Dizem que foi há muito tempo.
Numa dessas manhãs ela chegou, ela de quem nunca se soube o nome. Ficou chamada assim, a uma, a que nem de parecer parecia que nome tivesse. A estrada serpentuosa que transcende a rocha vinha de muito longe, uma serpente árida coberta de cascalho, e pouca gente trazia. Os forasteiros chegavam de burro, carroça ou a pé. Essa uma, de barriga, que o olhar dos ociosos é sempre claro e preciso e essa gente, no mais das vezes, nada tem a fazer senão observar, chegou andando, diriam uns que rastejando, uma chaga poeirenta, um bicho esquisito e curioso de pés feridos no mau cascalho da estrada rota. Foi uma novidade de ajuntar gente que por pouco não se acercou de um festejo medonho.
O traste andejou com visível dificuldade por casa dum e doutro, dizem que pedindo informações a respeito da localização — o que foi motivo de espanto geral — do senhor Coronel Teófilo Veira, arrimo da oligarquia dos Veira, um dos primazes que, a custo de baixos golpes e boa violência, impôs seu reinado sobre nós. Recebeu muita porta na cara essa uma, mas quedou, já por fim, dias e dias nos da frente do antigo casarão dos Veira, mal segura se era mesmo ali, um bicho tomado de instinto e feminis razões, que mulher é de ser impenetrável em suas relações com secretos saberes. Nada sabemos das certezas. O fato começou por causar certo mal-estar nos populares, que todos eram afeitos aos serviços do bom Coronel Veira, homem de grandes mãos e olhar parado de nem com vento forte arrefecer.
A porta do Coronel Veira sempre fechada, nem vulto nos janelões, o casarão dos Veira, que, segundo consta, tem hoje pra mais de cem anos, uma geleira de silêncio suspeito. E a mulher lá, inamovível feito posta pedra. Nos modos secretos dessa gente o fato já roeria, por certo, a inquietação. É possível que a uns e a outros a situação ensejasse essa piedade calada que assalta os fracos. Mas, segundo consta, nenhum dos do povo lançou mão de alguma misericórdia e ofereceu à pobre mulher um pouco de água ou um naco de carne salgada com que entreter a fome. Ela nem a ninguém lançava um olhar de comiseração por si própria, muito senhora de seus quereres. Era aquele olhar frio, nevoento, tão típico dos obstinados, dos que têm a alma em fogo.
Muito se terá então lembrado em alguma dessas rodas de cachaça, ofício de alegrar o coração aos estropiados, os maus costumes do generoso senhor Coronel. Consta que ele era afeito à imundícia, um ou outro mais exaltado pelos humores benéficos de excelente pinga costumava comparar suas semelhanças de rapina com a rapina dos urubus, o Coronel tinha desejos lúbricos que lhe viravam a cabeça pelas desamparadas das estradas desertas. Há notícia de muita senhora de bom respeito, vinda de algum eito com suas típicas sujices de quem o dia inteiro, debaixo de sol escaldante, labutou no cabo de enxada, haver entranhado esbaforida pelo mata-burro à simples visão do Coronel montado em seu burrão Colosso, comparsa das safadices, espectador fraudulento. Por via das dúvidas era de boa prática evitar os maus costumes do senhor Coronel, contra os quais nada se podia senão abrir as pernas e deixar. Há vaga informação dando conta de que o Coronel teria apanhado na estrada uma tal Zefa e se regalado com suas carnes de boa e generosa crioula que tudo deixa abrindo as pernas na sem-cerimônia, até gostando do bem-bom do Coronel. O homem da Zefa, que o nome nunca se disse, teria metido no peito, com as próprias mãos, um punhal enferrujado, desgozoso com o caso. Não era, pois, de mau alvitre embrenhar o mata-burro quando ele aparecesse nas estradas ermas. De qualquer maneira o mau costume é tido como certo e havido na biografia do generoso homem.
