Pedro José Nunes, capixaba de São José do Calçado, é a grande novidade literária que o Espírito Santo lançou na presente década. A escritura de Pedro é um delírio que enreda a ação no fio do insólito. “Nada do que digo aqui é, pois, da esfera das certezas”, confessa o narrador de Vilarejo. A novela Vilarejo teve sua primeira publicação encartada no quarto número da revista Você. A segunda edição, que nasceria engordada pela companhia de quatro contos — O porco, A questão, O relógio e A divisória —, veio na Coleção Cultura-Ufes, da Secretaria de Produção e Divulgação Cultural — SPDC, e deu formato definitivo ao livro. Com esse traçado, Vilarejo foi adotado pela Ufes para o vestibular de 1996.
Antes de Vilarejo, Pedro esteve na coletânea Jovens contos eróticos, da Brasiliense; esteve no projeto Palavras da cidade, da Prefeitura de Vitória; publicou na revista Contexto, do Departamento de Línguas e Letras da Ufes; e, entre outras façanhas, assombrou com a publicação de Aninhanha, em 1991, também pela coleção da SPDC. De sua passagem no conselho editorial do projeto Escritos de Vitória, publicação da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, que já alcança a décima versão, Pedro guardou o hábito de reunir escritores. Aliou o hábito à lasciva experiência na Brasiliense e deu vez ao vício: um livro de contos eróticos reunindo o talento capixaba.
De seu universo povoado de aninhanhas, da confraria que teceu a libido de seu vício, de seu novo romance, de seus espelhos, da polêmica acerca do parceiro de Vilarejo — o outro livro adotado para o vestibular/Ufes é acusado de plágio —, disso e de um tanto mais é que nos vai falar Pedro Nunes, dublê de autor-revelação e servidor estadual na Polícia Civil.
A conversa foi marcada para o dia 24 de julho, dia do escritor, “por obra e graça do acaso, esse ancião operário do destino” — do conto O porco. Só atinamos para a data quando Pedro telefonou pedindo adiamento. As atribulações na Academia de Polícia, onde leciona, tinham algemado seu dia. Sua agenda concedeu-lhe habeas-corpus para o dia seguinte. E, como Pedro demonstra a seguir, todo dia é dia do bom escritor e da boa prosa.
Você — É importante ter um livro adotado para o vestibular?
Pedro — É importante enquanto divulgação. Sem dúvida é uma ocasião que faz circular o nome do autor e de sua obra. Entretanto, considero de maior validade a adoção do livro nas escolas de primeiro e segundo graus. O livro, transformado em questão de prova do vestibular, é estudado muito parcialmente, limitando-se, por vezes, a pequenos trechos ou ao estudo da trama e de alguns personagens. A maioria dos alunos que vão para essas provas não lê nada ou lê apenas o resumo da obra. Aliás, o resumo é um crime contra a formação do estudante e um crime contra os direitos autorais. Nas escolas de primeiro e segundo graus é feito um trabalho mais sério, que exige tempo, fornecendo um saldo positivo, gratificante para o autor. No próprio contato entre autor e estudantes, quando feito, há mais sedução de ambas as partes.
Você — Agora que você está no mercado compulsório, um bom número de estudantes, apesar do famigerado resumo, lerá Vilarejo preparando-se para provas. Tirante isso, você considera o capixaba um bom leitor?
Pedro — O fenômeno da crescente onda de instalação de livrarias em Vitória é um bom sinal. Se os livreiros estão investindo em novas lojas, é evidente que o fazem porque acreditam no crescimento do mercado, no aumento do número de leitores. Por outro lado, a qualidade dos livros que figuram na lista dos mais vendidos é, no mínimo, duvidosa. Mas, afinal, há um consolo: leitura puxa leitura. As livrarias estão com boa freqüência de público, o momento é alentador para o mercado editorial. Os livros capixabas estão sendo bem recebidos e essa aceitação tende a crescer. A série Escritos de Vitória é muito procurada.
