Marina, no início, foi somente uma voz; mas tanta existência nessa voz: doce, cheia de carícias, rosada — sim — delicada, toda em ternura dada e que pára no momento em que ela vai se dar — realmente — contendo-se, em suspensão por cima das coisas, com um sorriso também suspenso por cima das coisas, um sorriso de beatitude quase açucarada e que vai desmaiando num jogo-movimento de moça-meio-assustada ou de jovem coquete que sabe como lidar com os galos pegando-os pela ponta do bico — seu frango! se aproxima ali na ponta dos dedos da voz toda poderosa e frágil como uma rosa silvestre porque sustentada por nada a não ser as invisibilidades (sempre haverá alguém para lhe dizer que se trata de ondas sonoras). Essa voz doce completamente imaterial, no telefone cinzento e que longínqua e próxima canta a sua canção de doçura engatinhando, de balbuciar de criança que me quer, que me deseja.
E eu, tão inocente como uma trouxa de roupa velha deixando-se ninar pelo som dessa voz de flauta mágica e interrogando-se sobre o rosto, a boca e o corpo de onde saía a melodia universal da voz.
Um mês, durou um mês. É isso. O diálogo com a voz sem corpo.
E um dia entretanto: o encontro sob as arcadas do teatro. Que rosto de Marina? O seu.
E era — sim — o rosto da sua voz, um rosto pequeno e delicado, aparentado com a flor que ela usava no cabelo / muitas vezes / próxima da arte também, uma elegância ainda um pouco açucarada mas que se liberta lentamente desse açúcar e ostenta então um porte de cabeça perto da princesa; e é exatamente a palavra que voa nos seus lábios: “princesa” quando você a vê, e isto sem brincar de conto de fada ou de fofocas de uma falsa corte — não — há de dizer isto com toda a franqueza: esse porte era tranqüilamente aristocrático.
No teatro, sentado um ao lado do outro, com esse problema eminentemente material do braço da poltrona entre nós dois que toca os nossos braços que, às vezes, se tocavam, ela tirando o seu, eu tirando o meu e ela colocando o seu devagarzinho e eu também e assim deixando-os juntos, o dela contra o meu e eu tirando-o, e ela tirando o seu e no palco alguém que cantava uma horrível história de amor tendo como título: “O tango dos antebraços”.
Não sei mais.
E, quando senti que ela estava prestando atenção ao espetáculo (mas de uma maneira bastante superficial como se isso não fosse importante), eu ousava fazer uma rotação do meu rosto para ver o seu, seu rosto — o dela — via seu perfil que certamente sentia que estava sendo olhado mas que não parecia perturbar-se por tão pouco, pelo menos, fisicamente. No espaço desse relâmpago de rotação, eu tive o tempo de perceber seu perfil, como petrificado como o de um camafeu ou de uma medalha de esmalte com a nitidez renascentista de seus traços: esse nariz fino, esses lábios naturalmente cor-de-rosa e um leve prognatismo, daqueles que, pelo fato de quebrar levemente o perfil grego, lhe confere um “nec plus ultra” ,[ 1 ] o leve deslizamento da perfeição necessária à beleza — quero dizer — uma espécie de leve deformação que humaniza essa beleza, sem entretanto perder seus élans divinos de cabeça, mas assim evitando a frieza de um beleza canônica e ao mesmo tempo acabando por pular de pés juntos por cima dessa, instaurando algo como uma quase divinização da nossa fragilidade e da nossa falta de jeito — a tornar loucos de ciúmes Deuses e Anjos.
Marina era a madona que se doa. Quero dizer que ela não estava parafusada no seu céu de beleza e que ela descia até mim (a não ser que fosse o contrário) por intermédio do seu antebraço que não se move mais — não — nesse bate-bate das veias nossas doravante reunidas é que talvez o velho pacto do sangue desses índios cujos traços afloram no teu rosto.