— Há que ter-se seus defeitos, mesmo homem tão santo.
E vendo-se lá a pobre mulher, posta de barriga na frente do casarão dos Veira, não era difícil cogitar das práticas do Coronel contra a uma. Certamente ele a teria apanhado nas estradas e exercido com ela seus misteres de imundo coito. Se assim não fora, quem é que havia de explicar aquilo, a mulher lá posta, um monte insignificante de gente, tirando a cara do Coronel da rua, o Coronel enfurnado dentro de casa que nem galinha no choco?
— Que outra explicação me dão a isso de?
— O Coronel lá dentro de casa? O homem não é disso, aquilo é homem de boa forja, não é de se esconder de mulher não.
— Sei não, sei de nada.
Dizem que Dona Cininha, mulher do Coronel, a que sempre muito piedosa ia todos os dias à igrejinha contar seu terço, e que nesses dias tenebrosos não foi, tinha vergonha dos maus costumes do esposo. Impotente, é de crer-se que sua revolta íntima, de tão miúda, traduziu-se em misericórdia levada por seus lábios muito finos e trêmulos aos ouvidos de todos os santos do altar. Esses, sempre muito ciosos de suas tarefas, terão feito má figura diante da devota, que nada se conseguiu em desfavor dos costumes alcoviteiros do Coronel. E agora aquela mulher lá na frente da casa limpa dos Veira rogando sabe-se lá que silenciosas pragas contra a família com seu incômodo silêncio de pedra, uma pedra enorme dentro do sapato. Grande comoção houve de a todos causar a tortura íntima de Dona Cininha, aquela espécie de santa. Três dias se passaram e aquela pedra lá, inamovível, fechados os janelões e portas dos Veira num silêncio estranho e suspeito, de incompreensíveis outrossins.
Na manhã do quarto dia, dizem que bem cedo, o rosto muito fino e pálido de Dona Cininha teria aparecido, num dos janelões, disfarçado entre propícias cortinas. O fato é que ninguém soube dar certezas, que ninguém ali era de dar certezas de nada, principalmente das atitudes dos Veira. Mas naquela mesma manhã, pouco depois da suposta aparição — uns dizem que sim, outros dizem que não —, o negro Alcibíades, conduzindo boas mulas, bem fardadas com grandes fardos de matalotagem enroladas em sacos brancos, encaminhou-se em direção à uma. Negro Alcibíades, ao que consta, era o criado preferido de Dona Cininha, de regalias ter, muito útil, pois, a certos favores. A pobre mulher não ofereceu nenhuma resistência, e nem poderia. Certamente a caminhada naquelas estradas áridas de cascalho mais a obsedação no defronte do casarão dos Veira lhe haviam retirado plenamente qualquer possibilidade de manifestação física. Negro Alcibíades, com a dureza de hábitos que lhe era natural, tomou o traste e o dependurou no lombo de mula, e já montado, sem olhar para trás nem uma vez, deu partida ao trote de quatro mulas, uma com ele, outra com a pobre mulher e as demais conduzindo fardos cujo conteúdo, a princípio suspeitado — que grandes eram as piedades de Dona Cininha, de boas obras de transpor fronteiras —, mais tarde veio a saber serem o necessário a alguns bons dias de sobrevivência.
O vilarejo voltava, pois, à vida comum. O povo, se esperava desfecho trágico em virtude de conhecer a rija têmpera do Coronel, que em dar ordens a seus cupinchas era de excelente qualidade, rapidamente acostumou-se ao bom desfecho que por ora houvera tido o caso, afeito a transferir para o futuro seu desejo de sangue. Melhor mesmo era assim que o Coronel não tivesse desgosto ainda maior do que o que certamente já tinha com a imponência abstida da uma na frente do casarão, posta de calada certeza.
— Um homem tão bom.
— Então.