Você — Por que Vilarejo teve mais sucesso do que Aninhanha?
Pedro — Aninhanha é um livro mais novo do que dois contos de Vilarejo. Mas Aninhanha reflete uma procura muito grande de se chegar a uma linguagem que unificasse narrador e personagem. Uma linguagem que transmitisse ao leitor o universo peculiar da personagem. Nessa busca, houve um ponto de efetiva sintonia: a linguagem incorporou o narrador. Daí as experimentações morfológicas, a subversão sintática, o aproveitamento de vícios. Entre os acadêmicos foi excelente a receptividade a Aninhanha, muitos o consideram superior ao Vilarejo. Mas Aninhanha, reconheço, tem essa dificuldade expressa na linguagem. A parte inicial chega a ser meio chata, mas o tom de suspense que impera no restante do livro supera essa dificuldade presente no início. Bem, Vilarejo veio logo depois. A primeira versão teria linguagem muito próxima da linguagem de Aninhanha. Mas eu reescrevi o livro, simplificando-o nesse aspecto. Vilarejo, de início, iria ser um conto sem movimento. Mas a história começou a mandar em mim, tomou outro destino. Creio que foi meu primeiro caso de inspiração. A história, como você sabe, é uma homenagem que presto ao meu avô paterno. E o que atrai nela é a identidade que tem com a história vivida das pessoas, a história não contada de nossas crônicas familiares, de nossas aldeias. Circulando pelo Espírito Santo, falando de literatura, ouvi pessoas se manifestarem quanto à identidade do vilarejo comparando-o a Ecoporanga, Dores do Rio Preto e São José do Calçado, este com mais evidência. Assim, Vilarejo se destacaria mais pela readequação da linguagem e por proporcionar esse encontro, essa identidade manifesta com outras pequenas cidades, com seus habitantes e seus acontecimentos.
Você — A escritora e professora de literatura Deny Gomes estabeleceu comparações entre a trama de Vilarejo e o julgamento de Cristo (ver Os medonhos insucessos de Vilarejo e outras histórias, da professora Deny Gomes). A adaptação, ou melhor, adequação, foi inteiramente consciente? Você já obteve essa resposta à obra em outras análises?
Pedro — A Bíblia é um livro que eu leio insistentemente. Tenho a minha Bíblia desde os 15 anos de idade e já fiz duas leituras completas de seus textos. Não procuro nela outra coisa que não seja sua beleza como obra. Encanta-me mais o Velho Testamento: a metáfora do Gênesis, a fúria do profeta Isaías, os salmos, a coragem de Jó. No livro Aninhanha ocorre uma proximidade intencional com os textos evangélicos, com a trama evangélica. Mas no Vilarejo não há intencionalidade. Mas é inegável a semelhança com o julgamento de Cristo. Há uma pessoa realmente sacrificada, seu ressurgimento, a culpa coletiva.
Você — Em outras ocasiões, você já trabalhou recriações?
Pedro — Não tenha dúvida. Aponto Aninhanha como o caso mais flagrante.
Você — O que você acha do recurso da intertextualidade?
Pedro — Nós estamos vivendo uma época de reciclagem, de apoio nas experiências de nossas leituras. Mas precisamos fazer isso respeitando as referências, sem aviltar, sem copiar. É perigoso na intertextualidade deixar que o texto de outro mande no seu. Você deve manter sua necessidade de criação. Inspiro-me, com certeza, em leituras que faço. Mais uma vez cito o livro Aninhanha: olhei muito no espelho Hora da estrela, de Clarice Lispector, quando o escrevia. Dessa leitura, inclusive, tirei a epígrafe de Aninhanha: “Se essa história não existe, passará a existir.” E o mais que acompanha essa frase.
Você — O outro livro adotado para o vestibular da Ufes — O mofo no pão, de Neida Lúcia Moraes — é acusado de plágio. Você leu os artigos de Deny Gomes e a defesa da autora? O que acha do caso?
