Como diz o povo: “o homem põe e Deus dispõe”, José Roberto não chegou a tomar o maior pifão de sua vida — aranha que refaz a teia partida e volta ao centro, o retiro de Lina conduziu o telegrafista por caminho até então jamais imaginado.
O rapaz notou, desde o começo do baile, que Nieta (que tantas vezes acompanhara Lina) lhe dava bola: meninota de catorze anos, fantasiada de havaiana, suas grandes e rijas coxas se mostravam por entre a palha do saiote. Depois da sexta garrafa de cerveja, o salão do Sul América já se afundava sobre sua cabeça e voltava à posição normal, num gangorrear fantástico, e a menina o puxou para o cordão. Vozes excitadas gritavam:
— É hoje, só, amanhã não tem mais…
E, como estas coisas que acontecem sem que se saiba como, se viu atracado com a pequena, na varanda dos fundos.
— Vamos sair daqui, Zezinho…
— Não atente, menina, você é aluna de minha garota… Você é de menor…
— Tem perigo não, Zé Roberto. Eu não sou mais moça… Sabe, eu ia com Lininha, mas com olho em você… Fico arrepiada, só em pensar.
— Como é que vamos fazer?
— Estou no baile, com titia… Vamos ali pertinho… Antes do final, voltamos…
Saíram pelo campo de vôlei, passaram por um terreno baldio. José Roberto quis ir para a praia. Antonieta o encaminhou para uma casa velha e desocupada. (“É mais seguro”, cochichou), ao lado do Grupo Escolar.
No caminho, a moça contou que dois anos antes, enquanto a irmã esperava bebê, um cunhado lhe “fizera mal”. Depois, tivera casos com os rapazes de Areia. E confessava, orgulhosa, acreditar estar grávida, pois nos últimos dois meses não tivera incômodos.
As explicações satisfizeram o rapaz: sem responsabilidade, tudo é carnaval. A porta cedeu a um empurrão e os dois entraram.
Bibi ficava esperando a filha voltar e escutava os ecos das músicas momescas: de tamancos, calças de mescla e camisa branca (por fora das calças) fumava seu cigarrinho de palha, quando divisou o vulto da irmã, nos fundos da cadeia, vindo em direção à casa.
— Nini já voltou?
— Ora, como pode, se ela estava com você…
— Ai, Jesus, uma desgraça! Num momento ela estava no salão pulando e, num átimo, eu não vi mais a menina… Pensei que ela estava tomando um pouco de fresca e, quando demorou, vim ver em casa.
O estivador jogou o cigarro fora, num gesto de impaciência, botou a camisa para dentro e dirigiu-se para o clube. O porteiro improvisado (seu colega do cais, o Jocelim) deu a pista:
— Saiu pelos fundos com um rapaz da Petrolífera. Eu reconheci quando ela passou embaixo do poste ali da esquina, por causa da havaiana. Sem querer fuxicar, fui até lá, e quero ver minha mãe morta se eles não entraram na casa velha da esquina… Não fui lhe avisar porque não podia deixar a porta…
Bibi, fungando (velho tique que o acometia, quando ficava nervoso), encaminhou-se em direção à casa. Quando a porta rangeu, na escuridão apenas diminuída pela iluminação pública, penetrando, a medo, pelos vidros quebrados, percebeu que um vulto pulou pela janela e saiu a correr. Nua, sua filha jazia encolhida num canto da sala e começou a chorar baixinho. Tirou o tamanco, e, num impulso, metódica e velozmente qual seu trabalho em madeira, começou a desfechar golpes na moça, que se limitou a chorar mais alto: de súplica, nem palavra alguma. Quando, exausto, terminou sua obra corretiva, um tamanco só no pé, chegou à porta e disse:
— Vamos, cachorra…
A moça desmaiara. Pegou-a, desajeitadamente, pois o volume era diverso do de um saco de sessenta quilos, colocou-a às costas e encaminhou-se para casa.
A mãe apavorada (“Homem mau. Homem doido. Família cheia de malucos. Maldita a hora em que me casei com ele. O pai não fazia gosto. Ma-lu-co. Rebentou a cara da menina todinha”) colocou pedaços de carne verde no rosto da ferida e mandou a cunhada descobrir o Dr. Bicudo para ver se fazia um curativo. Preparou arnica, sentou-se ao pé da cama, a chorar, enquanto o marido, à porta, não cessava de dizer:
— Eu mato o miserável que estava com ela…
Dr. Bicudo estava na fazenda e só voltaria no dia seguinte, na hora da missa de cinzas. De madrugada uma hemorragia se iniciou: “É paquete adiantado com o susto”, pensou a mãe. E foi buscar toalhas feitas de sacos de farinha de trigo.
— Tá com jeito de aborto…
— Cala a boca, solteirona, você não sabe de nada…
— Eu mato o miserável… Amanhã, eu mato…
Às cinco da manhã, quando a orquestra, de há muito, já tocara a “Estrela d’Alva”, e o Padre Fernando colocava cinza à testa dos fiéis, sem que ninguém esperasse, a moça morreu.
— Está dormindo, coitadinha — disse a tia. — Vá dormir um pouco, comadre… Eu tomo conta da afilhada.
José Roberto foi procurar o Dr. Edgar.
— Doutor, preciso de um jipe e licença para sair da cidade. Estou ameaçado de morte…
— Você não se emenda… Não se lembra daquela que tentou suicídio, na praia, em Caravelas? Toma juízo, você…
— Doutor, ninguém não gosta de não ser chamado de homem.
Dr. Edgar também já tivera seus casos: andarilho tem destas coisas.
— Vá, rapaz. E, como o serviço seu já diminuiu, vou dar sua transferência para o central, está ouvindo?
— Colapso cardíaco — atestou o Dr. Bicudo, ao voltar do quarto e encontrar o pai dizendo que ia matar o miserável… — Deixe os vivos de lado e vá cuidar do enterro da moça. Vamos fazer tudo para que não haja muitos comentários, senão você está frito…
Porém, durante todo o dia, mesmo no enterro, com as colegas do curso de admissão (e o exame era na segunda-feira seguinte) todas vestidas de branco, mesmo quando o Neca Barros o levou para o quartel, “preso em flagrante”, Bibi continuou a dizer:
— Eu mato aquele miserável… — E, à força de tanto repetir-se, o ato lhe parecia coisa longínqua, inominável, e mesmo irrealizável, ou melhor, já praticado, pois a filha morta (em cuja morte ele não acreditava), parecia que ambos estavam mortos — ela e aquele que o pai pensava ser o sedutor — assim como o próprio Bibi morrera muito, pois que, não se acreditando assassino, sublimara a violência das tamancadas, dirigindo os golpes, mil vezes mil, contra si mesmo, isto é, pela força de seu próprio pensamento, moído e remoído.
[In A oferta e o altar, segunda parte, capítulo IV, p. 101-4 da 4a. edição.]
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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)