Com que alegria não viram o bom Coronel Teófilo Veira, muito embora trazendo os muito vermelhos olhos de quem labutou em malgrada insônia, aparecer pouco antes do meio-dia montado no fiel burrão Colosso, sair trafegando, ainda que semelhando meia murchez, pelas nossas ruas. E com que alívio quedaram quando, à tardinha, Dona Cininha, empunhando um terço e o olhar piedoso, foi vista se dirigindo à igrejinha, certamente para oscular os pés dos seus santos por haverem propiciado tão bom desfecho a tão estranho caso. E se piedade lhe sobrasse, rezar pelos bons pensamentos de seu sofrido povo, que tão boa vontade tinha.
* * *
A viagem do negro Alcibíades mais a pobre mulher permaneceu uma incógnita por vários dias, quatro ou cinco, pouco mais pouco menos. O negro, conhecido pelas suas reticências lá dele, de pouco misturar-se à corja, nem com um olhar de seus silentes olhos dava à curiosidade do populacho alguma confiança. Sentado no defronte do casarão dos Veira, fumando seus longos e intermináveis cigarros de pico, notícia sobre o caso é que não ia dar não, que todos o conheciam.
Afinal soube-se que a pobre criatura havia sido instalada numa tapera no lugar conhecido por Tronqueira, em boa e legítima terra dos Veira, a umas três ou mais seguras léguas do nosso vilarejo entre montanhas e flores — estas, a bem da verdade, um tanto quanto estéreis e murchas.
— É que em tronqueira cachorro não passa não.
O Coronel Veira, homem de boa justiça e nobilíssimo caráter, esse trafegava sua imponência patriarcal pelas ruas do vilarejo, sempre em companhia e lombo do fiel Colosso. Se o insucesso o havia afetado, certamente não o deu a mostrar a ninguém. Os mesmos trejeitos de grandeza e a saudável manutenção do olhar paternal ao querido povo que engordava de dia o colchão em que dormia à noite. Todos, afinal, podiam contar com os favores e a incontestável generosidade do Coronel, desde que bons braços oferecessem de aval.
— Não viram o caso da uma?
— Exemplo de boa vontade.
Dona Cininha, essa pôde voltar com freqüência à boa igrejinha para orar pelos pobres e pedir que seus bons santinhos obrassem no firmamento pela incorruptível honra dos Veira, tão bem alicerçada pelos anos e anos.
Quinzenalmente, lá ia o negro Alcibíades com as mulas conduzindo generosa matalotagem, sempre no caminho da Tronqueira com sua fidelidade útil. Essas remessas produziram no povo o que, a princípio uma suspeita, veio a ser uma certeza definitiva. A ociosidade produz na gente a análise mais acurada dos fatos, basta que tenhamos uma nesga de luz para a transfiguração de uma verdade absoluta, incontestável. Não se tinha mais qualquer dúvida de que o Coronel, considerando-se todas as circunstâncias que envolviam as últimas ocorrências, aliando-as ao conhecimento das más práticas que lhe eram notórias, passou, e muito bem passada, dessas de entrar no sangue, a peia na uma. Se alguma dificuldade aparecia na conclusão de apressadas bocas, que a despeito das evidências logravam defender o bom homem, logo vinha o arremate:
— Miçangas.
E todos passaram então a esperar pacientemente — pois que aqui sempre foi de boa prática esperar a tudo com boa paciência, já que quanto mais se adianta mais próxima é a escura boca da morte — a frutificação daquele coito apressado em beira de estrada.
[In Vilarejo e outras histórias, Vitória: SPDC-UFES, 1992.]
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Pedro José Nunes, escritor, nasceu em Ibitirama, ES, em 1962. Nesse mesmo ano, sua família retornou a São José do Calçado, e lá ele residiu até os 19 anos, quando se mudou definitivamente para Vitória. Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo. Criador e responsável pela manutenção do site Terlúlia, dedicado à literatura produzida no Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui.)