Já é lugar comum invocar a plurissignificação do texto literário para justificar o recorte arbitrário que cabe em uma resenha. Não fugirei dele, pois. E assim anuncio novamente que li O Bicho Antropóide (Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1985), de Luiz Busatto, na clave do discurso amoroso. Embora o título nada sugira nesse sentido, em especificidade. Nem em qualquer outro: fica na fluidez da generalização e apanha o leitor de surpresa.
Verdade é que, para quem se acostumou a ler os ensaios do autor, onde o rigor da pesquisa se combina tão adequadamente à dicção do trabalho universitário, este livro traz muito de novidade. Eu iria mais longe: O Bicho Antropóide revela o outro Luiz Busatto. Um “outro” que, no entanto, não deixa de fornecer índices de sua formação acadêmica, como atestam, só para ilustrar, as presenças de Camões e de Tomás Antônio Gonzaga em habilíssimos jogos intertextuais, onde a subversão do sentido se estabelece no próprio engendramento da paródia: “no momento augural da discagem à distância / no fazer-se do amante a coisa amada / pelo telefone” (p. 39); “Eu, minha filha, não sou como astronauta / que viva a voar espaço alheio” (p. 55). Como se vê, há muito do “mesmo” neste “outro”.
Mas é na elaboração de uma história de amor em fragmentos que o poeta reparte com o leitor uma experiência que não se restringe ao “conteúdo” puro e simples de uma vivência amorosa — essa partilha é aquela de uma dicção efetivamente poética, é o trabalho de linguagem, é a enunciação amorosa explodindo em versos contidos, enxutos, sem nenhuma concessão às facilidades do sentimentalismo, sem qualquer tributo ao romantismo melodramático, risco que qualquer poeta corre quando trata desse tema. “Declaração de amor” é um exemplo perfeito dessa contenção que nem por isso deixa de transmitir a atmosfera de sufoco, de angústia, de impossibilidade de verbalizar o que, paradoxalmente, é tanto mais explícito quanto mais se atém ao não-dito: “Dúvida — mistério — silêncio / são a minha horda de presságios / no cárcere da garganta” (p. 31). No mesmo diapasão pode-se ler “O silêncio dos amantes”, onde o poeta traduz significações latentes mesmo que não as enuncie: “calados e todavia / falando-se sem rumor / ausência de altas palavras” (p. 36).
Nenhum elemento deixa de comparecer a esta história de amor. Ela é tecida de retalhos de vida / de linguagem, e agenciada em dispersão, como é de se esperar de um discurso que se queira lírico pela própria dinâmica do ato enunciativo. Em O Bicho Antropóide a reunião e/ou a organização da história cabe ao leitor, a quem essesflashes são dados como peças de um imenso puzzle, onde nem a despedida é escamoteada: “Nunca mais te direi: te amo / o brilho no olhar / já não se acende” (p. 48). Onde não faltam as feridas (p. 76), nem as confidências (p. 54), nem a saudade (p. 46), nem a esperança de um amanhã (p. 47). Onde não se deixa de se amar pelo telefone (p. 39); onde não falta a lembrança de um primeiro beijo (p. 29) nem a promessa quimérica de pagar qualquer preço por um momento de amor (p. 35).
O Bicho Antropóide pode ser um livro de estréia, mas Luiz Busatto é um poeta pronto. Além do mais, conhecendo literatura como conhece, e tendo um aguçadíssimo senso de autocrítica, o autor não o publicaria se fosse apenas para satisfazer veleidades literárias que felizmente não tem. E se esta é a sua maneira de se reconciliar com o mundo e de reencontrar seu outro eu, felizes somos nós, seus leitores, pela oportunidade que tivemos de partilhar com ele essa reconciliação e esse reencontro. De prestarmos, por nossa vez, aquele tributo de que fala Barthes. Corajosamente.
[ * ] A autora é professora de Literatura Brasileira e de Teoria da Literatura, tendo publicado Cara e coroa e A consciência trágica.
Rio de Janeiro, abril de 1985.
Dulce Maria Viana