E entretanto que madona que se doa! Superando-se, controlada pela ponta do corpo, na ponta dos lábios, na ponta do coração, na ponta de tudo. Nunca aquela espécie de Dom como uma abolição do eu, não. O coquetismo desse eu era forte demais para permitir o dom, para desnudar-se absolutamente, se doar ao ponto de perder seu pequeno eu no caminho, tirar a roupa e tirá-la tanto que a gente acaba se desfazendo de todas as máscaras e até da própria pele para aparecer como um esfolado vivo, em pleno revolver desse eu, eu, eu — não, não e não — a não ser às vezes, em algumas exclamações proferidas no seio do prazer e das suas lâminas de aço branco: “fica comigo sempre, não me deixe, não vá…” num gemido de animal ferido que vai perder o dardo do seu prazer, do seu desejo sobre o qual ela se curva, não como um ferido mortalmente de amor ferido mas porque ela acha que aquilo é dela, aquilo lhe pertence como sua conta no banco ou seu anel de esmeralda. Ela não amou no amor a sua pobreza e não aceitou se tornar vadia de si mesma, para transtornar o divino e fazê-lo dançar… e eu tô como um peixe fora d’água, arruinado sem ter podido dar algo, de uma certa maneira: vampirizado (e entretanto não se trata de vampirismo). Marina, o que foi que você fez com a madona?
E não se tratava, no fundo, de vampirismo. O que era terrível era essa obrigação de lhe dar alguma coisa, o prazer entre outras coisas, mas também algo mais, mais constante, mais estável, algo que teria o gosto da roca e não da rosa — uma espécie de casa, paradoxalmente, para este amor vadio que estou dizendo. Sim — agora é isto — uma casa de ti, de nós. Era querer doar e nunca ser aprovado, oferecer uma flor a uma parede e jogar a flor aos pés da parede; vergonha e sentimento da morte de algo / irremediável de alguém talvez. E é por isso que eu estava numa tremenda dúvida sabendo que nesse amor a dois éramos na verdade três e que o terceiro estava morto há muito tempo mas que seu cadáver se balançava em nosso amor como os bois esfolados nos ganchos dos açougues. Lá do lado de Timon e na cidade cinzenta do norte, com seu muro também, e seus mortos do muro também, e suas flores também aos pés do muro.
E esse cadáver que se balançava na extremidade de uma corda, com seios ao ar livre e o pescoço torcido pela pancada do enforcamento, com um pouco de neve no lábio inferior — meu deus! quem era? uma mulher jovem e bela, às vezes, uma resistente do este ou um homem maduro mas ambos belos, nessa agonia que foi a deles quase leve, diante da crueldade notável dos lobos cinzentos e dos seus soldados.
Esses enforcados que moravam em nós ou que se erguiam entre nós, quem eram? de onde vinham? o que é que eles têm a ver com o nosso amor? meu deus!
Que barulho de canhões no horizonte em chamas?
Este rosto que se tornou Ícone pela imobilização leve dos seus traços na evanescência de uma tarde tropical em doce tangência à Avenida Serafita,
esse rosto que se tornou imagem naquele soluço tranqüilo do espaço e que, talvez, conquistou a neve e a paz dos mortos ou a leveza dos pássaros,
esse rosto, pequeno, que eu pegava nas minhas mãos, com as palmas grávidas de que carícia e que não conseguia lhe dar ou quase, porque este rosto era mais frágil que uma Rosa-do-Nada ou porque ele continha tantas coisas que essa plenitude era cheia de vazio e que acariciá-lo era como caminhar na direção do ponto zero,
no coração da minha própria pobreza
e da pobreza radiante de Marina
que ela desconhecia.
E tu, não te quis Madona
e se, às vezes, eu dava essa impressão que — sim —
te deitava na transparência da Madona
é que houve uma má dúvida (ou a maldade de que dona?)
da parte de alguém que não era nós, de alguém que se colocou entre nós e que era algo, talvez, como o endurecimento, o encrostamento de nossos respectivos passados em concreções concretizadas
como o tártaro nas panelas do Espírito Francês.
Deixa passar o infinito e se desliga.
