São José do Calçado tem tradição na literatura sempre confirmada, em nível estadual ou nacional. Pedro J. Nunes, filho da professora Ana Maria Costa Nunes e do agropecuarista José Benedito Nunes, aos 32 anos é considerado escritor revelação pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, que lhe conferiu um prêmio nessa categoria em 1993. Mérito de Vilarejo e outras histórias, um livro de contos bem recebido nos meios literários e acadêmicos do Estado. Em vias de esgotar-se a sua segunda edição, pensa-se na possibilidade de reeditá-lo para ser matéria do próximo vestibular da UFES. Autor de linguagem própria — o seu grande instrumento de trabalho —, atualmente dedica-se a escrever a autobiografia que deverá receber o título Menino. Uma iniciativa que ele mesmo considera precoce. Mas precocidade é a sua marca. É um jovem autor que produz textos clássicos como os grandes mestres — Machado de Assis, Dostoievski.
Vamos parar por aqui os elogios que muitas vezes o incomodam mais que o agradam, mas que são inevitáveis, porque além de ser uma unanimidade — só para desmentir Nélson Rodrigues, ele é calçadense e um amigo especial. Tanto que foi uma luta separar, em 90 minutos de gravação, nossas conversas da matéria jornalística. Porque ainda muito se vai ouvir falar de Pedro Nunes por este Brasil afora.
Cidade Aberta aproveitou um de seus dias de férias em Calçado e registrou impressões e opiniões de um camarada simples, disciplinado como escritor e como leitor de boas obras às quais dedica, rigorosamente, uma hora todos os dias. Avesso a badalações, numa concessão especial à filha Mariana, de 4 anos, frequenta parques e praças. Assim é Pedro. A propósito: Nunes é um adjetivo e significa ímpar.
CA: Calçado exerce alguma influência na sua obra literária?
PN: Sim, na medida em que tudo que a gente vive e sente influencia o que a gente escreve. Pensando assim, Calçado não poderia deixar de influenciar o que escrevo ou, pelo menos, boa parte do que escrevo.
CA: De que maneira?
PN: Ao descrever uma cidadezinha do interior, por exemplo. Em Vilarejo cheguei ao ponto de tomar emprestada a topografia de Calçado. Em A questão, que é também um conto ambientado no interior, é possível que eu tenha tomado emprestadas algumas trilhas em que andei aí pelos matos em companhia do vovô Pedro. Desta maneira Calçado me influencia. Quanto a sentimentos, eu não me lembro de nenhum que a cidade tenha me causado, talvez sejam sentimentos inconscientes, assim sendo, estão adormecidos, eu não os conheço.
CA: Quanto sentiu seu interesse pela literatura despertado?
PN: Desde sempre. Fui alfabetizado em casa por minha mãe, dona Anna Costa. Quando cheguei à escola já lia e escrevia alguma coisa, inclusive palavrão — minha primeira professora, dona Edith Brasil, descobriu no meu primeiro caderno um palavrão muito bem escrito. Isso dava poder. Na minha infância tive uma hérnia na virilha que me obrigava a ficar em repouso, a usar uma funda que a pressionava e me impedia de brincar como os outros meninos da minha geração. Nesse período, de dois anos, eu pedia livros a meu pai. Lia muito A Ordem (órgão oficial e noticioso da prefeitura de São José do Calçado), revistas e tudo que me batesse às mãos. Aos 14 anos trabalhei numa livraria em Calçado que teve a exata duração de três meses, durante os quais o proprietário não me pagou nem um salário, mas em compensação eu pude ler tudo o que havia lá. Ao fim do nosso contrato sugeri que ele me pagasse em livros e acabei levando para casa uma biblioteca — livros de Júlio Verne, Joaquim Manoel de Macedo, Machado de Assis (que na época eu considerava chato).
CA: Com que idade você começou a escrever?
PN: Com 9, 10 anos eu brincava de escrever livrinhos — eu os compunha e os costurava. Depois, aos 12 anos, a pedido da professora Clotildes, escrevi um diário de férias em que eu relatava até as besteiras que fazia na missa. Passei um período sem escrever, em outro compus poesias, nada de valor. Quando fui para Vitória, aos 19 anos, já havia produzido um romance, escrito aos 18 anos, e que eu considerava a minha obra-prima. Ainda o tenho guardado, mas por pouco tempo. Recentemente queimei uma pasta com os meus textos de infância e adolescência porque eles não tinham outro valor senão o afetivo. É o caso deste romance que, além de tudo, é muito amargo. Não suporto a ideia de ver tais coisas publicadas, vai que a gente desaparece de repente, sabe como é.
CA: Alguém o orientava ou incentiva sua vocação?
PN: Meu tio Sebastião Nunes um dia pegou um texto que redigi aos 14 anos e disse: “— Vamos publicar isto na ‘Ordem'”. Era um texto bastante católico, sobre os destinos da família, mas nele havia uma interjeição — porra! —, que levou meu tio a pedir a opinião de dona Nádia Rezende. Ela olhou aquilo e falou: “— Mas é o estilo do menino, Sebastião. Nós não podemos estragar o estilo dele”. Então meu tio decidiu que o “porra” seria publicado como “pô”. E publicou o texto. Mas há outra pessoa que me ajudou muito, não no sentido de me mostrar o que ler, mas de me fornecer a máquina de escrever — o professor Carlos Aurich. Ele foi muito importante para mim, éramos amigos e quando soube que ele morreu recentemente fiquei chateadíssimo.
CA: O fato de ser do interior pode dificultar uma carreira literária?
PN: Isto vai parecer um pouco grosso, mas a produção literária do interior, com honrosas exceções — e em Calçado há exceções —, é muito retrógrada. Ela muitas vezes é de um mal parnasianismo, pretensamente parnasiana em suas rimas e argumentos pobres porque as pessoas não se aprofundam no que fazem. Se a pessoa não ler, não sofrer o texto, vai ter dificuldades, sim. Agora, a pessoa do interior, ou não, que se disponha a conhecer o mínimo de literatura, a ler um pouco mais, a ter mais dedicação, vai chegar a um ponto em que poderá ser reconhecida.
CA: Acredita realmente que não exista nenhum preconceito, ou pré-conceito, contra o escritor do interior?
PN: Não. O que existe é o preconceito contra o novato. Você, quando inicia, é considerado um zero à esquerda. Eu segui o caminho dos concursos literários e tive a sorte de vencer um de peso, promovido pela Editora Brasiliense, que na época era uma das três melhores editoras do país. Eles divulgaram meu trabalho, inclusive através de distribuidores, então eu penetrei no campo literário com esse respaldo. E continuei tentando sobretudo aprimorar meus textos. Eu só mostrei um texto meu aos 25 anos e só publiquei meu primeiro livro aos 30, o Aninhanha, que por entraves burocráticos acabou sendo lançado depois de Vilarejo.
CA: Os jovens de Calçado geralmente são forçados a deixar a cidade em busca de oportunidade. Com você aconteceu a mesma coisa?
PN: Em 1980 eu fiz um concurso público e passei. Poderia ter ficado trabalhando aqui, mas eu me desencantei de Calçado com o que aconteceu aqui no Carnaval de 81, assunto sobre o qual não gosto de falar. [N. da R.: Pedro Nunes se refere ao assassinato de seu amigo César Brasil Di Giorgio, de 17 anos.] Calçado se tornou uma cidade violenta, aliás, sempre foi uma cidade violenta. Eu sempre via, em menino, adolescente, adulto morando em Vitória e agora. Toda vez que a gente vem a Calçado fica sabendo de coisas horríveis. As pessoas aqui precisam se amar mais, se respeitar mais, há tanta coisa bonita para se viver em Calçado e isto não está acontecendo. Eu poderia ter ficado aqui, mas não havia mais clima. Acredito que muitos jovens saíram de Calçado pelo mesmo motivo por que eu saí.
CA: Você retornaria hoje?
PN: Não, provavelmente não. Depois de 13 anos em Vitória eu me afeiçoei à cidade. Lá eu tenho amigos, a minha família, uma série de interesses e projetos pessoais e profissionais por desenvolver. Mas eu não deixo de dizer que Calçado para mim é o melhor lugar do mundo. Não falo isto com ironia ou com hipocrisia. Realmente gosto de Calçado. Ainda hoje de manhã, com o sol nascendo, fui caminhar e fiquei reparando as montanhas que cercam a cidade. Minha mãe às vezes observa que chego aqui e já não vou à casa de ninguém, que só quero andar pelo mato. Mas isto é o que Calçado reserva de melhor para mim. Não quero, contudo, que fique parecendo que apenas as matas e as montanhas me interessam em Calçado. Há os meus amigos, pessoas queridas que são parte do meu referencial de vida e a minha família, que é a coisa mais cara que tenho no mundo.
CA: Mas se você pudesse fazer alguma coisa por Calçado, por onde começaria?
PN: Meus empreendimentos são modestos. Não sei se estaria fazendo alguma coisa para Calçado com a minha literatura. Como membro do Conselho Editorial do projeto Escritos de Vitória eu procuro divulgar o trabalho de escritores calçadenses que residem lá, me preocupo em incluí-los nas nossas publicações. Nas palestras que faço pelo Estado, falo sempre de Calçado e no meu próximo livro, Menino, que é sobre as minhas memórias, sobre o que vivi aqui, estarei falando sobre a cidade e divulgando-a. Há algum tempo venho oferecendo, e já não sei a quem mais oferecer, um projeto que se constituiria da realização de palestras com escritores capixabas, que só cobrariam as passagens para vir aqui, porque a hospedagem eu me proponho oferecer. Eu também poderia vir para falar sobre literatura, mas até agora ninguém manifestou interesse nisto. O que posso oferecer a Calçado hoje, e a qualquer tempo, é a minha integridade, a minha boa vontade e a minha disposição em trabalhar.
CA: A impressão que se tem de sua obra publicada é que forma um conjunto. É proposital?
PN: É proposital, sim. Os meus textos invariavelmente são paradigmáticos — eles não se passam em lugar nenhum e podem se passar em qualquer lugar. E isto é intencional, pelo menos no que produzi até agora. Mesmo os planos literários que tenho para o futuro passam por aí, pela ideia de conjunto. Porém a linguagem de Aninhanha é diferente da de Vilarejo, no primeiro foi uma experimentação — eu queria mostrar serviço —, e Vilarejo já tem uma escrita mais simples, com exceção do conto A questão. Estilisticamente, não há composição de conjunto, mas como produção literária há, sim. Tanto que eu queria reunir Aninhanha e Vilarejo num só volume — seriam três histórias rurais e três urbanas —, mas os editores não toparam.
CA: O que você diria para os meninos de Calçado que querem escrever e para os que já escrevem? O que eles podem fazer com os recursos de que dispõem aqui?
PN: Ler é fundamental. Escrever sem ler é impossível, ninguém vai criar mais nada hoje em dia e se criar vai ser muito ruim. A literatura hoje não é senão uma imitação. O sujeito pode ser mais ou menos criativo, mas vai ter de passar pela leitura. E leitura é uma coisa meio complicada porque nem tudo o que se lê é literatura. Paulo Coelho, por exemplo, não foi e nunca será literatura. Assim como Sidney Sheldon e outros nomes que na verdade são firmas que se dedicam à fabricação de best-sellers. Então comecem por coisas nossas mesmo: leiam Iracema, de José de Alencar, leiam Machado de Assis, Graciliano Ramos — autores que ensinam a escrever. E Padre Vieira. Se têm saco e querem escrever, serão capazes de ler Padre Vieira e encontrar prazer nessa leitura — ele é o escritor mais elegante que eu conheço. Isto tudo está aí, ao alcance de todos, na biblioteca pública. Além de ler, devem escrever muito e procurar a companhia de pessoas experientes e se submeterem às críticas, porque elas também ajudam.
CA: E você, preocupa-se com a crítica ou com os críticos?
PN: Não, não me preocupo. O meu livro Aninhanha foi muito bem recebido por algumas pessoas e mal recebido por outras. Eu não me preocupei com nenhuma dessas opiniões porque quando escrevo penso muito em mim.
CA: Se você não vai ter vergonha daquilo.
PN: Se eu não vou ter vergonha daquilo. É um bom parâmetro, algo em que eu ainda não tinha pensado. Eu escrevo e digo: isto aqui vale a pena, isto é bom, este é razoável. Nunca acho que escrevi uma obra-prima, bem, achei aos 18 anos. Mas a gente sente alguma coisa quando o texto é bom. Quando terminei de escrever Vilarejo, eu disse: puxa vida, isto é um texto legal! Foi um conto que me tomou. A minha primeira intenção era prestar uma homenagem ao vovô Pedro Nunes, mas o livro foi andando. E realmente aconteceu. Foi um livro muito bem aceito, tenho ouvido boas coisas sobre Vilarejo nas palestras que tenho feito por todo o Estado. Quanto à crítica, especializada, eu acho que deveria existir, porque ela forma o escritor. Haveria menos porcaria publicada se houvesse mais espaço para os críticos, se houvesse bons críticos como foram Cavalcanti Proença, Afrânio Coutinho. O que há, na maioria das vezes hoje, é a rasgação de seda, o poderio econômico, o lobby das editoras. A crítica não me comove porque ela não existe.
CA: Na sua opinião, para se escrever um bom texto, é necessário mais inspiração ou mais transpiração?
PN: O meu processo de composição é peculiar. As ideias me aparecem da maneira mais engraçada — ou é um sonho, ou um fato que leio nos jornais, ou uma coisa que percebi de repente. Depois disto, fico com aquela ideia na cabeça, até que começo a escrever. Aí, sim, eu faço uma versão a mão — o copião, o esqueleto. Depois passo aquilo para a máquina de escrever e aí é o sofrimento. É um tal troca palavra, tira uma palavra daqui, coloca ali. Eu me preocupo muito com a forma do que escrevo, com a ideia precisa do que estou pensando e não, necessariamente, com o que o leitor quer ou precisa ouvir. Escrever é este sofrimento mesmo, atávico, é sofrer as letras, conhecer as palavras, ser íntimo delas.
CA: Tocar em certas feridas.
PN: Da gente e dos outros. Tocar em feridas é ótimo, é o princípio da ironia. Você toca na ferida de uma pessoa e só ela vai entender, a ironia tem dessas sutilezas, senão é sarcasmo.
CA: E quanto às famosas porcentagens de inspiração e transpiração?
PN: Tem de haver o compromisso com a palavra. Esta questão da transpiração traduziria bem isto. Porque escrever não é só você sentar diante de uma mesa, sob o patrocínio de uma xícara de chocolate quente, se é inverno. Escrever não é esta coisa romântica que algumas pessoas idealizam. Escrever não é elegante, é preciso transpirar.
[Entrevista de Pedro J. Nunes ao jornal Cidade Aberta, de São José do Calçado, ES.]
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