Pedro — A Deny me falou do fato antes de publicar o artigo: “Espantosas semelhanças entre os textos…” Em momento algum, mesmo em conversa informal, falou de plágio. Mas o que eu pude interpretar, lendo seu artigo na revista, é que Deny constatou várias semelhanças que apontam para o plágio. Depois, no segundo artigo, viriam novas semelhanças, ainda com Carlo Ginzburg — O queijo e os vermes — e outras com Umberto Eco — O nome da rosa. Acho que a autora nem tinha como se defender. Infelizmente. Por isso os argumentos de sua defesa foram tão fracos.
Você — Apesar disso, você acha que a literatura produzida no Espírito Santo está em fase de amadurecimento?
Pedro — Nós temos escritores maduros no meio de um batalhão que escreve por escrever. Há um bom número de escritores produzindo literatura no Espírito Santo buscando esse amadurecimento. A lista de tais autores não é nova, não tenho visto coisas alentadoras. Mas alguns já estão prontos. E o amadurecimento está acontecendo, embora num círculo muito restrito. Quero citar um conselho do professor Francisco Aurélio, que disse que o autor de um livro de poemas, um livro de estréia, deveria esperar dez anos antes de publicar esse livro. A pressa em publicar pode atrapalhar o talento que está no limiar da revelação. Só o tempo produz a maturidade da obra.
Você — O que está faltando para o escritor capixaba deslanchar no mercador nacional?
Pedro — Ressentimentos da falta de uma editora profissional. Temos escritores tão bons quanto em qualquer parte do país. Escritores que trabalham seriamente e que estão no mesmo nível de autores que fazem sucesso nacional. Falta isso ser descoberto. Tentamos fazer a reedição do Vilarejo com uma editora de fora, com a participação da SPDC. Tivemos a resposta de que o livro talvez não atingisse a faixa de público que eles estão atingindo. Ficou nisso. O que nos leva à certeza de que precisamos de uma editora que faça um trabalho comercial, pois tal trabalho faria a literatura produzida no Espírito Santo ser conhecida no país inteiro. A exemplo do que hoje acontece no Rio Grande do Sul.
Você — Que iniciativa local melhor tem contribuído para popularizar o autor capixaba, isto é, apresentá-lo ao público potencial do Espírito Santo?
Pedro — Há casos isolados, como o projeto Escritor na Cidade, desenvolvido através de uma ação conjunta da Biblioteca Nacional com a Biblioteca Estadual. Esse projeto leva o autor a peregrinar pelo Estado, divulgando seu trabalho e conversando com estudantes e leitores locais sobre literatura e produção literária. Quando publicamos Vilarejo, eu, o Reinaldo — Reinaldo Santos Neves — e o Joca — João Carlos Simonetti Jr. — saímos em viagem por várias cidades, falando da revista Você e da literatura produzida no Espírito Santo. Esse périplo me ajudou a dissipar uma ideia equivocada que eu tinha do pessoal que escreve. Descobri que o escritor sério, honesto na sua atividade, é extremamente solidário com outro escritor que também trabalha com seriedade. Fala do trabalho do outro por onde passa, mesmo não tendo com ele maior afinidade que seja essa de tentar produzir literatura de qualidade. Já os livreiros capixabas continuam não dando atenção aos livros aqui editados. O espaço nobre das estantes nunca é frequentado pelos autores locais. Um projeto que não poderia ser esquecido é o Escritos de Vitória, da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Mas o sucesso do projeto não está na qualidade dos textos, mas nos temas tratados. De boa qualidade literária tivemos o primeiro e o sétimo. Mas é bom que o projeto continue. Fui do primeiro conselho editorial e, depois, quando saí, publiquei uma crônica no nono número da série, que tinha como tema as igrejas de Vitória. Antes do Escritos, havia o Palavras da Cidade, também muito bom. Deste participei com o conto A ratazana e o ocaso. No meu caso, muito me ajudaram os concursos. Num, da editora Brasiliense, tive o conto Sereia selecionado