AMADOS
Para Vilma e Roberto Almada O amor e sua presença eterna, |
Poesia & prosa no país d’almada
Quando publicou seu primeiro livro de poemas — O país d’El Rey & A casa imaginária —, em 1986, Roberto Almada já era relativamente conhecido pelos leitores capixabas porque havia participado das duas coletâneas Poetas do Espírito Santo, em 1973 e 1974, esta última organizada por Elmo Elton. Ambas as publicações tiveram muita repercussão por significarem a valorização da poesia feita por capixabas ou poetas radicados no estado.
O conjunto dos poemas contido nessas antologias funciona como referência básica para o estudo crítico da poesia de Almada, devido às importantes marcas do universo poético que se ampliará a partir desse microcosmo inicial.
A diversidade linguística e temática delineia a proposta de realização textual, que não exclui a preocupação com os fatos históricos e sociais, mas os subordina à transfiguração épico-lírica necessária aos intentos estéticos e literários do autor. As opções do discurso verbal anunciam o poeta criativo, mestre no seu ofício, cujas vertentes variam do popular e despojado ao erudito e sofisticado, com momentos, variantes e revelações que tornam o conjunto da obra almadina um dos mais significativos para a literatura capixaba.
O poeta no contexto de uma época e de um lugar
Os textos da antologia de 1973 foram selecionados na I Mostra de Poesia Capixaba, da Fundação Cultural do Espírito Santo. A “Elegia ao guerreiro” não nomeia Ernesto Che Guevara, assassinado em Camiri, Bolívia, em 1967, pois o tempo era de repressão e “el hombre muerto / ya no se puede decirlo”, explicita Caetano Veloso, que também silencia o nome próprio do guerreiro, em “Soy loco por ti, América”. Tal silêncio torna maior a ressonância do impacto causado pela morte daquele que se tornaria um ícone dos movimentos socialistas e libertários dos anos 60. A elegia é composta em dísticos que choram a morte mas, pouco convencionalmente, para a Poética clássica, cantam a esperança (“Olha que a morte ainda é esperança / olha que é noite em Camiri”), afirmam a solidariedade e a coragem como valores humanos (Não vês que o pranto é só elegia / se não choras tão só por ti?” “Que me venha a cova sem máscara ou medo / que não me fuja a terra aonde eu caí.”)
Sucedem-se os versos com a rima aguda em i, elevando o tônus emocional do conteúdo, insubmisso à ordem lógica do pensamento e dos fatos; o eu lírico privilegia seus sentimentos e emoções. Não existe o panfletarismo da poesia de protesto característica da época e, sim, a repercussão interior do fato político transmudado pela linguagem que o socializa no poema.
O fim da ditadura e a supressão da censura prévia permitem que Roberto Almada republique o texto em Dissertação sobre o nu, de 1990, com o título “Elegia a Ché”, o que vale como celebração dos tempos democráticos agora vividos.
Modificações na pontuação (colocação de vírgulas, retirada de parênteses) e retificação de expressões (onde substitui aonde, no segundo verso do dístico 15, esse em lugar de este, no primeiro verso do dístico 18) revelam o cuidado que Almada sempre teve com seus versos e a permanente busca de uma linguagem com melhor rendimento poético.
A vertente épico-lírica assinalará a poesia de Roberto Almada, produzindo tensões entre a objetividade voltada para a História — do Espírito Santo, do Brasil, do continente americano e do mundo — e a subjetividade, com seu risco de encapsular o poeta no egotismo estéril. A superação dialética de tal dilema se faz com a conscientização de que o homem sozinho não existe na História, ele estará sempre em relação com seus semelhantes e dessemelhantes. Sua memória participa da memória coletiva, seu tempo é necessariamente o fio que o conduz, por entre rupturas, conflitos e pacificações, ao tempo compartilhado com os que viveram no passado, vivem no presente e viverão no futuro. Não há, portanto, absenteísmo ou alienação da vida social na literatura do poeta mineiro que se tornou capixaba. Ela procura o justo equilíbrio que torna o escritor um mediador, dilacerado talvez, nos dramas e comédias individuais e coletivos comunicados artisticamente pela linguagem verbal.
Os poemas “Procissão de São Benedito” e “O cais” são exemplares de tal feição poética, e, não sem razão, Elmo Elton os escolhe para figurar na coletânea por ele organizada. Em “O cais”, é evocada efetivamente a rua Cais de São Francisco, despojada de mar, “uma ruazinha” de onde se pode ver a paisagem da chamada Cidade Alta, de Vitória, inclusive “a torre branca da igreja de Santa Luzia, / tão cansadinha […]”. A evocação adquire um tom de singela e irônica crítica ao costume das autoridades brasileiras de mudar os nomes das ruas (e outros topônimos) para “homenagear todo mundo”, ou seja, os “ilustres” da terra, os circunstancialmente famosos, em detrimento dos nomes atribuídos pelas antigas populações que, com maior sinceridade ou propriedade, prestavam tributo a seus santos preferidos. A ironia é leve, a homenagem a São Francisco é terna e deve permanecer, “que ele também merece”.
Na história da capital do Espírito Santo o poeta escolhe o episódio do conflito entre os negros escravos, devotos de São Benedito, e “os senhores brancos que dominavam a ilha colonial” e proibiam a presença dos pretos na procissão do “santo negro irmão venerado”. Recriado na esfera da poesia, o acontecimento histórico tem ressaltado o caráter político, social e religioso que o determina, e, numa quase prosa intensificadora da consciência crítica da questão problematizada, são dramatizadas, em expressões coloquiais de um meio diálogo, a revolta e a dor dos devotos oprimidos.
