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Dostoiévski ou entre a mãe e a filha

A jovem de blusa amarela e calça jeans parou meio intimidada diante do número 272 da rua Chapot Presvot.

Quando tomou coragem, empurrou o portãozinho desconjuntado que dava acesso ao jardim da casa onde funcionava a 1ª Delegacia de Polícia da Praia do Canto, e entrou. Uma calçada estreita, de cacos de cerâmica, vermelhos e pretos, conduzia até a varanda em arco, destacada do corpo do antigo imóvel residencial.

Sentado na mureta da varanda, de costas para a rua, um homem curtia um cigarro, projetando languidamente espirais de fumaça para o alto.

“Bom dia,” disse ela. “Eu queria falar com o delegado.”

O homem do cigarro olhou-a de cima em baixo, e fez seu diagnóstico mental: “Mulher da classe média baixa, jovem e bonita – um bom pedaço.”

“O delegado está ocupado, atendendo ao deputado Ribeirinho. É assunto particular?”

Ela pensou se valia a pena continuar ou ir embora. Mas decidiu-se: “Eu queria dar uma queixa…”

“Então pode ser comigo mesmo,” disse o homem, levantando-se, enquanto atirava a guimba do cigarro no canteiro sem grama, diante da varanda. “Meu nome é Pedro e eu sou o escrivão de polícia.”

A jovem seguiu o escrivão, passou pela sala de piso de tacos de madeira que formavam desenhos em preto-e-branco e entrou no recinto dos depoimentos.

“Sente-se e fique à vontade,” disse o escrivão, preparando a Olivetti para datilografar a queixa. “Agora me diga seu nome, nacionalidade, estado civil, profissão, número da carteira de identidade, CPF e endereço.”

Ela tornou a avaliar se não devia ir embora, dando o assunto por encerrado antes que o tivesse começado. Mas ficou.

“Núbia, meu nome é Núbia e sou casada…”

O escrivão a olhou por cima dos óculos de aros redondos e finos, mas não fez nenhum comentário.

“Núbia de quê?”

“Núbia Lima e Silva.”

“Lima e Silva?” A pergunta veio acompanhada de uma nova espiada por sobre as lentes oculares.

“Por que o senhor estranhou?”

“Não estranhei, apenas liguei seu sobrenome ao do Duque de Caxias. Era seu parente?”

“Eu, hein?!…” reagiu a jovem com um sorriso curto, mas suficiente para que o escrivão admirasse seus belos e harmoniosos dentes.

Depois de datilografar os dados iniciais do depoimento, ele fez a pergunta essencial, fixando a interrogada: “Qual é a queixa que a senhora deseja apresentar?”

“Bem, é contra o meu marido…”, disse ela, mexendo-se na cadeira.

O escrivão dirigiu-lhe outra olhadela inquietante, desta vez um pouco mais demorada, por cima dos óculos. “O que foi que seu marido fez?”

“Bem, ele… ele quis me forçar, sabe como é?”

Pedro sabia, ora se sabia, mas queria pormenores, depoimento são pormenores. “Explique-se melhor, por favor.”

“Queria me forçar, ora! Queria ter relação comigo… daquele jeito. Preciso dar detalhes?”

“Que precisa, precisa,” disse ele, os olhos vivazes, enquanto acendia um cigarro.

“Olha, eu vou mostrar as marcas,” disse ela, soltando um botão da blusa e oferecendo a visão dos ombros límpidos, livres dos cabelos longos que suspendeu com a mão, num gesto de toalete. “Está vendo?”

Sim, o escrivão via o bem torneado corpo do delito com arranhões e equimoses violáceas.

“Mas seu marido (o escrivão quase disse esse patife) conseguiu consumar o ato?”

“Como?”

“Ele conseguiu o que queria?”

“Claro que não. Eu reagi, gritei, bati a porta do nosso quarto e fui dormir na sala. Mas mesmo sendo uma tentativa fracassada é crime, não é?” perguntou, indecisa.