para o livro Jovens contos eróticos; aliás, quero ressalvar que considero o texto selecionado bastante fraco diante do que eu produziria depois. Mas o concurso me ajudou muito. Noutro, aqui do Estado, em 1987, tive o conto Aninhanha, ainda com o título Maria Trinta Cruzes, agraciado com uma menção honrosa. Os concurso sempre promovem o autor. (Por que abrimos esses parênteses? Para explicar que foi o escritor Carlos Nejar quem sugeriu a Pedro a mudança do título para Aninhanha. Como é sabido, ele acatou a sugestão. Explicado e fechado). E uma iniciativa que me deixou agradavelmente surpreso foi o projeto Nossolivro, encabeçado pelo jornal A Gazeta. O jornal de maior circulação do Estado levando a seus leitores bons escritores capixabas. Mas critico a imprensa local por achar que ela não promove adequadamente o debate acerca da produção literária do Espírito Santo. Bem ou mal, ela deveria falar mais de nossos autores.
Você — Que papel, afinal, cumpre a Lei Rubem Braga?
Pedro — A Lei Rubem Braga exerce o papel de publicar autores que de outra maneira não conseguiriam publicar. Isso pela própria realidade do nosso mercado editorial. É bom? É ruim? Não sei. Sou relator da Lei Rubem Braga. Recentemente recebi um texto para análise que era por demais imaturo. O que não quer dizer que todos os textos enviados para a Lei sejam da mesma qualidade. Há livros muito bons publicados. Como há livros muito ruins.
Você — Por que você nunca enviou textos para a Lei Rubem Braga? Você é um fora-da-lei?
Pedro — Não mandei. Sou, nesses termos, um fora-da-lei. Escrevo pouco, no ritmo de São José do Calçado, bem lentamente. Nem tudo que eu escrevo aproveita. Tenho obsessão em melhorar, em reescrever. Reescrevi Aninhanha umas dez vezes; uma, inteiramente. Não tenho um texto para mandar para a Lei Rubem Braga. Tivesse, mandaria. Há algum tempo, penso em escrever um livro de poemas, de sonetos eróticos, amorosos. Como já pensei em produzir um livro de sextinas sacras usando idéias retiradas do Livro de Jó. Escrevi dois destes poemas; a exigência da forma torna difícil a realização dos textos. Se tivesse um desses livros prontos, mandaria para a Lei Rubem Braga. Por quê? Porque meu terreno é a prosa, a boa história. Um livro de sonetos poderia não ser bem aceito por quem edita no Espírito Santo e por quem compra o autor capixaba. Sextinas, então… Aí entra a validade da Lei: ela não convive com a preocupação de comercializar, podendo amparar um livro bem realizado. Para finalizar, se não procurei a Lei Rubem Braga antes é por não ter disponível um material decente para oferecer.
Você — Bem, vamos falar de foras-da-lei. Luís Trevisan, editor da seção Victor Hugo, de A Gazeta, anunciou que você reuniu sete contistas capixabas numa tentativa de erotizar a literatura local. Fale dessa reunião.
Pedro — Há livros publicados por iniciativa oficial que têm mais erotismo do que qualquer conto do livro de contos eróticos que planejamos. A idéia de fazer esse livro surgiu num sábado em que eu folheava o livro da Brasiliense (Jovens contos eróticos, de que o autor participou). A ideia, enfim, era fazer um livro que juntasse os escritores que se reúnem aos sábados na Logos. O tema poderia ser mistério, terror ou, como ficou, erotismo. Falei primeiramente com o Reinaldo e com o Luiz Guilherme Santos Neves. Reinaldo ficou reticente, como esperado. Mas o entusiasmo do Luiz Guilherme foi surpreendente. Depois, noticiei ao Renato Pacheco, ao Francisco Grijó e ao Tião Lyrio. Todos eles autores que freqüentam essas reuniões aos sábados. Convidamos você (Adilson Vilaça) e Bernadette Lyra. Tentamos colocar um conto do José Carlos Oliveira, mas houve problemas quanto à cessão dos direitos com seus herdeiros. Bernadette não topou. Adilson Vilaça — aponta com o dedo e o olhar — topou. O livro está pronto, e ficou com o título Mulheres — diversa caligrafia. O tema erotismo poderia ser outro, terror ou mistério, como já falei.