O narrador conta, então, por meio de imagens metonímicas, sugerindo a fragmentação do corpo físico e do social dos escravos, como se fez o resgate do santo, num “assalto” à igreja de São Benedito, e a transferência da imagem para a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Os três versos finais, compactos e peremptórios, indicam a instalação da totalidade, com a posse material do objeto cultuado e a afirmação simbólica da fé da raça e sua força rebelde.[ 1 ]
A questão racial e seus desdobramentos funestos na história do Espírito Santo impulsionam a criação poética de Almada, tornam-se núcleo temático de poemas escritos em diferentes épocas e variadas dicções, na comprovação indiscutível de seu envolvimento nos problemas causados pelo desequilíbrio social e de seu conhecimento de nossa historiografia. Porém, acima de tudo, os textos que abordam a história coletiva revelam o poeta capaz de extrair dos fatos seu sumo essencial e comunicá-los ao leitor com as especificidades da linguagem versificada épico-lírica.
Também os acontecimentos da história pessoal de Roberto Almada transformam-se, com frequência, em matéria de poesia. Na antologia de 1973, “Neste retrato antigo” é o marco inicial do caminho que retoma o passado familiar. Os fantasmas da infância — o avô Tonico Leite, o pai militar, participante de revoluções legalistas — retornam ao presente do adulto para se constituir nos “restos” do eu lírico. O retrato antigo provoca, impressionisticamente, a lembrança dos ancestrais portugueses e a do avô materno, cuja “tristeza indolente” contagia o poeta, impregnando de nostalgia os versos largos e brancos que contam o esplendor e o fracasso do velho Leite Ribeiro, até a morte do “coitadinho” num hospício de Barbacena, para onde o levam suas últimas forças.
Outro fio que tece “os restos de mim” é a rememoração da farda do pai, morto na primeira infância do poeta. Guardada por tantos anos — tal como a farda paterna — a lembrança de haver assumido simbolicamente o lugar e o destino do pai, “vestindo escondido aquele estranho uniforme”, grande demais para o “menino soldado de uma guerra que nunca teve início nem fim” e, mesmo assim, ter-se sentido herói, merece cuidadosa leitura. A ambiguidade misteriosa que cercava as memórias e segredos de família gera, a nosso ver, a necessidade de recuperar o tempo remoto da infância, para se conhecer e se aceitar.
As polaridades do poema — riqueza/penúria, paz/guerra, grande/pequeno, oculto/exposto, fracasso/vitória, vida/morte — vincam fundo a história do eu poético que revisita o passado. Um ser humano igual a todos os outros, pois vive entre a plenitude e a carência, mas um ser especial, porque é poeta e transfigura a existência em versos: eis o possível núcleo da compreensão de si mesmo que fundamenta o poema “Neste retrato antigo”.
Esse autoconhecimento será essencial para a constituição do projeto humano e estético de Roberto Almada, que, mesmo quando trabalha as vertentes exacerbadamente individualistas da lírica, não perde de vista o sentido da universalidade que deve subjazer a toda experiência artística.
Um livro, um país e uma casa
Querer conhecer-se, saber de que é feito, mostrar-se frágil e forte num país estranho, que pode ser o mundo, a vida, o território das lembranças, uma fazenda absurda e encantada ou tantos outros espaços onde se constrói um homem e um poeta, o vassalo e o EI-Rey, o ser racional e o animal que nele habita: a realização de tal tarefa se impõe a Roberto Alrnada, em O país d’El Rey & A casa imaginária.
A reunião dos livros I e II em que se subdivide o título decorre da unidade existente entre eles e se percebe no fluxo de temas, conceitos, sentimentos e na linguagem culta e popular, depurada de todo o supérfluo, ordenada numa sintaxe adequada para evitar que a carga semântica não se derrame em excesso subjetivo.
Vinte e três poemas apenas numerados constituem O país d’El Rey. Eles provocam o prazer estético em função, inicialmente (se se pode separar o como se diz daquilo que se diz), da diversidade da elaboração formal:
— na estrofação: quadras ou quartetos, tercetos, sextinas, monósticos e dísticos;
— na metrificação: redondilhas maiores ou heptassílabos (predominantes), versos de uma sílaba, duas, quatro e seis (tomemos, como exemplo, o poema XIV), e ausência de esquema métrico regular (veja-se o poema XX);
— na organização rítmica: presença de cadência regular (1a. estrofe do poema X) ou ruptura rítmica decorrente do enjambement ou encadeamento (2a. estrofe do poema X);
— na estrutura das rimas: consoantes (concedo/ledo, lembrança/herança, aventuro/procuro, no poema III), toantes (preciso/rio, encantado/estrada, reprirnido/dia, reunido/grito, habito/ferida, no poema IV), graves (todas as anteriormente citadas), agudas (és/pés, chão/verão/exaustão, deter/prazer, tez/ vez, haver/amanhecer, no poema XIX), finais (todas as anteriormente citadas), encadeadas (floresço/cresço, no poema XV; seio/alheio, refaço/passo, no poema XVIII), pobres (tecendo/prendendo, gado/lado, beijo/desejo, no poema XXIII), ricas (peito/feito, nos poemas XVIII e XXII; fiquei/Rey, no poema XXIII).
A riqueza sonora integra e amplia o valor significativo dos versos, indissolúveis que são a forma e o conteúdo literários.
Além da persona lírica, habitam O país d’El Rey a fantasmagórica figura do velho que cose no “Umbral de porta e escada” o “mesmo beijo/da morte deste desejo” (poema XIII), e cuja sombra deve ser vista e seguida (poema XIV), a mãe, “solicitada para companhia, num dos mais belos momentos do livro”, no dizer de Valdo Motta, na primeira orelha da obra, e a companheira, porque sobre o peito dela, “vindo a noite o filho é feito./ Finda a morte nesse abraço” (poema XVIII).
