“Ainda assim me encontro, nesta sinistra manhã de 15 de dezembro, quarta-feira, registrando num velho caderno esquecido por algum colegial, estas coisas absurdas que me estão acontecendo.” (Do Caderno de Leonardo Grizzi)
Meu nome é (ou era?) Leonardo Grizzi, nasci em Alfredo Chaves em 7 de julho de 1931, filho de Leovegildo e Maria das Graças Grizzi. Minha mulher chama-se Albertina Simeone e tenho duas filhas casadas, Gilda, de 37 anos, e Léa, de 34, e um filho solteiro, Léo, de 29. Fui escrevente e depois tabelião do Cartório do Registro de Imóveis desta cidade de Vitória durante 35 anos e hoje estou aposentado.
Em face dos estranhos fatos que têm ocorrido comigo nos três últimos dias, os dados acima fornecidos são os únicos da minha agora confusa vida dos quais tenho alguma certeza. A minha tragédia começou na segunda-feira passada, pela manhã. Tendo necessidade de comentar com um amigo morador da Praia da Costa um seu artigo que saíra no jornal daquele dia, fiz-lhe uma ligação telefônica. Do outro lado da linha informaram: “Instituto de Fisioterapia Corpore Sano, às ordens”. Desliguei, disquei novamente, e de lá veio a resposta: “Supermercado Max, o que deseja?” Efetuei então uma terceira tentativa e perguntei se era do número do aparelho que digitara e recebi mais uma negativa — tratava-se de telefone residencial do bairro de Fradinhos. Desisti. “Deve estar havendo um embaralhamento das linhas”, fiquei pensando.
Preparei-me então para ir ao centro da cidade, ao Banco do Estado, para um saque, pois estava com pouco dinheiro e sozinho em casa, uma vez que a esposa e o filho solteiro haviam viajado ao Rio, em visita às filhas que lá moravam. Tomei, assim, na Avenida Maruípe, o ônibus da linha Jardim Camburi/Rodoviária, mas o coletivo, ao invés de dobrar à direita no trecho em que a Avenida Paulino Müller corta a Avenida Vitória, continuou reto por aquela avenida, curvando para a esquerda quando atingiu a Avenida Beira-Mar, em direção ao Aterro do Suá. Dei sinal para saltar e verifiquei que o carro em que embarcara era o São Cristóvão/Shopping. Apesar da convicção que tinha de ter pegado o veículo certo — não costumo me enganar — aguardei no ponto e embarquei no Praia do Canto/Rodoviária, no sentido do centro. O coletivo seguiu pela Beira-Mar mas, para minha surpresa, começou a fazer o itinerário inverso daquele em que eu embarcara inicialmente, isto é, retomava ao meu bairro.
Aperreado, saltei e verifiquei que realmente era um carro da mesma linha, que fazia o regresso. Mas eu estava seguro de que tomara o Praia do Canto/Rodoviária, não ando assim tão desligado.
Já se aproximava do meio-dia, o calor era intenso e resolvi almoçar ali mesmo em Maruípe. Num modesto mas asseado restaurantezinho da Avenida Tabuazeiro pedi ao garçom Juca, velho conhecido, um filé de peixe com molho de camarão e arroz branco. Quinze minutos depois, lá vem o Juca com a refeição. “Aqui está o filé de alcatra que o senhor pediu, bem passado, batatas fritas feitas na hora e purê de ervilhas, como o senhor gosta”. “Mas, Juca, o pedido não foi esse”, retruquei. “Se quiser, seu Leonardo, posso até voltar com o filé de alcatra. Mas que o senhor pediu não há dúvida, aqui está o registro na notinha que dou sempre ao cozinheiro”. Não adiantava discutir, apesar da segurança que eu tinha de lhe ter solicitado o filé de peixe. Mastiguei de mau humor o bife e a guarnição, paguei e saí. “Vou para casa, vou dormir um pouco, que estou com a cabeça fervendo”.
Cheguei em minha residência, liguei o ar refrigerado do quarto e deitei-me. Dormi até às 16:30 horas, acordei mais tranqüilo, tomei um banho e enquanto fazia hora para o lanche peguei a revista Veja, que o mensageiro trouxera pela manhã. Logo pela capa vi que não era a Veja e sim Caras, revista com a qual antipatizo desde o seu lançamento e que por isso mesmo não poderia nunca tê-la comprado ou encomendado, nem por engano. E não tinha dúvida de que, pela manhã, recebera do motociclista a revista Veja e lembrei-me até que a capa estampava uma montagem glosando o Presidente FHC. Ainda me recordo que o rapaz da entrega dissera, com humor: “O Presidente é um cara de pau, não tem jeito, não é, seu Leonardo?” Controlando-me para não expandir minha raiva, sentei-me na varanda, fiquei admirando o entardecer e às 19:30 horas comi umas torradas, um pouco de gelatina, bebi chá preto gelado e fui assistir na TV o noticiário das 20 horas. Liguei para o canal 4 e o que me apareceu foi a imagem do 6, onde uma repórter entrevistava professores de um cursinho vestibular. Premi novamente o botãozinho para o canal 4 e o que vi foi um programa de adolescentes no canal 2. Nova tentativa e o diabólico aparelho mostrou o canal 10, com uma retrospectiva dos gols da Copa de 70. Não insisti mais. Tomei novo banho e resolvi deitar-me. Afinal, nada dava certo, que mais tinha a fazer naquele aziago dia? Engoli, por precaução, um comprimido para dormir, que me auxiliaria no sono. Que sono, que nada, fiquei foi muito aceso, excitadíssimo. Aí então verifiquei que não tomara o comprimido do sonífero mas sim uma dessas pastilhas inibidoras do apetite, usadas por minha mulher para emagrecimento, que tiram completamente a vontade de dormir. “Mais uma”, pensei. Rolei a noite inteira na solitária cama e só consegui conciliar o sono por duas horas, das nove às onze.
