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Ensaio crítico: A Torre de Narciso


Nota biográfica


Narciso Araújo nasceu (1877) e morreu (1944) no município de Itapemirim (ES). Filho da brasileira Maria Rodrigues da Lapa, falecida durante a primeira infância do menino, e do português Manoel da Costa Pinto, que, abastado, enviou-o, em 1889, para estudar no prestigioso Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Aluno exímio, ingressa (1896) precocemente no bacharelado da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro e conclui-o na Faculdade Livre de Direito em 1899, transferência motivada pela hostilidade daquela instituição ao Marechal Floriano Peixoto, político da admiração do jovem jurista. Na Capital Federal, convive com a nata das letras da época, frequentando o Café Papagaio, onde priva da amizade de, entre outros, Cruz e Sousa, Olavo Bilac e Raul Pederneiras e publica em importantes periódicos, como Rua do Ouvidor. Ao contrário de outros simbolistas capixabas que desenvolveram carreira no Rio de Janeiro (a exemplo de Colatino Barroso e Ulisses Sarmento), retorna a Itapemirim, a princípio para sanar dívida paterna, sem, todavia, nunca voltar à Capital Federal. Doravante, sua trajetória profissional acumula insucessos e renúncias: jornalismo, literatura, advocacia, política, tudo é abandonado. Não diferente, a vida afetiva é pródiga de mistérios e privações, provocando crescente reclusão. Apesar de afastado do circuito literário, é eleito, em 1941, Príncipe dos Poetas Capixabas, em concurso promovido por A Tribuna de Vitória, tendo como prêmio, em 1942, a edição de Poesias (1.ª série), pela Livraria José Olympio Editora, casa que, simbolicamente, reconduz o poeta ao então centro das letras nacionais, mas não logra salvá-lo do esquecimento.

A Torre de Narciso

Gilberto Araújo

Tal como a maior parte da obra de Narciso Araújo se encontra dispersa em jornais e revistas, muito de sua fortuna crítica se restringiu ao âmbito dos periódicos, quase nunca alcançando o formato de livro. Excetuam-se, para mencionar três casos relevantes, a presença do poeta capixaba no Panorama do movimento simbolista brasileiro (1952), de Andrade Muricy, no Panorama da poesia brasileira – Volume IV: Simbolismo (1959), de Fernando Góes, e, mais recentemente, O solitário de Itapemirim. Narciso Araújo: vida e obra (2010), pioneiro estudo de Jô Drumond. Nos três títulos, o escritor é inserido no plantel simbolista, cujo temário e estrutura de fato muito se assemelham à sua produção poética. Entretanto, devemo-nos perguntar a que “produção” nos referimos, pois a obra de Narciso é composta de conjunto demasiado heterogêneo a que até pode soar impertinente o designativo “obra”.

Seu único livro editado foi Poesias – 1.ª série (1942), quando o escritor, nascido em 1877, contava com 65 anos e há muito deixara de publicar. O título sóbrio e meio vago indicia certa falta de unidade. Dividida cronologicamente, a antologia contempla dois segmentos de quinze anos – 1900-1915 e 1916-1930 –, ambos, como se vê, bastante anteriores a 1942. Restariam, pelo menos, dois ínterins a editar, o antecedente a 1900 e aquele compreendido entre 1930 e 1942, sem falar naquilo que, escrito entre 1900 e 1930, ficou de fora da coletânea. Daí talvez a continuidade indicada pelo subtítulo “1.ª série”. Entretanto, nunca se encetou a sequência, e a não pequena obra de Narciso acabou cingida ao montante de 71 poemas.