Deixa chorar o infinito do tempo que passa nos séculos dos
séculos
e por cima da cabeça
e ver sendo desenhado no rosto de Marina a proa de
que navio, grávido dos produtos da terra,
ver esse barco vir até nós,
como uma espécie de indecência ontológica
vê-lo dizer-se e calar-se
e tão mudo como a laje inominável do túmulo
e senti-lo passar em nós como as flechas de São Sebastião
e aceitar esse barco que doravante flui em nossas veias
como sangue do mar e de origens turvas
Com a carenagem doravante congelada
e que é aquela de nossas lembranças loucas
essas lembranças que se engancham em nossa memória
como os piolhos de Nosso Senhor à juba mal lavada
de um bárbaro
E entretanto, eu não a quis boneca e foi o que você
se tornou entre dois amores como se em ti, tu assassi-
nasses o frescor de ser uma moça ainda, como se o som
do autômato falasse mais
alto — um dia talvez — um dia só e isto bastou
para assim asfixiar o som da tua voz,
a ver-te dançar nos forrós da vida — cortinas fechadas,
não era, dessa vez, fazer charme e provocação com o
deus ciumento,
era uma dança de mecânicas em perfeito estado
que não pertencia a ninguém a não ser à sedução
exaustiva de Marina
e que fluía na minha direção e na do meu coração-chocolate
a dança de Marina fazendo gritar, esse coração,
por cima da mesa do bar “Tante Anne” — que
me fazia gritar nas ruas da cidade —
em que cidade diante de Timon, cujo nome sempre
para sempre ficou desconhecido, que me fazia gritar
sobre as beiras do Rio Berezina, e que fazia
se levantar — em mim — o grande bárbaro bêbedo
que ia-se embora, uma tocha na mão, para
botar fogo na biblioteca de Alexandria,
para dizer que todos os livros se calaram enquanto
Marina dançava.
Sedução exaustiva de Marina que, em jogos de quadris
e colagem de bacias contra o corpo do seu parceiro,
fazia levantarem-se as chamas do lado de Timon
e que brilhavam — essas chamas — como o cristal que ela tinha colocado no meio da testa e que devia ter um sentido particular no coração mítico e coquete de Marina mas que, para mim, desafinava como as jóias-ostentação de uma amante ao terceiro grau e ao mesmo tempo realçava sua beleza e o ícone de si mesma, fazendo dela o que realmente era: a rainha da festa e o ícone da boneca.
Esse corpo de Marina negava todos os livros enquanto ele ocupava o espaço dançado nas suas ancas e nos seus dedos,
o corpo de Marina ocupava a biblioteca daquela nudez que não era a da pobreza, mas uma nudez que fazia abaixar a cabeça aos autores dos livros, aos Grandes Pensantes, e que de uma certa maneira tornava todo livro ridículo, superficial e obtuso diante desse corpo que, tendo a espessura de uma selva primeva, tinha a transparência de toda carne, na sua consistência-geléia que flutua entre a pétala e a madeira. Essa carne de primavera quase desabrochada não tinha a arrogância daquelas mulheres de luxo, nem os primeiros cansaços de um corpo de balzaquiana e seus primeiros efeitos de pátina e de leves rachaduras (que, às vezes, era mais apreciado que um rosto-adolescência — como o efeito de envelhecimento no vinho e nos álcoois, o fartume de um corpo que se afunda em si mesmo, esculpindo sua identidade sobre o vazio).
Essa carne de pétala sobre a qual eu colocava a palma da minha mão com a impressão de ter não só uma mão mas uma pá de pião que se apropriava da curva comovente, entre todas, da anca.