“É crime se houver queixa,” esclareceu o escrivão. “Nosso delegado, Dr. Digital, costuma dizer que sem queixa não há queixoso e, sem queixoso, não há queixa. É o que ele gloriosamente chama de princípio da queixa.”

“Sabe que ele tem razão.”

“Razão? O Dr. Digital sempre tem razão… Mas quando foi essa agressão contra a sua… natureza?”

“Ontem à noite,” respondeu Núbia. “Hoje pela manhã é que decidi vir à Polícia.”

“Fez de muito bem. Se todas as mulheres fizessem como a senhora, o mundo não seria tão dostoievsquiano.”

Notando o espanto no rosto da jovem, o escrivão procurou justificar-se: “É uma expressão tirada do nome de Dostoiévski, um romancista russo, da minha predileção.”

“Eu sei quem ele é,” disse Núbia, devolvendo o espanto para o escrivão.

“Sabe? Você (o você escapou-lhe sem querer) lê Dostoiévski?”

“Eu não. Mas minha mãe lê.”

“Sua mãe lê?”

“Lê e é apaixonada por ele. Ela diz que aprendeu a gostar de Dostoiévski com um professor de português…”

“Onde sua mãe estudou?” perguntou o escrivão, sem esconder seu interesse.

“Na Academia Bil Vicente.”

“Bil, não! Gil, Gil Vicente. Pois olha, minha filha: quem dava aula de português nessa academia era eu. E sempre falava de Dostoiévski, que eu considero um dos maiores romancistas mundiais!”

“Que coincidência incrível!” encantou-se a depoente.

“Realmente, uma bruta coincidência. E a propósito, como é o nome de sua mãe?”

“Nubiana. Por isso é que eu me chamo Núbia. Lembra-se dela?”

O escrivão não se lembrava e se recriminava por não se lembrar já que, provavelmente, muito provavelmente, tal filha, tal mãe.

“Ela se parece comigo. Aliás, eu me pareço com ela…” corrigiu-se Núbia, rindo envaidecida da semelhança filial, os dentes finos e marmóreos.

Mas nem por aquela indicação ele conseguia se lembrar da antiga aluna.

“Bem, vamos voltar ao nosso depoimento… A senhora dizia que…”

“Olha, seu escrivão, a referência que o senhor fez ao Dostoiévski me deixou indecisa. Acho que vou conversar primeiro com minha mãe, ouvir a opinião dela sobre este assunto, talvez até ler um pouquinho de Dostoiévski. Se for o caso, volto para continuar a queixa. O que o senhor acha desta decisão?”

“A prudência é uma virtude. Aliás, uma queixa é um negócio muito sério, teremos de ouvir o seu marido, sabe como é, essas coisas começam numa acusação e viram monstro, acabam afetando a vida das pessoas…”

“Então eu vou parar por aqui”.

Ela levantou-se e estendeu a mão ao escrivão, para a despedida. Ainda com a mão retida na dele, repetiu a questão que a intrigava: “Mas que é crime é, o que ele quis fazer comigo, não é?”

“Olha, se você voltar para dar queixa eu vou lhe mostrar onde se enquadra seu caso no Código Penal, está bem?”

“Está.”

O escrivão acompanhou a jovem até a varanda. Quando ela já ia saindo, ele falou: “Diga a sua mãe que se ela quiser conversar sobre Dostoiévski com o seu ex-professor, não precisa nem vir aqui. Basta me telefonar. No catálogo tem o número da delegacia.”

“Pode estar certo de que vou dar o recado,” respondeu Núbia, com um adeusinho de dois dedos.

O escrivão voltou a se sentar na mureta da varanda, as pernas magras esticadas sobre o piso de cerâmica vermelha descorada. Tirou um cigarro da carteira enfiada numa capa de couro para ocultar a publicidade anticancerígena, acendeu-o, e começou a fumegar em êxtase de paxá.

“Nubiana! Um nome desses e não consigo me lembrar dela…”

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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