Você — Como mentor e organizador dessa reunião, além de escrever uma das tentativas e de ser obrigado a ler, ainda no pecado de cada original, as outras seis desistências, você é o maior conhecedor dos segredos desse quase livro. Que personagens dessa coletânea você convidaria para fazer ou desfazer uma aninhanhazinha?
Pedro — Veja só (ri muito), é uma sinuca de bico. Gosto muito da safadeza da Albertina, de sua disposição para a safadeza. Safadeza no sentido do jogo da sedução e sua conseqüência. Sendo minha criatura, tenho muita intimidade com a personagem Albertina. Mas os textos que compõem o livro têm uma carga de erotismo bastante contida. É bem verdade que há personagens que materializadas seriam deliciosas tentações.
Você — Onde você encontrou apoio para a publicação? Quando será o lançamento?
Pedro — A Secretaria de Cultura e Turismo de Vitória se interessou, comprometendo-se a participar com algum apoio. Estamos aguardando o desenrolar do processo. O projeto é interessante para os autores, para a literatura produzida no Espírito Santo, para a Secretaria, que teria a chance de participar de um projeto que reúne vários de nossos melhores ficcionistas. Não tão eróticos assim, mas, sem dúvida, uma confraria de primeira linha.
Você — Pedro, rogando o perdão de Eros pelo nosso delicioso fracasso em Mulheres — diversa caligrafia, vamos falar de seu próximo livro. Qual é o gênero, o título, o tema, o universo… Conte tudo, com direito a esconder muito mais.
Pedro — Quando estávamos indo para São José do Calçado, eu mais o Reinaldo e o Joca, foi inevitável que eu começasse a relembrar minha infância. As paradas, as taças de vinho bebidas. Tudo estava muito evocativo. Num dos dias daqueles que lá permanecemos, o Joca queria tomar vinho refrescado na água, recriando uma cena de O sol também de levanta, de Hemingway. Estávamos os três e minha irmã Josana, a mais nova de minhas irmãs, numa cachoeira. E eu relembrando minhas histórias. Não sei se foi o Joca ou o Reinaldo, ou os dois, o vinho apagou a certeza, me perguntou por que eu não fazia um livro sobre a minha infância. Guardei a resposta, não levei a pergunta muito a sério. Bem, recentemente me vi compelido pela necessidade de escrever um livro. Tinha empacado num livro de terror, que não engrenava. Como escrever é ofício de desocupado, lembrei-me da proposta. Botei no papel algumas lembranças e veio o livro. Tornou-se o livro da infância de quem tem 30 anos e viveu no interior, sem televisão e outras parafernálias da modernidade. Houve crise, briguei com velhos fantasmas, interrompi o livro por três meses. O projeto inicial do Menino era de 100 laudas e acabou em 200. É um romance com capítulos bem independentes e que tem como tema principal o primeiro amor da infância.
Você — Fellini, após se exasperar com a insistência de um entrevistador — a imprensa é néscia, culpada dos fatos, quando não, maldosa e leviana — disse que é autobiográfico até mesmo quando fala de um peixe. O que tem o Menino de autobiográfico?