Mas tinha que ir ao centro, ao Banco, como havia programado na véspera. Tive sorte. Aproveitei a carona do vizinho, que me deixou na Praça Oito. Entrei no Banestes, informei ao caixa o valor do saque pretendido e digitei a senha. “Desculpe, meu senhor, mas a sua senha não confere”, informou o bancário. Operei novamente o aparelhinho e outra vez ouvi a mesma advertência do rapaz. “Assim não dá, quero falar com o gerente”. A esse funcionário identifiquei-me, forneci o número da senha que habitualmente usava e contei-lhe do insucesso junto ao caixa; encabulado, recebi a desconcertante informação de que minha senha nunca tinha sido a digitada. “O senhor naturalmente está fazendo confusão com outro número ou mesmo deu-lhe um branco e esqueceu completamente o número de sua senha, acontece”, ponderou o amável homem. Resolvido o impasse — eu não estava em condições para argumentar — saí do Banco meio desesperado e fui até a banca de jornais comprar o Diário, quando deparei com o Alcebíades, que vinha em sentido contrário, meu velho amigo de 40 anos e ex-colega da Faculdade de Direito, hoje desembargador. “Há quase um mês que não o vejo, Alcebíades amigo, como vai e como vão os seus?” Não houve aquele peculiar sorriso, por parte do Alcebíades, característico do encontro de velhos companheiros. “Desculpe-me, deve haver um engano, não o conheço, nunca o vi”. “Mas Alcebíades, sou eu, o Leonardo… “Creio que o senhor se enganou, perdão, deixe-me passar, tenho pressa”, e arrancou assustado rumo à escadaria Maria Ortiz. Fiquei perplexo e não me atrevi a falar com mais ninguém.
Meio zonzo, tomei um táxi na Costa Pereira e instruí o motorista para rumar para Camburi. Talvez olhando a imensidão do mar, respirando o ar iodado, as coisas se aclarassem. Mas o taxista, ao contrário do que eu lhe ordenara, tomou a direção do Aeroporto. “Atenção, meu prezado, eu pedi que me levasse a Camburi”, alertei-o. “O senhor falou Aeroporto”, respondeu firme o chofer, para minha estupefação. “Tudo bem”, acalmei-o. “Mas vamos para Camburi, deixe-me em frente ao Hotel Porto do Sol”. Ali, em frente à praia, ainda tentei cumprimentar meia dúzia de pessoas conhecidas que transitavam pelo calçadão, mas repetiu-se o mesmo que acontecera com o Alcebíades na Praça Oito: nenhuma delas demonstrava me reconhecer e algumas mesmo denotaram perturbação ante o meu amistoso comportamento. Sentei-me num banco de pedra e permaneci até ao entardecer. Peguei um táxi (quase soletrei o endereço) e felizmente fui deixado corretamente em casa. Bebi bastante leite, comi uma fatia de queijo com goiabada e fui para a cama. Esta noite consegui dormir.
No dia seguinte minha saída de casa coincidiu outra vez com a do vizinho, ganhei nova carona e fui deixado novamente na Praça Oito. Comi um pastel e tomei um café numa lanchonete e pedi à garçonete um maço de cigarros “Cônsul”. “Que marca é essa?”, estranhou a moça. “Tá brincando, moço, esse cigarro não se fabrica há mais de 30 anos”, explicou o dono da Casa. Completamente embaraçado, fiquei com outra marca disponível. Na banca de jornais pedi O Diário. “O Diário de Minas só chega à tarde”, responderam-me. “Não é o Diário de Minas que desejo, é o Diário daqui mesmo”, repliquei. “Ô cara, esse jornal já saiu de circulação há mais de 15 anos”, trovejou um negrão lá de dentro da banca. “É, a desgraçada da confusão voltou a pleno vapor”, pensei, espumando de raiva.
Desci então a Jerônimo Monteiro, dobrei na Avenida República e resolvi entrar no Parque Moscoso. Lá, na tranqüilidade de um banco à sombra, ouvindo o cantar dos pássaros, poderia refletir melhor. Já acomodado num acolhedor banco, afastado da parte mais movimentada do jardim, cochilei e dormi. E sonhei. Sonhei que estava em uma cidade bem menor que Vitória, à margem de um rio, que era atravessado por uma comprida e antiga ponte ferroviária. E, satisfeito, seguia pela rua principal, alegre mesmo, cumprimentado por todos. Mas não demorou muito o sonho e acordei. Acordei e puxei o maço para um novo cigarro. Minha carteira de identidade, que estava junto, caiu no chão. Ao apanhá-la, verifiquei horrorizado que, embora a fotografia e o RG fossem os mesmos, os demais dados não conferiam. Agora eu era Adalberto de Medeiros Rosa, nascido em São José do Rio Preto (SP) em 26 de setembro de 1932. Desesperei, chorei dramaticamente. Eu não era mais eu. Então quem era? Pensei até em me matar. Pior, a Polícia encontraria o cadáver de um tal de Adalberto de Medeiros Rosa, paulista, de 65 anos. E eu, Leonardo Grizzi?
[Transcrito do livro O necrologista e outros escritos, IHGES, 1998.]
———
© 1998 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———
João Bonino Moreira nasceu em Santa Teresa (ES) em 1931. Estudou em Vitória e, em 1949, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por vinte anos. Ele foi um dos talentos literários revelados pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo no auge de seu investimento na publicação de obras de literatura. (Para obter mais informações sobre o autor clique aqui)