Esse conjunto nos incita a saber o que a coletânea não contemplou. Afinal, o volume de 1942 encartou poemas de diferentes épocas, oriundos de variados manuscritos: do 1.º e do 2.º Cadernos de Poesia, do Caderno de Direito, dos 29 textos dedicados a Maria Magdalena Pisa, além do material avulso. Houve efetivamente um garimpo de antologista que perpassou todo o espólio literário; não se tratou, portanto, de eliminar a juvenília em prol da suposta maturidade poética. Se não é a cronologia o critério organizador, o que motivou a tarefa seletiva? O quesito estético, por muito subjetivo e impreciso, não responde nossa indagação. A eleição, cremos, se pautou pela natureza estilística. Sim, porque os textos privilegiam a dicção simbolista, criando paralelo com a reclusão quase monástica do autor, enfatizada por vários biógrafos e pelos organizadores das Poesias. Nosso objetivo não é confrontar o material inédito com o livro de 1942: almejamos sondar quais estilos ficaram soterrados ou minimizados sob a Torre do Símbolo.

Nos primeiros manuscritos de Araújo, compreendidos entre 1895 e 1897, identifica-se certo gosto pela simplicidade, uma espécie de desdobramento do aurea mediocritas árcade: a singeleza da vida interiorana surge em “Meu sonho”, “Alegrias”, “Dentro da natureza”, “Risos e lágrimas”, “O mimo da inocência”, “Os namorados”, entre outros. Embora, à primeira vista, essa despretensão figure contrária à altissonância simbolista, devemos considerar que ela se fez presente em outro cultor da escola: B. Lopes, cujo livro inaugural, Cromos (1881), louvava a frugalidade campesina, em estilo despojado, de metros curtos, preferencialmente heptassilábicos, quase incompatíveis com a solenidade dominante em seus títulos futuros. Narciso se envereda por semelhante trilha, conquanto, no capixaba, o sonetilho breve de B. Lopes ceda passo ao decassílabo, às vezes condescendente com quadrinhas (“Eu e amor”) e redondilhas (“Desilusão”, “Renúncia”). Do fluminense Narciso herda ainda a prática do poema-bilhete – bastante exercitada por Lopes em seu segundo livro, Pizzicatos (1896) –, aferida em “No júri de tua consciência”: datado de agosto de 1896, mês e ano citados por extenso nos primeiros versos, o poema é um pedido de desculpas ao amigo Estêvão de Rezende, a quem ainda se dedica o lamentoso “Au revoir”, porque o amigo fora para… Minas Gerais. O tom circunstancial, explicável, é claro, num caderno privado de poesias, alimenta textos sobre o aniversário do poeta (“Trinta abraços”), a morte de um familiar (“Ao meu sobrinho Manoelzinho”) ou o agradecimento por uma saca de café (“[D. Francisca de Sá]”).

Evidentemente, a vivência de casos trágicos ou pitorescos deflagrou a criação textual, conforme ratifica o subtítulo “episódio verídico” ao saboroso soneto “Bife, chá, cama e ridículo”. No entanto, o sotaque despretensioso merece destaque por eleger a brevidade formal para desenhar um pequeno quadro, um flash ou um “cromo”, nas palavras de B. Lopes. Imprimia-se objetividade ao poema, freando, de certo modo, o sentimentalismo ainda localizável na década de 1880. Não à toa, B. Lopes é apontado um dos iniciadores da poesia realista no Brasil. A contribuição seria pontual, não fosse o Realismo – lembrado na prosa mas negligenciado no verso – irmanar-se a outros estilos poéticos que prepararam a chegada do Parnasianismo, a exemplo das poesias social e científica, igualmente infiltradas em Narciso Araújo.

É inegável a vocação cívica do capixaba, aferida em “O lavrador”, “Trindade” e “A dor da pátria”. Neste, poreja o republicanismo ferrenho de quem, como Raul Pompeia, defendeu ardentemente Floriano Peixoto, também glorificado em “Marechal”. A inflexibilidade política é correlata à literária, já que, comentaremos adiante, o Simbolismo se tornou um modelo que Narciso não pôde ou não quis abandonar. “Trindade” condena a presença inglesa na ilha homônima; ao repertoriar eventos e personagens históricos, a poesia de Narciso abre-se ao cotidiano, domínio rarefeito na ortodoxia simbolista, afeita a segredos e abstrações. Nesse sentido, vale destacar “Despedida”, escrito “por ocasião dos desastres da E. F. Central do Brasil”: citando nominalmente personagens simples, como se Cândido e Martinho fossem conhecidos do leitor, o poeta parte da experiência particular para alçá-la à reflexão coletiva sobre as mazelas sociais e a morte.

