal? Quase todas as cidades do interior dos Estados Unidos têm a sua Main Street. A partir dessa rua, Lewis fez um retrato social que valia pra qualquer dessas cidades, todas tão idênticas entre si em seus vícios e virtudes, e o título do romance não podia ser outro nem melhor. Isso, no Brasil, seria impossível, porque vereador nenhum admitiria dar à rua principal de uma cidade o nome choco de rua Principal. Um nome desses só homenageia a própria rua, e desse mato não sai voto.
— Tudo bem, — disse o Sr. Eylau. — Mas ainda não entendi —
Garibaldi não deixa o Sr. Eylau dizer o que mas ainda não entendeu:
— Até pras crianças escreveram-se livros com nomes de rua. Exemplo? Os meninos da rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár. Como se chamaria um livro similar ambientado em Vitória? Os meninos da rua Soldado Miguel Furtado. Os meninos não teriam saco de ler esse livro, só por causa do título.
— Não há nenhum autor brasileiro que tenha escrito um livro com nome de rua no título? — quis saber o Sr. Eylau.
— Luís de Almeida, — Garibaldi respondeu, da ponta da língua. O Sr. Eylau recuou o cabeção ao ouvir o nome do inimigo. — É um autor de Vitória que impinge aos leitores da Internet algumas croniquinhas sobre o quotidiano de uma delegacia. Nunca li nada, mas meu amigo Pedro Nunes lê, e gosta, por alguma razão lá dele. O nome dessa série de crônicas é Chapot Presvot 272, que é o endereço da delegacia.
— Esse não vale, — disse o Sr. Eylau. — Não tem outro, mais nacional?
— Guilherme Figueiredo, — Garibaldi respondeu, de novo da ponta da língua. — Mas só que o livro dele tem no título o nome de uma rua de Paris: 14, Rue de Tilsitt. Imaginemos um título equivalente com o nome de uma rua de Vitória: Rua Lumberto Maciel de Azevedo 14. Que tal?
— Inconcebível, — disse o Sr. Eylau.
— Isso me leva, aliás, a lembrar uma coisa. Queria ater-me ao campo da literatura, mas, como tenho algum conhecimentozinho de jazz, lembrei-me de uma composição do pianista Lennie Tristano que tem como título o endereço do estúdio que ele manteve em Nova York durante anos: 317 East 32nd Street, também conhecida como East Thirty-Second e como 317 E 32nd. Esse recurso onomástico é proibitivo pros músicos brasileiros.
Aí Garibaldi respirou fundo pra entrar nos aspectos teóricos da questão:
— Mas o problema da incompatibilidade entre os nomes de ruas de Vitória e a literatura está, portanto, em dois aspectos: primeiro, os nomes das ruas são longos demais; segundo, não têm, digamos, charme poético. Por que os nomes são longos? Primeiro, porque a vereança desvairada não admite abreviação. O poeta Augusto Lins sempre foi conhecido como Augusto Lins. Mas a rua que tem seu nome chama-se Augusto Emílio Estellita Lins, porque o vereador autor do projeto nunca leu um livro do poeta e ignora que o poeta se chamava apenas Augusto Lins. Segundo, a vereança prolixa agrega aos nomes dos homenageados os seus títulos, quando é o caso. A gente vê, nas ruas de Vitória, uma porrada de Desembargador, Professor, Engenheiro, Soldado, General, Presidente, Governador, Deputado e mais o caralho a quatro, totalmente desnecessários. E por que os nomes não têm charme? Que charme pode ter, pra nome de rua, um nome como Serapião Tolentino Cavalcante? Além disso, boa parte dos prenomes dos homenageados estão no que um teórico chamaria de grau zero de lirismo: Aflordízio, Crisolino, Dióscoro, Duntalmo, Elesbão, Erotildes, Itobal, Lucidato, Medardo, Orcalina, Orozimbo, Pantaleão, Urquízia, Arquimimo e outros mimos. Eu digo aos senhores: eu preferiria morar na rua das Putas do que na rua Euflorzina dos Anzóis Carapuça.
— Está bem, — disse o Sr. Eylau. — Já entendi a sua tese. Mas o que a Ajax pode fazer pelo senhor?
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor, clique aqui)