Se a procura orientou a viagem rumo ao autoconhecimento, ela, porém, não basta (“Que procurar não é bastante”, poema VI). O eu lírico necessita completar-se (“Encontrar é que é o bastante./ Seja pois feito esse encontro.”, poema VIl).
No espaço-tempo recriado na palavra poética, domina, por certo, a persona lírica: híbrido de gente e bicho, de peito “cativo e livre”, paradoxal, imperfeito, para quem “toda noite é tempo”. Assim, ela considera o passado que lhe “coube por herança” como sua única posse (“Não tendo mais que o passado,/ é nele que me aventuro.”), sem, todavia, desconsiderar a terra, onde deve se procurar. Sendo a vida uma imposição, cabe a tal ser encontrar a si mesmo, dedicar-se ao cuidado “deste frágil território”, que é, enfim, ele mesmo — nascido, morto e ressuscitado.
Conhecido o país, nele deve ser edificada a casa que será habitada. O Livro II — A casa imaginária — tem como linha de força o conceito de construção. Pensando como João Cabral de Melo Neto, autor da epígrafe do Livro II e referência muito forte nos poemas de Almada, o poeta “atribui [ao] fazer poético a natureza de um ato de construção”.[ 2 ]
Entre o edifício e o poema instala-se a analogia resultante da função que os define: o edifício é a máquina de habitar (Le Corbusier), o poema é a máquina de comover.
A casa será, então, construída pelo poeta, que se sabe “um condutor de emoção”, e vai harmonizar modernidade e tradição, na convivência de dicções de diferentes épocas e origens, sem que perca a identidade própria — ela é a poesia de Roberto Almada.
O poema “A casa e como ela é” descreve a casa imaginária em sua visualidade geográfica, colocada numa paisagem onde se misturam elementos de Naturalismo e Modernismo (“Ali se engastalha / qual mênstruo-cicatriz- / mortalha”), Classicismo e Romantismo (“Vê-se-lhe o corte / lateral e a fronte / à morte.”), Simbolismo e Modernismo (“Longe um horizonte / pálido espalha // o que é vão e o que é triste. / Ela resiste. / Se obstina. // Amanhece / fenece / (ah vespertina!)”.)
Alguns dos topói clássicos da literatura ocidental compõem o tecido poético. O locus amoenus, por exemplo, é retomado em “Segunda edificação da casa”, “O mote” e “Poema final”, de CA, tal como o Ubi sunt? vai intensificar a nostalgia de “O sobrado” (DN). Esses elementos do Classicismo não estão nos textos apenas para enfeitá-los ou para evidenciar a erudição do autor, também não surgem aleatoriamente no discurso, como se capturados pela intuição privilegiada do poeta. Têm eles uma função a realizar, um efeito a produzir na textura dos versos. Do mesmo modo, o poeta usa a entonação bíblica para inserir a expressão poética na tradição dos textos sagrados, a exemplo de seu conterrâneo Murilo Mendes, em Tempo e eternidade.
Na “Primeira edificação da casa” ecoam as parábolas de Cristo: no propósito doutrinário, no emprego da segunda pessoa do plural, na ênfase do poder do amor como garantia de preservação e identificação do que o homem cria.
A formação católica de Roberto Almada, o seminarista, funciona ideologicamente em sua produção poética, porém, mais importante ainda, dá-lhe um instrumental de eficácia inestimável para o exercício da linguagem artística verbal — os recursos da Retórica e da Poética Clássicas.
Podemos tomar, por sua exemplaridade, o texto inicial de A casa imaginária, “Justificativa para o poema”. À luz da epígrafe cabralina, a casa não é contemplada “de fora”, e, sim, “por dentro”, pela percepção das pessoas que a habitam e que com ela se parecem. A semelhança entre o objeto não humano — casas — e os seres humanos ressalta pela combinação do símile com o paradoxo, na primeira estrofe.
Operando sobre o eixo da identidade e o da diferença, as estrofes seguintes desenvolvem o que parece justificar a existência do poema: ele é a casa da poesia, como as pessoas, os seres, também o são. Diríamos que ocorre uma poetização do dito filosófico de Heidegger: a palavra é a casa do ser.
Casa/pessoa/poema guardam “o que não foi consumido”, não como aqui dizemos, prosaicamente, mas na essência mágica que os sustém. Fica na memória aquilo que se esquece, no quarto — espaço de possível erotização — ficam “as coisas de que me farto”. A elipse, a metonímia, a metáfora conduzem a expressão reflexiva ao ponto máximo de rendimento poético. Forma e conteúdo são indissolúveis.
O que faz a diferença entre a casa e a pessoa — ser envolta por parede ou por pele — perde importância frente ao que as identifica: serem pó, que ao pó retornarão, ambas dissolvidas pelo tempo. A metáfora, que diz a verticalidade vital comum às duas, sugere a horizontalidade final da morte; a anáfora (chame/chame) acentua a semelhança com a ajuda da sonoridade repetida dos fonemas iniciais dos complementos verbais das frases confrontadas (parede/pele) e com a força da rima consoante (envolve/dissolve). Aprisionando seus segredos, as casas personificadas (prosopopéia) são, como as pessoas, prisioneiras do silêncio e do medo. A antítese encerra o jogo, a luta entre o igual e o diferente, o dito e o interdito, culminando a construção do poema, ao mesmo tempo em que fundamenta a seqüência prometida pela obra. Retrabalhando os dados da Poética, inovando, até quando o comparamos ao já pós-moderno, Roberto Almada cria variações surpreendentes, as quais não exibe como demonstração de virtuosismo, porque integra o novo como essencial à literariedade. Essa relação se estabelece nos poemas “O mote” e “Poema final”, uma renovação do procedimento da glosa de um mote, cujo efeito de estranhamento vale por uma observação metalingüística sobre o discurso poético tradicional e sua atualização. O paralelismo, em “O mote”, recurso largamente usado na poesia renascentista e na barroca, é transformado em reiterações ampliadas, no “Poema final’. Ambos os textos são compostos por imagens de refinada plasticidade. Reinaldo Santos Neves, romancista e poeta capixaba, ressalta o talento do autor de A casa imaginária quando pergunta, na apresentação de Daqui mesmo: 34 poetas: “Quem teve, como ele, o dom de, com versos curtos e límpidos e linguagem lacônica, condensar profundas reflexões humanísticas e alinhar imagens surpreendentes pela força plástica?“[ 3 ]
O leitor que atuar como co-autor da obra literária e a receber na multiplicidade de seus significados, conforme preconiza a Estética da Recepção, poderá ler “Roteiro para um poema” como um divisor de águas na seqüência dos vinte e três poemas de CI. Compreendendo a casa em termos metafóricos e sentindo complementado o processo da edificação — completude provisória, é claro — tal leitor encontrará no “Roteiro…” os passos a serem seguidos (ou que foram seguidos pelo poeta) para construir a casa.