Convivendo com o tom menor dos cromos, aparecem descrições objetivas (“Realista”, “Ao relógio do Figueiredo”) ou alegóricas (“Metamorfose”, “Pelo espaço”, “Noite”), indicativas da sedução parnasiana pela raridade vocabular e técnica. Em “Lágrimas serôdias”, por exemplo, não bastasse o pomposo adjetivo no título, o personagem desprezado pela companheira comete suicídio, menos para cessar o sofrimento do que para rimar com “estilicídio”! A maioria desses poemas grandiloquentes dispõem o observador voltado às alturas (cf. “Fitando o céu”, “Asas”), casando sondagem do infinito com linguagem rebuscada. Lembremos, a título de contraste, que cenas assim se enfeixam num caderno em que o autor, páginas antes, alegava preferir bife e vinho aos hábitos das freiras (cf. “Um crime”).

A ampliação dos espaços engata universalização abstratizante algo avessa ao cotidianismo cru preliminarmente examinado. Daí decorre o desencanto com a humanidade, também verificado na poesia científica da época. É ler o magistral “Misantropia”:

Ultimamente sinto um repugnante
Horror ao que me cerca diariamente:
Vejo atrás o homem, o homem adiante,
Atrás o mundo e o próprio mundo em frente.

E vejo a sociedade deprimente
[Segui]ndo nela vagabundo, errante,
E não evito-a, pois diariamente,
À esquerda e atrás ou à direita e adiante,

A vejo e a sinto e a apalpo e a considero
[E] tal qual foi, quando viveu Homero,
Agora é: pantanal putrificado,

Onde zumbem milhões de varejeiras.
E asco tenho a estas podres esterqueiras
E de homem ser me sinto injuriado.

Não há apologia a Comte, Spencer ou Taine, frequente em Martins Júnior, ícone da poesia científica dos 1880. Todavia, a mórbida hipertrofia orgânica do final do poema, sinalizadora de Augusto dos Anjos, denuncia um ceticismo materialista que, não raro, assolará a religiosidade de Narcisco Araújo (confrontem-se “Deus” e “Crê!” com “Cético?!”, “Sarcasmo” e o exímio “O último gemido”). Apesar de igualmente comprometidas com a miséria humana, a poesia social distingue-se da científica: lá, predomina a solidariedade; aqui, a rejeição. Nos quartetos do soneto, a aliteração da vibrante /r/ e a assonância de vogais nasalizadas criam um ritmo enfadonho, intensificado pela repetição das palavras “homem” e “mundo”, que, por sua vez, ressoa em “vagabundo”. Essa câmara de ecos mimetiza a clausura existencial, replicada no primeiro terceto pela longa assonância do pronome “a”, incorretamente disposto em ênclise, pois assim ganha tonicidade mais enjoativa do que se ocupasse a prevista posição proclítica. O contraste de “Homero” com “putrificado”, “varejeiras” e “esterqueiras” ratifica a desolação perante a humanidade, da qual o poeta se distancia, como no “Emparedado”, de Cruz e Sousa, cujo isolamento se reflete em “O precito”, de Narciso.

A presença do Dante Negro na obra do capixaba, que privou da amizade do catarinense, será mais evidente na 2.ª série do Caderno de Poesias, a despeito de, já na 1.ª, ela se manifestar em, dentre outros, “No país do sonho” e “Nas trevas”. Neste, uma cavalgada converte-se em peregrinação misteriosa; narrada em cadência entrecortada, metaforiza a travessia existencial, assolada de medos e repressões, como indicam os signos de vigilância ao final do texto:

Escuridão tremenda. A passo incerto,
Levava-me o cavalo, suarento,
Por um estreito atalho lamacento.
Silêncio apavorante. O céu deserto.