Pedro — É um romance inteiramente autobiográfico. Conta a minha vida até os 11 anos de idade, quando entrei no ginásio. Fala de meus amigos, de ambientes da minha infância, de meus familiares, de São José do Calçado. O levantamento do tempo, de segredos caros, de coisas que não estavam resolvidas mas apenas guardadas, que voltaram e não me fizeram bem, todas essas questões tornaram o livro muito penoso. Acho que é meu melhor livro. Não por ser o último. Menino foi reescrito quatro vezes. É a maturidade que posso oferecer. Menino tem muito de autobiográfico, mas assemelha-se à infância coletiva vivida no interior.
Você — Numa reportagem do jornal A Tribuna, abordando a relação filosofia/literatura, você se confessou um autor que sofre ao escrever. Como você explica essa autoflagelação com tão boa fatura estética?
Pedro — Há dois tipos de sofrimento. O primeiro está bem descrito num biografia de Dostoievski, uma biografia que acho mais interessante do que tudo que ele escreveu. Um jovem autor levou um original para Dostoievski avaliar. Ele teria perguntado ao autor: “Há sofrimento nisso?” Ao receber uma negativa do jovem, Dostoievski teria dito: “Então reescreva. Para escrever bem é preciso sofrer, sofrer e sofrer.” O segundo tipo de sofrimento é a angústia da busca do texto perfeito. E, por mais que busque, sei que não vou conseguir. A reescritura constante é o sofrimento que permeia tudo que escrevo. Acima disso, há o prazer de escrever, o êxtase de criar no papel. Até achar o fio condutor de uma história eu padeço. Há uma lógica interna que eu não domino por antecipação. Talvez por isso produza tão pouco. Ou melhor, assuma tão pouco o que escrevo. Há textos meus inteiros, finalizados, que eu não publicaria.
Você — Ainda neste tema, ou seja, continuando a pescar o mesmo peixe de Fellini, que influência o passado de escrivão de polícia tem na sua produção literária? Você já se aventurou no enredo policial?
Pedro — Não. Mas a vivência já me deu matéria. Aninhanha tem dois fatos policiais que são a inspiração do livro. Uma mulher que deu à luz e enterrou o recém-nascido. Eu tomei o depoimento dessa mulher, uma moradora lá do morro do Macaco, aquele morro que desabaria durante as chuvas de 1985, provocando uma terrível tragédia. O outro é o caso de uma senhora da Praia do Canto que acha uma criança num terreno baldio e a acolhe, disposta a criá-la. Também o conto O relógio tem origem num fato policial. Não há como não passar a experiência do dia a dia.
Você — Perdoe-me a insistência, e, por favor, acalme qualquer possível exasperação felliniana. Para encerrar o inquérito policial: o escritor Rubem Fonseca foi recentemente descoberto, pela Folha de São Paulo, na pele de um ex-agente de polícia. E, na obra de Rubem Fonseca, muita vez, tintim por tintim, aflora seu passado de investigador criminal. Você renuncia à exploração desse filão? Por quê?
Pedro — O Grijó já me aconselhou a seguir por essa via, indicando que eu tenho um material fantástico nas mãos. Mas nunca fiz nada a jeito do típico romance policial. Nem quero fazer. Talvez seja a forma de manter uma saudável distância entre o que escrevo e o meu trabalho.
Você — Seu temário e sua linguagem podem ser classificados de regionalistas? Você gosta dessa classificação?
Pedro — Não me agrada, mas também não me desagrada. Sou indiferente a tais rotulações. O Aninhanha é essencialmente urbano. A linguagem pode ter algumas experimentações morfológicas que confundem o linguajar típico do caipira. Mas o que é a maioria do favelado do Espírito Santo senão um caipira? Onde ele vivia até bem pouco tempo senão no mato? Acho que essa classificação revela que a escolha dessa linguagem foi mal compreendida. É evidente que estou escrevendo sobre o que está à minha volta. E acho que o romance Menino irá estimular ainda mais essa classificação. Contudo, eu não a considero aplicável a toda a minha obra. Acho a classificação imprópria, precipitada, mas não me preocupo com ela.