Torna-se quase impossível não nos reportarmos à intertextualidade com “Procura da poesia”, de Carlos Drummond de Andrade, apesar de termos ouvido de Roberto Almada algumas queixas quanto à “idolatria” ao poeta de Itabira.
Podemos até ousar a hipótese de que “Roteiro para um poema” evoca e nega a orientação drummondiana, mais “técnica” ou “didática”, se confrontada ao lirismo sirnultaneamente elegíaco e vibrante de Almada.
Uma acurada observação faz Geraldo da Costa Matos a propósito de um provável erro de impressão no primeiro verso da última estrofe do poema em análise. Compulsando os originais do poeta, na pesquisa que ora desenvolve, o autor de A poesia A(I)mada encontrou o citado verso escrito: “Até que a aviste”, o que, parece-nos, é mais conforme ao desenvolvimento da caminhada rumo à casa imaginária.
Os poemas que se seguem ao “Roteiro…” constituem-se como detalhamento da existência-em-poesia, da estada no universo da criação poética, na complexa e variada gama de elementos que o integram. Dentre estes, destacam-se a árvore, “metáfora perfeita do homem contemporâneo […] condenado à existência fragmentada, isolada […], o homem como uma colcha de conflitos que não se resolvem senão pela re-ligação com sua essência e alteridade”, segundo a palavra de Valdo Motta, agora na segunda orelha do livro, e a Amada, vinda do lugar do sonho, “imaginária e mulher”, visão romântica e simbólica. Por si mesma edificada, em voz e silêncio ela erige o erotismo e seus dilemas como valor iniludível na vida humana, o poder maior que a morte.
Se muito nos alongamos na leitura de O país d’El Rey & A casa imaginária, isto se deve à importância do livro de estréia de Roberto Almada para o conjunto da obra e por sua rica complexidade e beleza.
Nudez: revelação da vida e da morte
O segundo livro de Roberto Almada instiga o leitor a partir do próprio título: o que seria uma dissertação em verso? Como se fará a fusão de um tipo de composição eminentemente prosaica e a forma versificada na abordagem do erotismo sugerido no título? De que potencialidades se valerá o poeta para concretizar a superação desse desacordo?
Na entrevista concedida a Luiz Tadeu Teixeira, em A Gazeta, de 23 de fevereiro de 1992, Almada afirma que Dissertação sobre o nu é um livro amplo e variado, ao que podemos acrescentar: e, por conta disso, oferece não só uma original reunião de tratamentos de temas diversificados, mas também a confirmação das qualidades vistas nos textos que o precederam e a conquista de novos territórios estético-literários.
Em seu discurso de posse na Academia Espírito-santense de Letras, em 1996, Ester Abreu Vieira de Oliveira, que sucedeu a Almada na cadeira no 27, aponta a tensão fundamental de DN: o conflito entre o impulso da vida e o impulso da morte, com a a vitória de Tanatos sobre Eros.
Na orelha do mesmo livro, também esboçamos uma visada crítica sobre esse conflito essencial da existência humana, quando dizemos: “Do outro lado do amor erótico e em oposição ao esplendor da nudez está a morte, rígida e implacável, exigindo cobrir-se o corpo com mortalha e terra, ocultamento final da força criativa da vida. […]. O eterno combate entre Eros e Tanatos se trava neste livro de Roberto Almada no campo da emoção poética e se expressa numa linguagem onde ressoam vozes de outros que se ocuparam do mesmo grande tema ancestral.”
O poema-título nos diz que o nu, objeto da dissertação, são os nus: o da face, que a roupa não oculta; o das nádegas, ocasionalmente exposto pelo contratempo de um vento mal soprado, esse “nu interior”, a despertar o impudico desejo do sátiro; o nu do ritual amoroso, não cômico, mas dramático, na mescla desordenada dos corpos desfeitos na batalha erótica, e o nu da fome, inominado no vazio da mesa, do prato e da boca. A linguagem dos quartetos, desnuda de pompa e didatismo, é consubstancial à originalidade do tema e inclui o leitor — “É o nu de nossas faces […]” na menção aos que não ocultam sob as vestes adjetivas a substantividade da nudez canhestra, esquisita, de sua verdade sob a aparência.
Desvelar, desnudar, descobrir as múltiplas dimensões do homem e de sua existência: consiste nisto uma das funções da poesia. Em DN, esta função se cumpre por meio de “séries temáticas estendendo-se de poema a poema”, procedimento composicional apontado por Benedito Nunes no estudo da obra de João Cabral de Melo Neto por nós referido anteriormente.
Os mistérios familiares, sentidos como origem primeira dos traumas existenciais nos poemas publicados nas antologias de 1973 e 1974, reaparecem na republicação em livro, acrescidos de “O sobrado”, “Elogio barroco à lembrança de Sinhá Leite Ribeiro” e “Sala antiga”.
A série temática da História do Espírito Santo — “Procissão de São Benedito”, “Balada dos negros em Pendi-Yuca” e “Réquiem para a Matriz de São José em Queimado” — dá aos fatos históricos interpretação pessoal e valoração ideológica, numa estratégia de texto com propósitos diversos daqueles da História oficial. Ficcionalizados poeticamente, os eventos reais deixam de ter a frieza do registro histórico, principalmente a dos compêndios escolares, para serem contados em linguagem afetiva, recriadora da história dos oprimidos, com a qual a Literatura cria vínculos novos e iluminadores.
O “Réquiem…” traz o lamento do poeta pela má sorte dos negros rebelados devido à traição que lhes fez o frei Gregório de Bene, obrigando-os a trabalhar na construção da Matriz de São José, em Queimado, município da Serra, ES, em troca de uma alforria que jamais lhes poderia dar. Reza o poema o réquiem em memória dos negros batidos pela derrota da rebelião, em 1848, enquanto lamenta, na superfície textual, a destruição da Matriz pelo tempo, que pagou na mesma moeda tanto o bem quanto o mal.
A “Balada dos negros em Pendi-Yuca” amplia a transfiguração poética dos fatos históricos, ao relatar a fuga desordenada dos escravos rebeldes perseguidos pelos brancos. Debandando das margens do regato Pendi-Yuca, nas terras do distrito de Queimado, correm na noite de trevas e presságios, buscam um porto seguro, onde estejam a salvo das negras tenazes da morte.
Intensifica-se a posição libertária do poeta. Ele acentua a crueldade dos perseguidores, comandados pelo alferes Varela, “com suas lanças de fogo”. Os fugitivos têm “À frente o negro Elisário [sic] / com suas pernas de alce.” Os dísticos da balada popular contam a história fantástica da debandada, intercalados pelos refrães, também setessílabos, que marcam o compasso da derrota inexorável dos escravos ludibriados: “Vão os negros, vão-se em fuga / nos campos de Pendi-Yuca” e “Nos campos de Pendi-Yuca / vão-se os negros, vão-se em fuga.”
A “Procissão de São Benedito” é explícita na colocação do problema secular da desigualdade social decorrente da opressão sobre uma etnia, política e economicamente desfavorecida. Aqui, o cenário é urbano — a Vitória colonial do século XIX —, repetem-se, intensificados, os conflitos sociais envoltos pela exploração da religiosidade dos negros, reitera-se a capacidade de luta que os sustenta. A luta que travam pela imagem do padroeiro da raça não se dissocia do combate pela liberdade, e a vitória que conseguem é material e simbólica. A importância e a beleza do triunfo é garantida pela permanência, “para sempre”, da imagem do santo na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Em outra série temática reúnem-se os poemas vinculados à cultura espanhola, particularmente à literatura que ela produz. Só mais tarde surgirá a paisagem de Maiorca como tema exponencial da morte da Amada. “Suave elegia a Juan Ramón Jiménez” é uma homenagem ao grande lírico de Espanha, plácida e comovente, contendo o apelo para ser levado por Jiménez para o mundo de paz, aonde o levaram suas asas de anjo poético.
Já em “O vinho e o sangue”, Almada invoca la sangre como paradigma da hispanidad. E alude aos poetas mártires e é de Lorca que ele fala e de quem cita versos de “Muerte de Antoñito, el Camborio” —, com seu sangue derramado na terra espanhola pela causa da democracia. O poema invoca, também, D. Luís de Góngora, na enumeração abundante de elementos heterogêneos e no barroquismo da violenta ruptura sintática do hipérbato, da elipse e da zeugma, estranha e hermética na estrofe final do poema.
Murilo Mendes, no livro Tempo espanhol, capta esse “quadro amplo e conflituoso de uma civilização em sua estrutura de tensões sucessivas, que se ajustam, porém, numa estreita comunidade” de aspereza, rigor, lucidez, densidade, monumentalidade [e] tragicidade épica”, conforme analisa Laís Corrêa de Araújo.[ 4 ]
A influência de Espanha ocorre, ainda, via João Cabral, na antilira de poemas como, por exemplo, “A equilibrista nua”, intertextualmente ligada aos “Estudos para uma bailadora andaluza”, do livro Quaderna.
O erotismo, problematizado crescentemente pela relação com a impiedade do tempo e a inevitabilidade da morte, determina a última série temática de que nos ocuparemos. Dos numerosos textos eróticos, preferimos destacar “Poema erótico”, “O dedo”, “Boca rubra e silenciosa”, “A cavalgada”, “Os frutos da carne” e “Retrato da Amada”. Em sua maioria, alucinantes e arrebatados, esses poemas podem ser intensamente sensuais e sexuais — “Todos os sentidos estão despertos no poeta. […] Ele é o possuidor do erotismo”, observa Ester A. Vieira de Oliveira, no discurso aqui citado —, ou podem ser elaborados na contenção da paixão, sublimada na pureza do amor, da ternura, da saudade. Sempre presente neles, a Amada. Presente como “corpo ardente por onde a mão do eu lírico desliza”, ainda conforme a acadêmica e poeta Ester Vieira, presente como lembrança, orficamente resgatada à morte pelo poder da poesia.
No combate entre Eros e Tanatos, a poesia funciona como a via de superação da derrota da energia vital, torna-se o lugar da pacificação. Por meio dela, o poeta reencontra a Amada e, em seus “braços de seda; de seda não, de sonho”, retorna à origem de toda a bem-aventurança.
Em contraste com livro anterior, Elegia de Maiorca é caracterizado pela centralização numa única ordenação estrófica — o dístico — e pela exclusividade do tema — a morte da mulher amada. São características da elegia, o poema da lamentação de uma perda, da exposição dos sentimentos provocados por uma irreparável carência, e que se realiza, com frequência, em estrofes de dois versos, cuja métrica e cujo ritmo contribuem para aumentar a sugestão de dor e tristeza.
