Voltar às postagens

Excerto do romance Reino não conquistado

(Excerto – Segundo ato: portal de ouro, capítulo 14)

Sebastião em Vitória causou novos problemas a Mariana. Com a morte do aguerrido advogado Dr. Cândido Costa, passou a dirigir os negócios jurídicos do espólio, ainda não concluído, do pai depois de tantos anos. Entrementes o serviçal Von Lizt também falecera, deixando a Casa Esmeralda em crise — Manuel Pinto era um pé de boi mas muito lento em suas decisões, numa época em que, de novo, a concorrência ameaçava sua hegemonia. Sebastião interferiu na gerência da firma e o Manuel veio reclamar a Mariana, então prisioneira de sua solidão.

O diálogo com o filho foi áspero:

— A senhora não está regulando bem…

A velha moveu a cabeça para a direita e para a esquerda. Num fio de voz rouca, que não lembrava de modo algum a Mariana de um ano atrás, ainda tentou fazer valer sua autoridade:

— Enquanto estas pestanas baterem, Sebastião, quem manda na firma sou eu…

O inventário era volumoso e o Dr. Costa, velhíssimo, porém zeloso e íntegro, só não o concluíra em virtude das múltiplas diligências envolvidas, inclusive precatórias nunca devolvidas para avaliar, bens em Minas Gerais e até rogatórios para Londres, onde Mariana tinha uma casinha em Oxford Street. O Bispo doara sua quarta parte à Igreja, mas Sebastião, sem trabalhar, salvo no breve tempo de Presidente, esteve com seu patrimônio exageradamente aumentado. Disse à mãe que recebera herança da esposa, cujo pai, em Nazaré do Mato, também falecera… Alegou dinheiro ganho num jogo de pôquer muito selecionado que se fazia na casa de Mr. Barry, no Arrabalde Novo, projetado no canto da praia, por Saturnino de Brito, ainda em seu governo, e que agora começou a povoar-se de grandes casas com extensos pomares.

Mariana se queixou ao Bispo, seu filho, ainda estremecido com Sebastião, mas nem ele tomou providências, nem Sebastião deixou, prepotentemente, de agir como bem lhe parecia. A velha, não compreendendo os meandros da justiça, chorava pela perda de seu antigo poderio, mas não desejava dar à cidade o triste espetáculo da dissenção interna que lavrava em sua família, antes um monolito que ela amoldava a seu bel prazer. Por esse tempo, sua esclerose se acentuou, cada vez mais se encaramujava dentro de si mesma, pobre velha, que culpava a pequenez vitoriense pelos males que a afligiam.

Há vozes lá em baixo. Aos oitenta anos ela foi trazida, contra a vontade, para a festa, no velho sobrado reformado da rua do Fogo, que mudou de nome para Caramuru. Os filhos vão, finalmente, almoçar com ela, juntamente com a nora e os dois netos. É um arremedo da antiga união, mas tanto quanto pôde compreender, Mariana ficou feliz e sorria com sua dentadura postiça mal ajustada. As crianças correm pela casa: Argentina com cinco anos e Anselmo, sempre mofino, como o tio Bispo, com quatro. Mariana prfere a neta, em que vê a reprodução dela, quando menina. Diz-lhe que quando morrer ela herdará todas as suas jóias. A nora resmunga e pensa:

— Veremos…

Mariana olha para seu grande retrato e conversando com seus botões de octogenária ri para aquela Mariana, mais branca que na realidade, que um dia, quatro décadas atrás, teve de posar muitas vezes, coisa ridícula para quem só pensava, avidamente, em ganhar dinheiro, e, em sua mente confusa, acha que Dodona menina, e até hoje sua escrava por vontade própria, está chegando de Araçatiba, para servir a sua casa.

— Dodona, onde andará esta pestinha preguiçosa? Vou dar-lhe umas boas varadas. Por que ela não traz a cerveja que eu mandei comprar no Cais Schmidt?

Nos últimos meses, caíra em inteira caduquez, e começou a fazer pequenas brincadeiras com os vizinhos e amigos. Perdeu a memória e a razão, mas não perdeu o espírito galhofeiro, na incerteza de ter conquistado o reino, de ter sido alguém, ingressara em doce loucura cheia de sombras, trevas, conversas íntimas, solidão amarga-doce.