De instante a instante, um pássaro, bem perto
De mim, sinistro, esvoaçava. Atento
O ouvido, nada ouvia. (…)

(…)

Era que do atro céu despovoado
O majestoso e altíssimo Imperante
Seguia-me com o olhar iluminado.

Semelhante paisagem desferencializada engasta-se em “No país do sonho”, ambientado num cenário onírico onde surge uma mulher bela e misteriosa:

Tombava a noite… Uma harmonia estranha
O espaço percorreu, sonora e clara.
Nunca música assim se modulara!
Escutavam-na o mar e a montanha!

Então, lá, na longínqua extremidade,
Em que o cerúleo mar o céu beijava,
Uma mulher, de cabeleira flava,
No fulgor da beleza e mocidade,

Surgiu sublime, divinal, radiosa!
As formas virginais, da cor da neve,
Vestia-as uma veste etérea, leve,
Etérea como fada vaporosa.

(…)

O advento noturno suprime a relação habitual com o meio circundante (é ler “Noite”), permitindo ao eu lírico acessar outras frequências do real (“harmonia estranha”), atingidas pela sinestesia audiovisual. Aberto à pluralidade sensitiva, ele pode assistir ao intercâmbio entre céu e mar, como se fora devolvido a um tempo-espaço matricial e nuclear, em que nada se diferenciava. Desse ínterim nasce a mulher sublime, cujo caráter inaugural se pinta na “cabeleira flava”, coloração remissiva ao vermelho do nascimento. Disposta num entrelugar, a figura contrastiva – etérea e flava, nívea e quente – prenuncia a obsessão feminina na poesia de Narciso, que, bem a propósito, a retrata ambiguamente.

Abundam poemas idealizadores da amada, exaltadas em atributos morais e físicos; estes em geral privilegiam partes menos erógenas, especialmente os olhos (“Noites”, “Joia tentadora”, “Súplica”, “Alegrias fugazes”, “Tua voz”, “Imprecação e prece”, “Vita nuova”, “Espiritualismo”, “Sabor azul”). Quando se escorrega a regiões mais sedutoras, como a boca, a comparação do corpo alheio com a natureza cumpre a necessária sublimação (“Noites”, “Idílio”). Nesse conjunto mais pudico, o poeta depõe sua “humilde e fraca lira” perante a homenageada (cf. “Joia tentadora”). O distanciamento respeitoso mas interessado, à moda de um sátiro, atinge ápice em “Desilusão”, leve madrigal heptassilábico, ao estilo de “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens: de um tronco ressequido, correlato da secura emocional do eu lírico, ele observa a imagem refletida de uma bela moça cantando. O riacho corre, indiciando a entrega ao mundo ideal, posteriormente esfumaçado com o retorno à realidade, onde não há moça, canto ou qualquer lenitivo. Em certa medida, essa historieta de desaparição é o avesso simétrico do nascimento anunciado em “No país do sonho”.

O motivo da mulher ausente estende-se a uma representação francamente oposta da figura feminina – vil, viciada e abjeta, é comparada a répteis e insetos (“[Fato é que a cobra repelente, ascosa,]”) ou vinculada a conhecidas narrativas de perversidade (“Sansão e Dalila”). Como no caso das virgens, também pelas damas fatais o homem é abandonado, alternando entre o lamento choroso (“Ingratidão”, “Queixa”, “Lágrimas”, “Desespero”) e a revanche. Este sentimento é interessante: se o eu lírico chega ao ponto de desejar a consorte morta (“Vingado!”), também deixa recair sobre si a índole vingativa, em rompantes de masoquismo (“Justo castigo”) e até de autoflagelação (“Fortitudo”). O sofrimento talvez constitua o elo entre os variados estilos de Narciso Araújo: o desamparo amoroso, tipicamente romântico; a frustração social e a descrença cética, próprias da poesia realista e científica; sobretudo, a transcendência da dor, cultuada pelos simbolistas: “A dor cristianiza o coração”, afirma-se em “A um amigo”.

Nesse aspecto, sobressai-se “Terribilis dor”, texto com nítidas marcas de Cruz e Sousa (“sacarino vinho”, “ignotos gozos”, “formidanda dor”) e favorável à dor, embora não apresentada em maiúscula, como a agonia atávica dos simbolistas; no primeiro Araújo, ela ainda é sentida em escala individual e explicada pela ausência feminina: “Quero sofrer, mas quero dentro d’alma / A luz dos olhos da mulher querida! / Porque com ela todo o fel da vida / Eu beberei com valentia e calma!”. Na 2.ª série dos Cadernos, o eu lírico, mais eivado de Simbolismo, carpirá a perda de algo desconhecido:

É a saudade de ignotas primaveras,
É a saudade de quadros incriados,
É a saudade de coisas nunca tidas,

É a saudade infecunda das esferas,
Onde os astros rolaram, conglobados,
Desde as fundas idades escondidas.

A opção deliberada pelo sofrimento parece advir da índole algo esquizofrênica do sujeito narcisiano, já que, a par da representação antagônica da amada, sucedem-se, em seu âmago, polos opostos: o arroubo apaixonado, convicto da infinitude do amor (“Os namorados”, “Retratação”, “Fascinação”, “Eu e amor”, “Ressurreição”, “Imorredouro”), e a descrença irreversível no afeto (“Dobrado amor”, “Mentira”, “Ciúme vitorioso”). O caráter extremista revela o desajuste com a realidade, levando o eu lírico ao isolamento e à estagnação; daí talvez haver tantas partidas, seja da amada (“Lágrimas”) ou de amigos, mas o entediado poeta pouco ou nunca se movimenta (“Desespero”, “Tédio”, “Spleen”).

Por isso mesmo a sucessão obsessiva de nomes femininos: Haideia, Clara, Maria – sim, pessoas da convivência de Narciso, mas, na dinâmica da obra, variações do impossível ideal estampado em “No país do sonho”. Poemas como “Eterna musa” e “Imutável” confirmam a ideia fixa da estabilidade, teorizada no soneto “Explicação”: “O amor também mulheres multiplica / Para sustentar a única que amamos.” Não obstante vise à unidade, o sentimento amoroso produz efeito caleidoscópico, pulverizando entre as damas a mesma quimera. Configura-se um comportamento fetichista, deflagrado, segundo Freud, quando a criança descobre que a mãe não possui pênis. Ampliando a contribuição freudiana, Giorgio Agamben entende-o como a presença de uma ausência, já que o objeto de fetiche, malgrado a concretude, sinaliza algo inominável. Donde a natureza seriada do fetichismo:

Precisamente por ser negação e sinal de uma ausência, o fetiche não é um unicum irrepetível, mas, pelo contrário, é algo substituível ao infinito, sem que nenhuma das suas sucessivas encarnações possa algum dia esgotar completamente o nada de que é a cifra. Por mais que o fetichista multiplique as provas da sua presença e acumule um harém de objetos, o fetiche lhe foge fatalmente entre as mãos e, em cada uma de suas aparições, celebra sempre e unicamente a própria mística fantasmagórica. (2007: 62)[ 1 ]

Em Narciso Araújo, sobretudo a partir da 2.ª série dos Cadernos de Poesia, a multiplicidade feminina indicia um vazio primordial que provoca a indecisão entre domar o objeto de desejo (“Templo”, “Protesto”) ou mantê-lo distanciado. Sabendo-o inalcançável, resta cultuar sua inacessibilidade, como se lê em “Excelso gosto” (“Mas é sentir melhor, sentir sem ver-te,”) ou em “Saudade querida” (“Eu não quero que finde esta saudade”). A ideia acumulativa do fetiche reaparece, mais explicitamente, em “Glossário”: além do título autoexplicativo, o eu lírico, em “alto culto, fundo e fetichista”, anima-se “catalogando” os olhares da amada.

O intervalo entre os amantes é frequentemente realçado por um terceiro elemento que se lhes interpõe, seja uma janela, uma carta (vários textos do ciclo de poemas dedicado a Maria), uma pessoa (“Contrição tardia”, “A Sílvio Silva”), um acidente geográfico (“Ódio ao mar”), mas sempre um outro que congrega atributos inexistentes no eu lírico. Com a perpétua morte do ideal, a frustração se transforma em desespero (“Plaga pérfida”) e luto (“Hóspedes cruéis”) ou se atenua, provisoriamente, numa celebração desassombrada à vida, à juventude e ao amor (“Meu coração”, “Ninhos”). Essa bipolaridade – aferível, aliás, em Vinicius de Moraes – se reduplica no tratamento conferido à mulher, a quem o homem, conforme apontados, ora se mostra subsumido, ora dominador, recorrendo a profissões ligadas à educação e à medicina para rubricar a mudança de papéis. Nos 29 poemas dedicados a Maria, lemos em 8: “Teu professor recorda, comovido, / Os fulgores da tua inteligência”. Já em 16: “– Quem, agora, me guia e me corrige?// – Quem me ensina a verdade e mostra o erro? / – Quem nos maus dias me acalenta e exorta?”. Sabemos que a personagem homenageada nesse conjunto poemático é Maria Magdalena Pisa, ex-aluna de Narciso Araújo e por quem, parece, ele se apaixonou. Isso não impede, todavia, que, semeada na máquina poética do capixaba, ela tenha ocupado um dos arquétipos femininos previamente concebidos na obra. Nosso intuito não é psicanalisar o autor, antes rastrear os mecanismos formadores de sua persona lírica. Por essa razão, a frequente imagem da enfermeira ou irmã de caridade (“Anjo” e “Agradecimento”), conquanto biograficamente explicável, se configura como outro dispositivo idealizante da graça feminil: “E aqui tens, gentil médica, teu doente”. Em contrapartida, a amada recebe cuidados excessivos do parceiro, que, dicotômico, elabora mecanismos de prazerosa autopunição: “Chego a ter na saudade, que me corta, / Tanto cuidado em ti, tantos extremos / Como se tu já fosses uma morta!”

O sujeito é cônscio de suas pulsões (“Indômito desejo”), porém não logra extraí-las do castelo que ideou (“Renúncia”), como se a vida devesse sucumbir à Obra, elaborada pelo Poeta, não pelo homem: “Um verso, às vezes, diz a Vida toda…”. Isso parece explicar, na poesia de Araújo, a concepção catedralesca e imaculada da subjetividade (“Templo”, “Castelo vencido”, “O poeta”) e a constante analogia entre vida e livro (“Página eterna”, “Folha de um livro”, “Episódio inolvidável”, “Folhas de amor”, “Extremos”). Em certas ocasiões, inclusive de raro despojamento estilístico, escapa o apetite erótico (“[Quando ela passa, tesinha]”), logo silenciado pela denegação culposa, como em “Trasgos”:

Que gênio mau, que trasgo infernal jaz oculto
Dentro em mim, ululante, eversor, truculento?
Por que sinto eu gritar-me n’alma este tumulto
Que cresce à proporção que sufocá-lo intento?

Lembra ora uma risada ante um corpo insepulto;
Ora lembra um oceano, em regougos, sanguento,
De vagas de punhais; ora é como um insulto
Que, feito cuspalhada, um filho, num momento,

À fronte de seu pai, vesgo de ódio, atirasse.
Donde me vem, Senhor, este algoz, sem piedade,
Que no meu ser se agita, ultriz como um castigo?

E este fogo, partido em raios, pela face?
E esta contorção bruta? e esta vaga saudade?
E este aplauso do mal? e este amor do perigo?