Assevera Fausto Cunha, no prefácio aos Melhores poemas de Mario Quintana, que “as elegias […] só resistem quando um pouco mais do que o talento as legitima”.[ 5 ]
A análise feita pelo poeta Carlos Nejar, apresentando o livro de Roberto Almada de que nos ocupamos agora, ultrapassa a formalidade dos prefácios e mergulha na composição dos poemas com a sensibilidade e o domínio do ofício de quem também é um mestre da palavra poética. Para Nejar, EM é uma sinfonia, é emblemática da produção do poeta que soube acrescentar à elegia mais do que o talento pois aliou emoção e revestimento técnico, criando uma obra universal, apaixonada e dolorosa.
No poema 3, a identificação da natureza com o humano tem a qualidade do feito poético definitivo: as águas, os ventos, os oceanos, as montanhas, tudo compartilha o sofrimento do homem e chora junto com ele a mágoa dos amantes para sempre afastados um do outro.
O poema 4 se inicia com imagens visuais, olfativas e tácteis, favorecendo a passagem do mundo exterior para a interioridade do eu lírico, esvaziado pela partida sem retorno da Amada. O passado se presentifica, os movimentos e a voz da Amada são recapturados na fala poética. O desenlace aparta o olhar da Amada que se vai, e, na ânsia final, se esvai nos braços do poeta.
O ritmo varia, os versos curtos se alternam com os mais longos, criando sonoramente rupturas como as que desagregam a vida.
Algo de teatral existe nessa morte, algo de música e de dança, aos poucos se extinguindo, até a imobilidade e o silêncio absolutos (poema 5).
O tempo inexorável segue alheio ao fluir da imensa dor humana. A cena obsedante retorna, repetida nos versos sem metáforas do poema 9. Severos e concisos, intensificam a tragédia.
Como se houvesse atingido o máximo suportável do sofrimento, o eu lírico torna-se mais plácido e se alimenta de lembranças e da esperança no reencontro, no poema 18, onde o amor pela Amada se torna fraternal e apaziguado.
Situados no tempo — um outubro de manhãs já findas —, os dois últimos poemas (19 e 20) concluem o movimento final da sinfonia. Fecha-se o círculo, cobre-se o quadro, recolhe-se a paleta, esgota-se o espólio do bem-querer.
Nas águas malsãs espalhou-se o sangue rubro da Amada, infeliz coincidência a confirmar a intuição do paradigma da Espanha, na tarde maiorquina.
Clássica e solene, Elegia de Maiorca é o processo da lenta absorção da perda. O que virá depois dela?
O silêncio sobre si mesmo, a fala das coisas.
Segue-se, em 1992, O livro das coisas. Afirmara Nejar, no prefácio a DN: “Ao mineiro desagrada a grandiloqüência.” Almada, mineiro e poeta, bem o demonstra, em LC, no discurso sucinto dos vinte e cinco sonetos de sua última obra publicada em vida.
A forma fixa, cultivada por Petrarca e Camões, é objeto de inovações revitalizadoras, libertando metros e ritmos para adequar-se às necessidades expressivas do poeta moderno.
Aplicando-se ao conhecimento do fazer poético, Roberto Almada declara aquilo que, além da simplicidade, agrada ao poeta. São poemas em que ressalta o propósito metalinguístico, a busca do modo de ser da palavra poética, a compreensão do funcionamento da “máquina de comover”. O rigor da construção, a clareza e o comedimento dos versos aproximam-nos da antilira cabralina, sem que se torne o lúcido zelo uma obsessão castradora da beleza.
Almada visa a deixar falar as coisas, as figuras das coisas “que significam outras coisas”, desvelando a construção da linguagem do poema, segundo a inclinação para a reflexão filosófica e para as considerações sobre o ofício a que se dedica, conforme a epígrafe de Francis Bacon e a dedicatória a Italo Calvino muito esclarecem.
O “Soneto da finitude” principia a definição do ideário estético do eu lírico ao revelar o valor dado ao “bom e breve”, à permanência do aparentemente finito, mas que aquece e ilumina sem sua provisoriedade. Segue-se a oposição entre a vida (e o ilusório gozo do corpo) e a alma, que, pálida, desfalece. Ecos da metafísica rilkeana soam nesse elogio da finitude, contaminados pela secura severa da objetividade cabralina. Assim é a poesia de Almada: um ambíguo e paradoxal jogo de máscaras, de sobreposições e alternâncias, regido não pela absoluta coerência, mas pelo ir e vir das diferentes possibilidades que o momento oferece para a elaboração da tessitura do verbo artístico.
O “Soneto da brevidade” recupera o verso inicial do “Soneto da finitude”. Altera, porém, a ordem dos adjetivos definidores do gosto do poeta: “Agrada ao poeta o que é breve e bom!’ Dizendo ao leitor — Atenção, este é outro poema! —, Almada altera também a estrutura métrica, multiplica os encadeamentos e, com isso, balanceia o ritmo com síncopes inesperadas, faz do verbo um substantivo e elogia o prazer calmo do riso, da boa sombra, do sonho entrevisto, da troca luminosa de olhares “de quem ama para quem ama”.
É outro tom, são outros temas, mesmo que não faltem diálogos intra e intertextuais com obras de épocas e situações diferentes. A preocupação com o ser poético, sua linguagem, seus compromissos éticos e estéticos completam ou substituem as inquietações amorosas do livro imediatamente anterior. O aprofundamento no fazer poético é o objetivo a conseguir, até mesmo como exigência do espírito exaurido pela dor.