As empregadas ficaram surpresas quando, durante a Semana Santa, mandara cortar inúmeras rolhas de cortiça, em pedacinhos bem fininhos, e determinou se fizesse com todos os requintes de antiga tradição algumas dezenas de pequenas tortas capixabas, em suas panelinhas de barro, a que, além das ostras, camarões, sururus, palmitos, mandou adicionar os pedacinhos da madeira leve. Pronta a apetitosa iguaria, com agradável cheiro e bonito aspecto, mandou uma meninota levá-las a inúmeras casas de famílias tradicionais e amigas, e ficou a imaginar aquela gente toda a comer torta com cortiça.

Todas as sobras daqueles pratos, e foram muitas, cascas de palmito e de camarão, conchas de sururu e ostra, mandou colocar na porta de Dona Calu Freire, conhecida como Calu Purgatório, que considerava, com razão ou sem razão alguma, sua pior detratora. Era uma daquelas casas baixas coloniais, cuja porta principal tinha uma empanada, sempre fechada, enquanto que, durante o dia, se abria a porta. Pois no espaço entre a meia porta e a porta inteira é que, durante a noite, Mariana mandou colocar o lixo mal cheiroso: quando Dona Calu abriu a porta interna, no dia seguinte, sábado de Aleluia, aquela sujeira toda lhe caiu em cima:

— Só pode ser coisa da louca da Mariana…

Mas não tomou providência alguma, por ser ela quem era, mas racionalizando ao dizer:

— O desprezo é a melhor política…

Manuel Pinto, o gerente e meio parente de seu falecido marido, tinha um bote que ficava fundeado no remanso próximo à Casa Esmeralda. Mariana mandou fazer com perfeição um boneco com uma vara de pescar à mão, colocando-o no barco do amigo. Quando viu, na bruma da manhã, aquele estranho refestelado em sua propriedade, vista fraca mas voz potente de português zarro, gritou:

— Sai do meu bote, ladrão…

E como o boneco não lhe desse atenção, foi lá em cima, pegou uma garrucha, desceu e deu-lhe dois tiros, enquanto Dona Mariana, da janela, ria, a bandeiras despregadas, batia palmas e dizia:

— Primeiro de abril, seu Manuel, enganei um bobo, na casca do ovo, primeiro de abril, seu Manuel…

De novo uma criança. Porém, uma criança que, em seu íntimo, pesquisava as grandes transformações que estava vivendo.

Que era ela quando, aos 35 anos, retornara a Vitória? Era só energia, domínio de si, entusiasmo, paixão, tudo perdido, as situações novas se atropelavam e a venciam com extrema facilidade.

Lutara, sempre em primeiro lugar, a favor de sua conveniência pessoal e depois de seus filhos, considerando-se uma predestinada muito superior ao vulgo vitoriense.

Antigamente, tudo obedecia a sua vontade, mas, agora, vivia num mundo criado com os escombros do passado, nunca se esquecendo da animosidade entre os filhos, ciumentos, ciosos de sua autoridade. Só o que desejava era o fim da querela entre eles, para libertar-se de sua atual angústia, fruto do absurdo da situação vivida: lutara meio século para atingir o máximo do poder e quando chegara ao cume, um conflito que ela não previra deitara tudo a perder. Não se considerava doente e sim lesada, pela vida, pela sociedade, pela inveja circundante, pelo destino, esquecida que, num turbilhão de mar e vento, estava engolfada num jogo obscuro entre a hereditariedade luso-afro-britânica e o ambiente medíocre em que os meninos foram criados.

Como resistir?

Como libertar-se?

Como reagir?

Às vezes, chegava às raias do desespero, ansiosa, inquieta, preocupada, ficava horas e horas a cismar até que Dodona, sempre a fiel Dodona, vinha trazer-lhe seu chá com torradas e geleia e ajeitava-lhe a pequena manta de lã aos pés. Colocava as torradas dentro do chá quente, para esfriá-lo, tirava a dentadura para melhor apreciar o sabor do pão mole e molhadinho, e ficava a apreciar as migalhas intumescidas que saltitavam no fundo da xícara.

E se limitava a forçar o esquecimento, comendo pouco, dormindo muito, e bebendo litros e litros de cerveja caseira, fabricada por um alemão ali perto.