Você — Os contos A questão e O relógio, junto a dois outros títulos, acompanham a novela Vilarejo, muito se aproximam do texto de Guimarães Rosa. Aliás, confirmando a escritura de Aninhanha. Se perguntado no vestibular se há marcante influência de Guimarães Rosa na sua produção a resposta é um redondo SIM? Fale dessa relação, do quanto ela é verdade ou apenas suspeição.
Pedro — Acho que é apenas suspeição. Só conheço do Guimarães Rosa os livros Sagarana e Grande sertão: veredas. Mas um editor carioca que analisou meus textos para possível publicação evidenciou “notáveis influências” de Guimarães Rosa. E usou isto para descartar a edição. Ora, se tem tanta parecença com Guimarães Rosa deveria mais é ser publicado, porque ele é muito bom. Mas não é somente por lançar mão de recursos morfológicos que alguém se assemelharia a Guimarães Rosa. Aliás, eu sou avesso a essa comparação. E também não vamos falar que eu e Guimarães Rosa bebemos da mesma fonte, porque isso é problemático (risos).
Você — Depois de Menino, que promete ser seu romance-terapia, Pedro Nunes começará a escrever sem sofrer?
Pedro — Como Menino não haverá sofrimento igual. Mexer com o íntimo, com a ressurreição do passado, com as velhas cicatrizes, é sempre muito doloroso. Do sofrimento do texto, da obsessão do texto perfeito, todavia, não há como fugir.
Você — No meio literário capixaba há uma boa meia dúzia de escrevinhadores de São José do Calçado. É a água de lá ou milagre de São José operário?
Pedro — Calçado tem fama de ser cidade triste; lá as pessoas são introspectivas. A sensibilidade é um dom de Calçado. Por isso a quantidade de pessoas que escrevem, pois lá se aprende a viver e a contar a vida. É também uma das poucas cidades do interior com Academia de Letras. Todos da minha geração liam muito. E onde há interesse pela leitura, há também o interesse pela produção.
Você — As aninhanhas, os rabudos, as gurileitoas, enfim, a fauna lobisomem que habita seus textos está em extinção? Ou você mantém escondida uma arca repleta de tais consumados casos?
Pedro — De maneira nenhuma; essa fauna não corre o risco da extinção. Tenho forte intenção, um incontrolável desejo, de lidar com esse imaginário. Carrego comigo o terror das histórias contadas nos serões, as histórias de assombrações que ouvia lá no sítio da família. Contadas para assustar as crianças, e que ficaram gravadas profundamente. Essas possibilidades horríveis, horrorosas, herança da prosa dos peões da roça, agora estão montadas na minha cabeça. Em Menino contei uma delas. Não se foi Dostoievski ou Tolstoi quem disse que devemos prestar atenção à nossa aldeia. Isso é o que faço. Se é regionalismo ou não, importa menos.
Você — Com o Menino no prelo, qual é o próximo caso?
Pedro — Tenho vontade de escrever um livro para quem está na faixa etária de 14 a 16 anos. Os livros que tenho visto para essa faixa de idade são de péssima qualidade. Numa linguagem que eu reputo como pouco literária. Uma linguagem de informação e debate. Com certeza fugiria disso. Tenho muita empatia com essa faixa etária. Constatei essa sintonia nas minhas andanças pelos colégios para falar de literatura e dos meus livros. Mas os meus livros não são exatamente para esse público. Daí a minha vontade de escrever um livro para esse público, sem abrir mão daquilo que considero qualidade literária. Um livro que os respeite enquanto leitores.
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Pedro José Nunes, escritor, nasceu em Ibitirama, ES, em 1962. Nesse mesmo ano, sua família retornou a São José do Calçado, e lá ele residiu até os 19 anos, quando se mudou definitivamente para Vitória. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Criador e responsável pela manutenção do site Terlúlia, dedicado à literatura produzida no Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)