Unidade e variedade podem ser identificadas como o eixo composicional da seqüência dos poemas: as polaridades — inexatitude (a água) x exatitude (a morte) — norteiam alguns sonetos já a partir do título, mas em outros, como no “Soneto da sabedoria”, as oposições internas não são explicitadas no lugar privilegiado do título; o tom vai da moderada crítica ao comportamento das pessoas (“Soneto do encontro”) à ponderação judiciosa do ensinamento para a vida (“Soneto da busca” e “Soneto da prudência”), da fina ironia (“Soneto da utilidade”) à reflexão pesarosa sobre a solidão (“Soneto do abandono”); o estilo pode ter o despojamento lúcido de João Cabral (“Soneto da enunciação”) ou o preciosismo barroco de Murilo (“Soneto do desejo”). A figuração das coisas unifica tais variações, sem deixar que se instale o caos no cosmo da poesia.
Se o “Soneto da leveza” completa o grupo dos que expressam aquilo que agrada ao poeta, o “Soneto do agradecimento” complementa aquele que “ensina” a diligência, o valor da liberdade e da fé que alimenta (“Soneto do ensinamento”). Iniciados pela mesma estrofe, traçam um metafórico roteiro para a vida por meio de conselhos não impositivos oferecidos ao Outro e a si mesmo. O soneto final fecha a estrofe e O livro das coisas com a resposta ao “Obrigado” não formulado, porém mais do que audível em seu ocultamento silencioso. O poeta diz: “De nada.”
Cortesmente Roberto Almada se despede, no último verso do último livro seu que viu publicado. Cada leitor, a revitalizar os poemas no ato da leitura, dirá, sonora e comovidamente: Obrigado, poeta.
Da poesia como doença e cura
Quando o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo publicou, em 1997, a Coleção Almeida Cousin, nela incluiu O doente disfarçado e outros poemas, de Roberto Almada, com preâmbulo, seleção de textos e organização de Geraldo da Costa Matos. Mais do que uma homenagem ao poeta mineiro/capixaba recentemente falecido, o livro consiste numa importante contribuição para o reencontro do público leitor com a poesia almadina.
Difícil se torna a leitura analítica da obra póstuma, principalmente quando ainda não foi submetida ao crivo da edição crítica. Confiamos, todavia, na competência do Prof. Geraldo Matos, autor da pesquisa e seleção dos inéditos (e dos já publicados) poemas de Almada reunidos em DD.
Está dividida em dois livros (ou momentos) a obra editada post-mortem: “O doente disfarçado” e “Outros poemas”.
O poema “A casa habita em mim com as suas verdes lembranças” motivou a inquietação do analista quando deparou com um procedimento inusitado na obra de Roberto Almada: a junção de prosa poética com o texto versificado. Os três parágrafos iniciais têm a feição da crônica lírica, com alusões a Adélia Prado e a uma casa “de Teixeiras”, em cuja varanda “um cactos [sic] solitário prenunciava”, com um simbólico e lorquiano verde, as penas que viriam.
Gradualmente, a linguagem se move da prosa para o verso, trazendo as verdes lembranças “imersas em mim como, [sic] algas em oceanos de profundas correntezas”. Sons de passos peIas aléias e a sonata ao piano vão musicando o mundo recuperado pela memória. Um “quiosque e sob ele o poço, poro da terra” favorecem o mergulho na sombra de lembranças e medos que afluíam, no nível do enunciado, e afluem na enunciação do poema.
Tudo o que se perdeu, numerosamente evocado, inclui as casas, o quintal e o “nunca acabar de verdes floresceres”, uma flora doméstica e brasileira, nomeada sem cientificidade; apenas a memória afetiva acrescenta uma designação pessoal para as “margaridinhas que chamávamos paquerretes”. Envolvidos no cenário verdelírico, os corpos se consomem “entre lençóis e sombras”.
“Domingo de tarde” é um poema que aparece em duas versões — a segunda nos “Outros poemas” —, com mudanças na disposição gráfica dos versos e dois trechos em prosa poética, o segundo dos quais inexistente na primeira versão, contendo, ambos, o procedimento (concretista?) de grafar letras ou sílabas de palavras em sucessão vertical ou “em degraus”.
Na primeira versão — o poema 15, de DD —, a narração e a descrição situam o personagem — o menino torcedor do Flamengo — no estádio, assemelhado aos deuses da arena e que exerce, judiciosamente, “a sua posse”. Há sonho, gentileza, timidez e determinação nesse menino, sentado “como um cruzado junto a uma multidão de braços.”
A evolução das imagens tem a ver com a linguagem cinematográfica, com planos gerais, closes e, alargando mais o horizonte interpretativo, até um travelling lateral, acompanhado pela trilha sonora dos tambores que fazem pulsar, em síncope, os músculos do menino.
Os “onze anjos de sonho” adentram o gramado e são heróis míticos, exaltando o entusiasmo dos torcedores, como se expressa o narrador, em bela combinação de metáfora e metonímia: “Agora explode o estádio e se multiplica o ímpeto.” Transforma-se o cenário em local da cerimônia ritual da saudação ao público e o poeta repete a expressão “É um louvor a Deus”, ligando, pode-se dizer religiosamente, o campo, os “ídolos / de pé ante o seu povo”, o menino, o estandarte vermelho e negro, o grito flamengo “orgulho da / multidão em êxtase”.
Repete-se, como fecho, o conjunto de versos de tonalidade lírica que falam da emoção compartilhada pelas raças irmanadas na suavidade do beijo no estandarte rubro-negro, o negro humanizado, com a pele desenhada pela “doçura dessa bênção, e desse tormento”.
Raras vezes a poesia de Roberto Almada alcançou tão alto grau de encantamento como nesse poema, que alia o atual ao ancestral, o individual ao coletivo, a paixão pelo esporte e o amor paternal.
“Infância mineira I” e “Infância mineira II” retomam o filão da saga familiar, cruzando intratextualmente falas de outros poemas de Roberto Almada, transmudando as lembranças dolorosas em íntimos diálogos com parentes e santos — a tia magrinha, cujo nome se perdeu na desmemória, e o São Francisco “da ruazinha onde nasci e / não me criei”.
Os versos livres e brancos, “desarrumados” em estrofes nada clássicas, confirmam a versatilidade do poeta no trânsito das formas e temáticas que percorre. Voltado para dentro de si e aberto para o mundo exterior que nele se reflete, o portador da voz lírica exclama, recorda, interroga. Ele se exime da culpa por aquilo que esqueceu e das brincadeiras infantis não gozadas. O tempo é o responsável, diz o texto. Não há como não desculpar seu autor.
Com o “Soneto II”, Roberto retoma a mais cultuada forma fixa da poesia anterior ao Modernismo e até hoje prestigiada por seu harmonioso sistema estrófico, que possibilita a apresentação, o desenvolvimento e a conclusão do assunto do poema.
As dificuldades da leitura de uma obra póstuma aqui se colocam com maior evidência. Teria sido desatenção do autor usar a inicial minúscula no começo do segundo verso do primeiro quarteto, quando o verso anterior termina por ponto, ou ocorreu erro de impressão? Mais difícil fica a resposta quando se observa a repetição do problema no segundo quarteto. Agrava-se a preocupação do analista ao encontrar a inicial maiúscula no segundo verso do primeiro terceto, no qual o primeiro verso termina sem sinal de pontuação. Volta a minúscula no começo do terceiro verso do primeiro terceto, violentando a pontuação interrogativa no final do verso anterior.
Esses problemas podem comprometer a integridade do poema, não porque seja inaceitável a ruptura das normas da gramática (il va sans dire), e, sim, porque talvez traiam o propósito expressivo de Almada.
Fica em suspenso o total prazer estético diante desses senões. Pode-se pensar se outros não teriam acontecido na transcrição dos versos que não realizam a medida do decassílabo — o metro predominante no texto —, o que resultaria na quebra do ritmo sustentado pelo metro.
Apesar disso, há que reconhecer a beleza do tema tratado no “Soneto II” — o amor como essência individualizadora do ser — e esperar a conclusão da pesquisa dos inéditos, trabalho que muito poderá garantir a forma autêntica destes e de outros textos não publicados do autor de O doente disfarçado e outros poemas.
“A compaixão segundo Pânfilo Sasso”, o primeiro dos “Outros poemas”, vale como exercício técnico de disseminação de confrontos entre seres animais e naturais, resolvendo-se com a submissão de um deles ao antagonista. Diverso, porém, é o resultado do confronto entre o eu lírico e o “coração vazio de toda a doçura.”
Incapaz de, “com o tempo”, levar-lhe a compaixão, isto é, destituí-lo do orgulho e da crueldade, o poeta afirma, no dístico final, onde recolhe os elementos disseminados, que tal coração supera a selvageria dos animais e a dureza das pedras.
Para concluir esta leitura dos poemas de Almada aqui reunidos, escolhemos “O tempo”, texto extremamente original pela estruturação poemática, no qual a sonoridade modula a carga semântica produzindo efeitos incomuns.
O tempo é animizado, um “feroz tirano” que inflige ao poeta “todo desengano”. A paráfrase em prosa do poema lhe reduz, em muito, a qualidade estética. Apenas a leitura expressiva, em voz alta, revela a totalidade da perfeição do jogo de sons e significados que o constitui.
Menos importa o conceito de tempo que a ressonância dele na interioridade lírica. As rimas emparelhadas no fim dos versos da primeira estrofe traduzem a complexidade da relação desigual — tal como é a extensão dos versos. A construção sintática do verso “Do que vale me atormente?” causa maior estranheza em razão da proximidade com o simples padrão sonoro da rima consoante e a regularidade sintática dos versos que completam a segunda estrofe.
Uma consideração generalizante sobre o tempo — “é qualquer desvario” — faz outra vez contrastar a normalidade da ordenação sintática com a imprevisibilidade semântica do predicativo do sujeito. A função lúdica cumprida pela sonora troca de risos — desvario, rio-me, ri-se — contrasta, por fim, com a gravidade da função cognitiva da linguagem. O desprezo do tempo para com a fala poética filtra-se por entre as malhas do rico ambíguo jogo verbal do último verso.
Referências bibliográficas
ALMADA, Roberto. O país d’El Rey & A casa imaginária. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida/UFES, 1986.
___.Dissertação sobre o nu. Vitória: Prosa e Verso Ed., 1990.
___.Elegia de Maiorca. São Paulo: Massao Ohno Ed., 1991.
___.O livro das coisas. São Paulo: Massao Ohno Ed., 1992.
___.O doente disfarçado e outros poemas. Vitória: Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1997.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
CAMPOS, Geir. Pequeno dicionário de arte poética. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1978.
MATOS, Geraldo da Costa. A poesia a(l)mada. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1997.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 4. ed São Paulo: Cultrix, 1985.
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1971.
OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira de. Discurso de posse. Discurso proferido na Academia Espírito-santense de Letras, Vitória, 30 de maio de 1996.
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NOTAS
[In De folhas versadas Roberto Almada: vida e obra, Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, Prefeitura Municipal de Vitória, 1998, p. 21-40. Não foram transcritas as partes do estudo referentes à obra de Roberto Almada como cronista, contista e crítico literário.]
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Deny Gomes nasceu em São Luís-MA, em 1938, e desde a infância vive no Espírito Santo, em Vitória, cidade que considera como sua terra natal. Licenciada em Letras Neolatinas, pela PUC/RJ (1959), foi professora titular de Teoria da Literatura, na Ufes, por mais de vinte anos. Autora de diversas obras literárias e de crítica literária.
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