Primeiro movimento
“…onde nasceu o tango… Santelmo, bairro onde a nostalgia (uma nostalgia proparoxítona, castelhana, e que dói nos ouvidos).
Pausa.
Volta o speaker. “Nossa casa tem agora o honor de apresentar este guapo muchacho de Bahía Blanca, Carlos Tardel, magnífico intérprete dos saudosos tangos do saudosíssimo e imortalíssimo Carlos Gardel.”
O tango tradicional em sua cela inviolável. Tão imóvel no tempo como as barbas de Pedro II, o eterno pai de Pedro I.
Na seqüência, adentra o palco o clássico cantor de tangos com ares de rufião. Chapéu de feltro cinzento, cachecol de seda no lugar da gravata, jaquetão no melhor estilo anos trinta e sapatos de duas cores. Uma caricatura animada, um espectro acenando do fundo da antiga prosperidade argentina baseada na exportação de carne para os EEUU e Europa. Um estilo copiado dos ricos estancieiros que iam a Buenos Aires ver Gilda cantando “Put the blame on mame”.
A voz rascante vai enredando como pode “La cumparsita”, “Reloj” e (santa paciência) “Adios pampa mío”.
A cada número o inevitável speaker vai exaltando o cantor no mesmo padrão daqueles velhos anúncios da Pelmex, a empresa mexicana de cinema, que, a cada nova fita, anunciava “el cumbre de la carrera artística” de galãs da estirpe e da canastrice de um Arturo de Córdova e similares. A acreditar-se nessa sempre exaltada propaganda, de cumbre em cumbre, os distintos já teriam deixado o Everest no chinelo depois de uma meia dúzia desses retumbantes filmes.
Lá vem o locutor que agora assegura que o nome Tardel é uma espécie de marca do destino, porque o cantor que ali está é a própria encarnação de Gardel. “Alguns,” diz ele com um certo acento de audácia, “chegam mesmo a afirmar que Tardel supera o modelo.”
Fazendo força para acreditar em tudo o que diz o speaker — afinal, como recomendam os economistas, é preciso maximizar a utilidade dos dólares gastos com o pacote — ele vai tomando desse vinho ordinário esperando que um certo embotamento possa amenizar um sentimento geral de perda, de falta de chão.
Um tranco no violino chama-o às falas a fim de que ele não se esqueça que ali é El viejo almacén, em pleno barrio de Santelmo, onde nasceu o tango. “Compreendeu?” — reafirma o acordeom com acordes mais enérgicos, cobrindo a orquestra e o cantor.
Liga ao máximo o mecanismo “boa vontade” e toma mais um trago daquele vinho ruim.
Mas não tem jeito. O melhor é pegar um táxi e ir embora. Fugir desse equívoco, naturalmente embalado em preferências individuais inarredáveis. Os outros que o desculpem mas vai escapar.
No momento em que ele se preparava para deixar aquele show de tangos onde se sentia um corpo estranho, surge uma nuvem de gelo seco acionada por algum Mandrake invisível fazendo voar pelos ares o tango tradicional, o conjunto típico, o cantor e o locutor. Não restou sombra.
“Que pasa?”
Atordoado, vê no palco lindas mocinhas cantando. “É o Buenos Aires Ocho,” diz alguém a seu lado.
“O que é isso, o que é isso?” — fica repetindo.
Piazzola?
Ele mesmo. A marcação do acordeom é a do Piazzola de sempre. Mas a emoção se renova.
“Adios nonino.”
Num passe de mágica, a casa noturna se transforma num grande coração pulsando de saudade.
“Me pegaram. Me pegaram,” — pensa ele. Agora é inútil tentar fugir. Não adianta se esconder debaixo da mesa. Avisa que precisa ir ao banheiro. Lá dentro, fica se olhando no espelho, procurando descobrir algum indício daquele crítico implacável de ainda há pouco e que tratou o tango tradicional com tanta intolerância. Uma ruga debaixo do olho esquerdo resmunga que é isso mesmo. O show era chato e está acabado. Mas os olhos do espelho dizem que não era preciso ser assim tão rude. Embora urgente e necessária, essa pausa no banheiro era insuficiente para ele se recompor. Só poderia reentrar no recinto do show depois de reencontrar todos os seus pontos de equilíbrio, uma blindagem que evitasse o vexame que lhe seria imposto pelo Buenos Aires Ocho que, com esse “Adios nonino” iria fazer picadinho de seu coração, sem anestesia.
Sabia que Piazzola havia composto esse tango moderno durante uma viagem de avião que o levava para o velório do pai. A música é lancinantemente bela. Indicada como parceira das grandes dores como a que ele próprio havia sofrido há tão pouco tempo.
***
O Buenos Aires Ocho ainda não acabou o seu número mas ele acabou com toda sua pose de analista de tango. Mais do que transportá-lo para as praias amenas do prazer estético, sentia a música de Piazzola como uma inesperada homenagem a seu próprio pai, cuja ausência tão sofrida nos últimos meses foi se tornando cada vez mais leve com o abraço de solidariedade de Piazzola e das meninas do conjunto.
“Gracias.”
Segundo movimento
É verdade. Nos últimos tempos pensava muito em morar nas montanhas azuis. Aquelas que você vê de cima da Terceira Ponte, à direita, no caminho de Vitória para Vila Velha. A vontade aumentava muito nos dias chuvosos, com as montanhas meio encobertas pela fina relva dos pingos de chuva desde as águas da baía.
Lá estão elas, distantes, azulando uma saudade que logo o faz pensar mais de duas vezes nessa sua vontade de morar lá. Mas não é porque desde muito cedo descobriu que na realidade o azul delas não existe. Ilusão. Não é a saudade dessa ilusão que embalou as primeiras viagens de trem, cavalgando seus dorsos cobertos de matas verdes. O problema é outro. Até que podia se ver de manhãzinha, debruçado na janela, vendo a neblina que afaga os arvoredos do morro em frente. Uma paisagem muito olhada enquanto beberia o café torrado na trempe e comeria o pão assado no forno de barro do fundo do quintal. Dessas coisas seguras, chanceladas pelo tempo, pela firme experiência humana. Coisas que certas pessoas sempre fizeram até onde alcança a memória. Neste caso, desde o tempo em que comprar o trigo com o suor do rosto não fazia parte de verso de canção pobre e hipócrita, mas era parte do quotidiano vívido, real. Exato. É isso. A sensação do frugal. Dessa coisa simples e bela resultante da relação franca do homem com a terra, dela obtendo a graça da vida.
Trabalhar para sustentar a família. Que era sustentada. O orgulho de olhar a mulher, a prole, seus braços fortes e a consciência de que eles os protegiam.
Então, aqui, a raiz do nó.
Lá não estão mais aqueles braços fortes.
Por algumas horas pode passear por aqueles caminhos das antigas montanhas azuis, olhar os lugares amados e lembrar dele, o seu pai. Mas não sabe ficar por ali durante muito tempo. Morar lá? A frustração é enfrentada se a visita for rápida. Ficando uma noite, por exemplo, dormindo na casa que foi de seu nonno, quando o dínamo baixasse a luz, podia imaginar que ele estivesse indo até a cachoeira para ajeitar a calha que conduz a água. Endireitar a calha para que a luz não oscilasse tanto. Mas se ficar muitos dias? Ir morar lá? Como fazer de conta o tempo todo? Torto.
[In Novas crônicas de Roberto Mazzini, da “Coleção Gráfica Espírito Santo de Crônicas”, em 2003.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)