Estes poemas, publicados originalmente em Congregação do desencontro (1980), sofreram algumas modificações para inclusão em O relógio marítimo, obra ainda inédita. As versões aqui incluídas são justamente estas.
O SILENCIENSE
Nascer em Silêncio
era pouca satisfação para tanta ânsia
de encontros amorosos na cidade vazia,
Neste lapso em que derramávamos
nossas coincidências curtas de tempo-espaço.
Em Silêncio, tornei-me tela de papel
e usei palavras como tintas
que pouco a pouco fugiram
até que o silêncio penetrou
no agasalho de palavras que me coloria
do frio, da mudez e da mão vazia.
Em Silêncio, o cinema passa tela em branco,
E, pondo tudo em branco-esbranquiçados pratos,
Retira do intervalo tudo que é pausa, oco ou silêncio
e, com o que se formou do lapso,
Constrói cinemas em arquivos, para burocratas.
Em Silêncio, crio poemas
tarde demais para escrever páginas em branco.
Em Silêncio, para não ser mímico, sinônimo do mundo,
Cresci formado, não por carne e osso em expansão,
Mas sim por pele em camadas, uma sobre a outra:
— Mesmo tendo uma delas furada pela dor,
Sempre mantenho intacta a pele em camadas inacessíveis
que jamais vêem a luz se amaciar até se tornar noite espessa
irradiada do sol de negror.
Em Silêncio, como a noite tem vários lados
formados por quartos em que virgens repousam,
Um destes lados as deflora
e o coágulo desses sangues
surge como o outro lado,
Metamórfico, mudo e alado,
E é primavera para os velhos,
Embriaguez para os jovens,
Jardim para as flores,
Mar para os peixes,
Cemitério para as pedras
e urina e mosca que alguém passa, repara e sorve
e beija por ter sexo este lado da noite,
Porque debaixo do mar
tudo é água de veleiro e peixe na rede do azar.
Em Silêncio, a Terra está parada
porque roubou o movimento do universo
e a percepção do giro
para não incentivar os homens à caminhada e ao progresso.
Em Silêncio, a fuga revela
e amplia com reflexos o mar inacabado.
Em Silêncio, somados lua velha e sol passado,
Após vinte-e-quatro-horas de esforço sem corpo,
O dia se põe como um jato
Onde os sonhos se vão ficar.
Em Silêncio, somados lua velha e sol passado,
Surge dia de nado interminável
onde nos precipitamos a buscar a serenidade
da linha do horizonte
— na vaporosa linha do horizonte.
Em Silêncio, somados lua velha e sol passado,
Surge dia de lua deslocada
e Prometeu que fornece continuamente
calor humano ao sol que rege o dia e a noite consente;
Surge fogo que aquece e então de nós emana
apesar dos pés de abismo
sob lua sem destino,
Pés de abismo que fazem sua rota
ao redor da reta-planície sem planos
enquanto o precipício calcado pelos passos
faz com que afundem no plano.
Em Silêncio.
Em Silêncio, baixa uma massa de ferro paralela às camadas de pele
que pára no ar quando encosta em minhas costas,
Mas este simples toque tanto aumenta e penetra o peso do corpo,
Que na massa me fundo
e voo
em Silêncio. Profundamente.
A CONSTRUÇÃO DO ESQUECIMENTO
Saudosa maloca,
Maloca querida,
Din-din-donde nóis passemo
Os dias feliz de nossa vida!
Adoniran Barbosa
Pregado na paisagem,
Borboleta colecionada inviável,
Um homem-alfinete sustenta a cidade
que edifica
entre duas fomes incessantes
e a riqueza que edifica
a saudade dos olhares
através do vácuo apagado
pelo arranha-céu que edifica
para a criança-esperança do espanto que edifica,
Por sua vez, a paisagem normal futura de suas desistências;
Que edifica o modo como buscará, muitos anos após,
Do espaço perdido pela demolição,
A ocupação pela forma e pelo tempo perdidos,
Que edifica o que não será pensado
cinqüenta anos passados;
Que edifica seu próprio desabrigo
de homem de duas caras produtor de vácuos infláveis,
De corpo vestido civilizadamente
em orquestra com o corpo da cidade,
Enquanto a sombra nordestina,
Como barulho de alfinete, propõe silêncio,
Prega-o na paisagem
e marca as construções
por meio de lágrimas de saudade
que faz em ameaça ao ar.
Não, não será pensado que o preenchimento pelo vácuo
refará no espaço travessias de amor,
Reerguerá no espaço olhares de uma geração
já morta edifício a edifício,
Morto o “lar doce lar” de famílias felizes,
Mortos os motivos de saudade,
Morto de antemão o desejo dos pássaros
temporários que se ouvirão
ocupando com seu canto
o lugar que será ocupado no espaço
por outro arranha-céu que cresce adubado
pela saudade de mais uma geração ultrespassada.
O HOMEM NOS RATOS
Nós somos os homens de ratos,
Nós somos os homens nos ratos.
Nosso corpo não é nosso corpo,
Mas sim um acaso de roedores
que se reúnem em forma humana por pouco.
Nosso corpo não é nosso corpo
e nossos olhos não podem ver o terror
nos que trazem pedaços de nossa figura
contidos em seu interior:
Somos os que comeram ratos antes de serem concebidos,
Os que se alimentaram de ratos, não de maternos líquidos,
Os que extraíram sua força de ratos,
Os que na origem da própria carne
não encontram mais que carne de ratos digerida,
Os que possuem nos ossos, na força e na carne
carne de ratos — transubstanciada
em ratos porque sua concepção se originou
de um desejo dos ratos
que em nossas fotos de criança foram os retratados
e que permaneceram os mesmos
enquanto nosso fraterno eu original,
Crescendo, sumia.
Assim reunidos em grandes corporações,
Roedores sendo cabeça, tronco e membros,
Um susto nos desfaz soltos pelo departamento
e nossos sentimentos convulsionados
extinguem os poucos pedaços ainda humanos
enquanto completamos nossa evolução para ratos.
Nós terminamos aos pedaços enquanto existimos.
Achamos que vivemos, mesmo perdendo pedaços para os vivos,
E nos apegamos à certeza de termos rapidamente existido
como ilusão de ótica que cresce mais do que os nascidos.
Despojados de hinos de fé no trabalho,
Somos animais precisos em um mundo falho
que ninguém conhece, medrosos,
A carícia e o risco nas superfícies dos olhos.
Com os buracos do corpo sendo morada de ratos,
Deveríamos eliminá-los:
— Mas como, sem eliminar também os buracos?
Com o corpo infestado de ratos,
Deveríamos eliminá-los, como ao ânus, à vagina e ao falo?
Com o corpo infestado de ratos
de onde nascemos por acaso,
Todos em seus buracos medrosos e não planejados,
Todos enterrados em nossos buracos
buracos com olhos de ratos,
Que piscam e pulam como dados
programados para o computador errado,
Com o corpo nascido várias vezes
por uma breve coincidência de ratos
reunidos em Congresso Nacional pela privatização do Estado,
Temos de aproveitá-los vezes e vezes
até que aceitemos que lado a lado com a comida — de ratos —
repousem — de ratos — as fezes.
Somos homens formados por ratos cada vez mais.
Quando elevamos os olhos para os velhos ideais
é como se não olhássemos,
Por não poder qualquer imagem da luz atingir uma pele secreta,
E o que acontece é apenas uma caminhada de ratos — como flecha —
que por acaso indica uma meta.
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Oscar Gama Filho é psicólogo, poeta e crítico literário com diversas obras publicadas.(Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)