A luta do enunciador contra as forças indômitas que o assaltam justifica o compasso sincopado do texto, construído com pontuação abundante e sonoridade agressiva. Do ponto de vista métrico, o alexandrino clássico, com a rigorosa cesura na 6.ª sílaba métrica, condiz com a missão autocontroladora do eu lírico. Brotam imagens calorosas e contorcidas, indicativas do intenso fogo interno que, encoberto, atinge, imperfeitamente, a face, onde a chama aprisionada se apequena em “raios”. Toda manifestação da matéria é insidiosa, a exemplo da cusparada lançada ao pai, figura rara na poesia de Narciso; aqui, ela sintetiza a autoridade desafiada pela energia volitiva. Essa turbulência se propaga ao oceano sangrento, superfície agregadora de elementos femininos (sangue menstrual) e fálicos (“punhais”), impulsionados na frequência oscilante e erótica das águas. Daí talvez certa aversão à horizontalidade na obra de Araújo: além de “Ódio ao mar”, recordemos, é do encontro entre céu e mar que nasce a tentadora protagonista de “No país do sonho”. Quando a natureza se associa à mulher, obriga o sujeito a encarar os próprios instintos, que, denegados, respingam no ambiente e na amada, demonizados pela personalidade recalcada. Veja-se a diferença quando o eu lírico contacta verticalmente a paisagem: “A montanha”, por exemplo, elevando o olhar do observado, direciona-o aos arcanos, livrando-o de si e de tudo aquilo (mulher, por exemplo) que o leva a defrontar-se consigo. Apesar do esforço de autocontenção, o “gênio mau” retorna, como um “corpo insepulto”, recordando a urgência do desejo, interpretada como recatada e “vaga saudade”.

“Transfiguração”, originalmente intitulado “Condor” e um dos sonetos mais interessantes de Narciso Araújo, reincide no contraste entre alto e baixo:

Venho de tua casa e de ti trago
Toda a fragrância. Calmo céu se anila
Dentro de mim e lindo sonho mago
Enche minh’alma e, todo azul, cintila.

Vou perturbado e volto como um lago,
Depois de estar contigo. Uma tranquila
Esperança me vem do teu afago
E muda em bronze minha fraca argila.

Tu transformas em trigo o inútil joio,
O paul morto em cristalino arroio
E num gigante intrépido um pigmeu.

Vou ver-te em tua casa, mas, voltando,
Em remígios possantes o ar cruzando,
É um condor que volta, não sou eu!

Ao retornar da casa da amada, tudo é calmo, translúcido e sereno, tal a superfície do lago e a profusão de consoantes sibilantes. O contato com a dama tem efeito depurador sobre o eu lírico e o meio circundante: a “fraca argila” se transforma em bronze; o joio, em trigo; o paul, em arroio; o pigmeu, em gigante. Tudo o que é pequeno, covarde, viscoso e poluído desaparece, numa alquimia catártica. À primeira vista, estamos diante de mais um poema idealizador do encontro amoroso. Isso é inegável, a julgar, inclusive, pelo título “Transfiguração”. Contudo, o verso final timbra, de maneira incisiva, a diferença entre “eu” e “condor”: houvesse efetiva sublimação, seria mais difícil distinguir os entes amalgamados. Quem volta é a ave, não o escritor, que sempre esteve no chão, junto com o pigmeu, o paul, o joio e a argila, elementos ligados à terra e à sua simbologia ameaçadoramente orgânica e opaca, sem o translúcido lago do início.

Com efeito, a nobreza do condor e seu voo, chamado de “remígios possantes”, contrasta com a pobreza dos outros materiais. O pássaro se movimenta, desenhando trajetória virilmente cortante, enquanto o sujeito continua parado, em perpétuo movimento de retorno (“Venho de tua casa”), uma vez que a partida, sendo projeção ao desconhecido, é incômoda: “Vou perturbado”. Quem visita a mulher é o homem, quem retorna é o poeta. A substituição de título – de “Condor” para “Transfiguração” – consiste numa estratégia para reforçar a ideia de ascese: a designação inicial demarcaria claramente a separação entre homem e ave, ao passo que “Transfiguração”, embaralhando os dois seres, esconde, de modo mais eficaz, a sombra terrena e estática do enunciador.

O embate entre imanência e transcendência lateja ainda nas concepções estéticas de Narciso: a poesia é fábrica lúdica e despretensiosa de um poema (“Um soneto”, “Asneirológico”) ou liturgia transcendente (“Augusta expressão”). Cada uma dessas vertentes se manifesta em estilo diferente: no primeiro caso, por exemplo, prevalece o tom jocoso; no último, o mais caro ao capixaba, a abundância de frases nominais não interligadas e a tendência abstratizante revelam a escrita à Cruz e Sousa: “Céus estrelados, mares em clamores, / Rudes serras de seios de granito, / Frescas fontes de incógnitos amores, / Forças fecundas, forças do Infinito,”.

O leitor talvez tenha estranhado que, progressivamente, deixamos de sondar os estilos não simbolistas em Araújo. O abandono foi intencional, na medida em que reproduz a postura do próprio autor e de sua fortuna crítica: Narciso envolveu de mistério a vida literária e afetiva, encimando-a com uma aura anacrônica para o século XX. Seu isolamento consagra a ficção do personagem eremita: encerrado na Vila de Itapemirim, alheio às novas orientações da poesia brasileira. Se parou ou não de escrever em 1939 (derradeiro ano registrado em seus manuscritos), seu estilo fincou pé no alvorecer do século XX, resguardado na torre que construiu para si, conforme premonizara no bilaquiano “O poeta”:

Enquanto, em derredor, a fúria bruta
Das turvas ambições referve e estoura,
O poeta, na oficina áurea, impoluta,
O seu mundo de sonhos entesoura.

Trabalha. Uma visão gentil e loura
Anima-o, carinhosa, na labuta.
A inspiração o toma e os versos doura,
Na obra pura e sentida que executa.

Deixa bramir, em seus conflitos agres,
O mundo. E erige, calmo, um monumento,
Do fértil sonho em voos e milagres,

Pairando acima da insalubre vaza,
Subindo, em surto, para o firmamento,
Com o sol glorioso na brancura da asa.

Seleta bibliográfica de/ sobre o poeta

ARAÚJO, Narciso. Poesias (1.ª série). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1942.

DRUMOND, Jô. O solitário de Itapemirim. Narciso Araújo: vida e obra. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2010.

RIBEIRO, Francisco Aurélio. (org.) Dicionário de escritores e escritoras do Espírito Santo. Pesquisa de Thelma Maria Azevedo. Vitória: Academia Espírito-Santense de Letras; Formar, 2008.

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NOTA

[ 1 ] AGAMBEN, Giorgio. “Freud ou o objeto ausente”. In: ___. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007, pp. 59-65.

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© 2016 Gilberto Araújo – Todos os direitos reservados ao autor. A reprodução sem prévia consulta e autorização configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Gilberto Araújo é professor adjunto de Literatura Brasileira na UFRJ e doutor em Letras Vernáculas pela mesma instituição, onde também é coordenador do curso noturno de Português-Literaturas. Publicou diversos ensaios e palestrou no Brasil e no exterior, tendo passado pelas universidades de Lisboa, Coimbra, Porto, Paris (Sorbonne Nouvelle III e IV), Londres (king’s College), Viena e Santiago do Chile. Organizou as Melhores crônicas de Humberto de Campos (Global, 2009) e a reedição das Canções sem metro (Unicamp, 2013), de Raul Pompeia, livro sobre o qual escreveu sua dissertação de mestrado. Prefaciou e organizou a última edição de O Ateneu lançada em Portugal pela editora Glaciar, em parceria com a Academia Brasileira de Letras. É autor de Literatura brasileira: pontos de fuga (Verve, 2014), Júlio Ribeiro (ABL, 2011), dentre outros títulos. Foi pesquisador da Academia Brasileira de Letras, condição em que preparou e prefaciou reedições de Artur Lobo, B. Lopes, Júlia Cortines, Luís Guimarães Júnior e outros. É bibliófilo.

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