E, muitas vezes, enquanto Marina se extraía de nossa cama troncha para ir fazer xixi ou tomar banho, seu corpo se apresentava em toda a elegância de linhas-cipós, no umbral em luz da porta, em alta fornalha do sol de fora: meio deserto, e este corpo de Marina, em toda a graça de arabescos contidos em quase figuras de dança, desaparecia na luz devoradora deixando ainda impresso nela o contorno da sua passagem. O corpo evaporado na luz era o de Marina,
mas esse corpo que eu acariciava, amava, que tomava nos meus braços
nunca me revelou quem foi Marina
o desconhecido pois eras tu e não algum abismo pendurado no interior das coisas. Eu noa sabia quem você era e tudo encaminhava-se para que eu não soubesse nunca; era à medida que eu me aproximava de você que as redes do conhecimento fechavam-se sobre sua fuga, você se esquivava magnificamente e eu só fazia assegurar seu corpo nos meus braços, enquanto você já estava longe — alhures — Marina-nunca-está. Teu nome, a Avenida Seraphita e esse casario, pois, onde nos encontrávamos para misturar nossos corpos, a quem ele pertencia? Por que é que eu tinha a chave? É assim, ninguém sabe. O espaço da casa é nosso e nós não conhecemos a casa; entretanto, nós a amamos e nos amamos? Ou então não seria mais um mito que estamos vivendo e que, para mim, gira ao redor da tua beleza lendária e leve e que, para ti, gira ao redor de quê? Quem vai explicar isso Marina? Entretanto não posso dizer que você não me ama. Seria bárbaro falar uma coisa dessas; mas havia algo no seu amor assim como uma mistura confusa de carícia madura e de algo como a idéia do dever: fazer-o-bem. E me parecia, a mim, que era sobretudo a segunda parte que se queria amor e que, pois, estava se enganando a respeito da mercadoria e do seu bazar porque esse era mais o da caridade e da impotência diante do vento que se levantava em mim e queimava todo o conhecimento-Alexandria sem entretanto conseguir substituí-lo, esse conhecimento, por algo muito profundo, mais profundo e que poderia se parecer com este amor que nos fazia babar. É o que nós éramos, naquele momento, sobre a cama troncha do casario, Avenida Seraphita, onde misturávamos nossos corpos também e éramos uma espécie de desespero soldado entre nós e em nós, um desespero que era ao mesmo tempo um prazer, uma espécie de tremor oblíquo que nos acariciava e esbofeteava. Era no coração desse prazer que eu estava o mais longe possível do seu verdadeiro coração, como se fosse apenas um simulacro, uma encenação, um jogo de máscaras chumbadas nas quais nossos corpos ocupavam com ostentação o terreno e nos deixavam ali, deslumbrados, mas também vampirizados e estrangeizados, tropeçando sobre o que pensávamos ser.
Lançar pontes, Marina, como sobre a Berezina; pontes de madeira e de pétalas, de carne — e a Berezina entretanto.
E a volta do grande gelo, do gelo mordendo a terra e patrocinando o rio — o gelo, as placas, a deriva? Onde você está? Lá, Marina que se vai, ou então sou eu? Marina-nunca-está.
Entretanto, a casa: o casario com seus azulejos e este nome escrito ao pincel sobre o azulejo rachado, “Maison Olavo Bilac”… alpendre na mão dos cupins, colunas poliédricas pintadas de verde-garrafa e o quintal, bastante grande, verde também — grandes árvores, grandes mangueiras certamente. O solo livre de qualquer vegetação, liso, fora as árvores grandes, o poço — sim — o poço. O assoalho gemendo sob o passo nu. A cigarra e a ausência de ti. No meu quarto que cheira a mofo onde a agulha chia sobre o rolo do gramofone: nada de blues nem de estados de alma, um estado das coisas com a casa sem você e que, entretanto, é mais ela do que você é você ou que eu sou eu, e que não divorcia de si mesmo, considerando que ela não tem nela, essa espécie de deslizamento da identidade que é o trabalho da consciência; essa casa que está realmente no seu lugar / sua morte / quero dizer sua ruína / nas tábuas meio soltas e quase caindo, balançando, e seus azulejos rachados que parecem com uma plenitude porque sempre falou sim à sua própria presença diante das coisas, sempre falou não a toda evanescência.
E então, eu penso que, ela, a casa falou não para Marina.
E entreanto, tenho dúvida quando vejo Marina colocar seu corpo na beira do poço e brincar de fazer escorregar a água sobre sua espinha dorsal e seus quadris morenos.
Tenho minhas dúvidas e até penso às vezes que a casa é de Marina e que sou o convidado.
Finalmente, desembarco no Avenida Seraphita, nessa tardinha de sexta-feira, enquanto o tráfego modesto dos veículos brinca, mesmo assim, de cidade grande e de derrapagens mais ou menos controladas — feixes de faróis-olhares.
E a eternidade, nisso tudo?
[Transcrito de A passagem de Marina, 1996, p. 42-53.]
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NOTA
[ 1 ] Algo mais “chic”.
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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)