— É diurético, Dr. Cerqueira me disse ainda ontem, Dodona…

— Dr. Cerqueira já morreu há muito tempo, Dona Mariana…

— Morreu para você, sua ingrata, que ele a salvou na epidemia de febre amarela. Para mim, ele sempre vem aqui…

Era a pura verdade — os mortos de Mariana — Joseph Koster, o pai, Salvador, o marido, Mestre Pedro, Dr. Cerqueira, Dr. Cândido Costa, só homens, ultimamente Padre Marcelino e Von Lizt — formavam uma corte sempre pronta a servi-la, prestando-lhe homenagem, procissão diária, ela os via e com eles conversava: todos eram vivos para ela.

Dodona, rija nos seus quase quarenta anos, resmungava, batia a cabeça, concordava mas comentava:

— Está louca… Maluquinha que ela só.

E saía para dar ordens aos demais empregados agora que ela era a autêntica e legítima dona da casa, enquanto a ama, vertiginosamente, ingressava no túnel desconhecido do fim da vida, em que o esquecimento era um grande bem, um grande consolo, termo de tudo.

Esquecida da beleza e dos prazeres passados voltou ao tema único de seu final de vida: o ódio entre os irmãos, que a aborrecia todos os instantes do dia e das noites de pouco dormir, que construíra, passo a passo, a golpes de audácia, a riqueza e a grandeza deles, monumento que ela erigira para sua glória e honra.

Tinha dúvida sobre se, afinal, os dois se reconciliariam, numa inquietude fruto da dúvida e não aceitação do que estava ocorrendo, e por isso, naquele dia 12 de outubro de 1897, em que a população vitoriense estava toda no Cais pois entrava uma baleia com seu baleote na baía, foi invadida de intensa felicidade, traduzida até em forte dor no peito, quando Dodona vestindo-lhe peça por peça depois de banhá-la com perfumadas essências exóticas, lembrou-lhe que era dia de seu aniversário e que, para comemorar seus oitentanos, os filhos — o Bispo e o Ex-Presidente — os filhos por quem ela tudo fizera — queriam almoçar juntos com ela, depois de anos de almoços alternados, aos domingos, e a festa seria na velha casa da rua do Fogo.

Ó que gloriosa dinastia podia surgir da união daqueles dois — João, o cérebro, Sebastião, a ação. Deus é bom e justo, permitira que o filho mais moço não fosse morto, em tantos combates no sul, para voltar e para que ela pudesse assistir, finalmente, à paz familiar. Tivera, três dias seguidos, um sonho premonitório: estava a dirigir uma carruagem e olhou para trás e viu, sentados no banco, os filhos, vestidos luxuosamente de veludo, não o padre e o bacharel, mas os seus meninos, e o veículo começou a andar por cima das pedras grandes do calçamento, molhadas de chuva, e como sacolejava muito, ela imprimia mais velocidade e a calçada subiu aos céus, num voo tranqüilo, sobre a baía, o Penedo, o Convento da Penha, e enfim o grande mar aberto…

Os filhos se abraçaram e Mariana ficou feliz e quieta. Dodona pensou que ela dormia. Ajeitou a colcha aos pés da cadeira, e muito silenciosamente deixou o quarto da velha senhora.

Os netos, Argentina e Anselmo, iniciaram uma briga, por causa da cadelinha pequena, amarela, com malhas brancas, toda peluda, chamada Biscuit e, puxando o animalzinho que gania, tentaram subir a escada para submeter a questão ao julgamento da avó, quando ouviram o psiu de Dodona:

— Sua avó dorme…

Sebastião chegou quase ao mesmo tempo que João. Os dois se cumprimentaram cerimoniosamente, mas depois, num ímpeto, abraçaram-se, silenciosamente, e decidiram subir para felicitar a mãe.

Mariana olhava fixamente para a janela de onde se viam as torres de São Francisco e o pequeno jardim onde cravos, lírios e gerânios floresciam. O pinheiro esguio recendia seu aroma agradável e balançava ao forte vento nordeste. Um pregão anunciava, ao longe:

— Verdureiro, verdureiro…

Já devia ter morrido há algumas horas. O Bispo deu, àquele vulto miudinho e encurvado, a bênção in extremis, enquanto Sebastião ajeitou-lhe a dentadura caída e, em vão, tentou fechar-lhe os olhos, aqueles dominadores olhos, olhos que teimavam em dirigir os filhos e o mundo, enquanto o coração havia parado de bater, olhos que pediam, estranhamente súplices, nova oportunidade de vida, para retentar, com redobrado entusiasmo, a conquista do reino!

[In Reino não conquistado, segundo ato: portal de ouro, capítulo 14, p. 117-22]

———
© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———

Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário