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Excertos do livro As chamas na missa

* * *

no dia seguinte, pela manhã, em jejum como preceituava o regimento da Inquisição, foi Bernardo levado ao tormento da polé.

Cedo lhe chegou à cela o alcaide dos cárceres, atou-lhe as mãos e mandou que esvaziasse a bexiga e o seguisse pelos corredores lúgubres em direção à sala do suplício. Ali estavam presentes várias pessoas aparamentadas, as quais relancearam o réu que chegava, lívido, aterrado, é grande esse homem e no entanto — Precisa, no entanto, ser empurrado pelo alcaide que lhe indica um banco de madeira, está frio o banco ou é o meu sesso, pensa Bernardo, sentado diante da grande mesa por trás da qual se destaca o Inquisidor Geral tendo ao seu lado o Ordinário e ainda o médico e o cirurgião, duro é o tormento sendo recomendados dois esculápios para o exato diagnóstico das forças do supliciado, antes que por fraqueza da carne e quebradeira dos ossos escape pela morte às mãos dos torturadores.

Presente se vê também um dominicano, de pé ao lado da mesa. Segurando o breviário e o terço o dominicano reza, pelo menos assim parece a Bernardo porque o religioso mexe os beiços, mudamente, como se fazem as orações, enquanto dirige a Queixada um aceno de mão. À luz frouxa que penetra pela passagem no alto, acaba, porém, percebendo Bernardo que o dominicano está a lhe exibir o crucifixo, se é um gesto de conforto ou de ameaça, nunca saberá.

Neste momento, o Inquisidor dirige a um escriba, na extremidade da mesa, palavras que o outro anota, trata-se do notário a registrar a hora ditada em que vai ter início a sessão, em todas as atas do Santo Ofício se anota o começo e o fim do tormento, assim é a regra.

Portanto — Do suplício portanto se lavrará o registro completo, as palavras que Bernardo disser, as confissões que fizer, as acusações que lançar, a clemência que pedir, só não se registrarão seus gritos e gemidos, os ais e os uis, os uivos e aivos de dor, o grau de sofrimento que vai padecer quando se romperem as fibras dos músculos e soarem os estalidos das articulações e dos ossos, estes ressonidos não se tem como botar em ata nem reduzir a palavras, seria preciso uma pauta musical para nela se lançar essas dó-ré-mi-dores para triste memória das coisas. Por mais capaz que seja o notário falta-lhe capacidade para tão alto mister. Que fique a ata incompleta neste ponto.

E novamente foi dado a Queixada o juramento dos Santos Evangelhos, ordenando-se que dissesse a verdade, dele se achegando um homem com a cabeça coberta por um capuz negro, à mostra os buracos dos olhos pelos quais viu Bernardo que eram azuis os olhos carrascos, como pode tê-los daquela cor celeste um oficial de tortura, cismava, quase chegando a sorrir da descoberta surpreendente.

Com a voz sufocada pelo pano disse o encapuçado que pelo lugar em que se encontrava e instrumentos nele postos Bernardo podia entender a diligência que lhe seria aplicada se não confessasse os seus pecados, acrescentando que se ele morresse, quebrasse algum membro ou perdesse o sentido, a culpa seria exclusivamente de sua dura teimosia por expor com atrevimento a tão grande perigo a saúde e a vida.

E tendo Queixada respondido, não tenho o que confessar, sou cristão, foi-lhe determinado pelo carrasco que se colocasse, sem vestimentas, num banquinho debaixo da polé, sendo seus braços amarrados às costas por duas firmes correias nas quais foi enfiado o gancho da corda que ia ter à roldana fixada no teto pela qual se içaria seu corpo.

Feito o quê, deu-se início ao tormento que durou o tempo de cinco salve-rainhas rezadas pelo dominicano. Mas dessas orações Queixada somente ouviu a primeira frase.

[…]

salve-rainha, mãe de misericórdia, reza pianíssimo, o dominicano e já está Bernardo suspenso ao primeiro sobrado que é a altura mínima do tormento, desprendendo seu primeiro e estupendo berro, traz ainda os pulmões cheios de força e nem sequer foi erguido ao segundo sobrado, a meio caminho da roldana, a qual equivale, junto ao teto, ao terceiro e último estágio da tortura.

O carrasco manobra a corda movendo o réu para cima e para baixo, seguidamente, nos tratos do manejo, em dois diferentes estilos, os quais são o corrido e o esperto; um deslizante e célere, outro estremecido, valei-me Mãe, rainha de misericórdia, Virgem Santíssima, advogada sois, brada e invoca o degredado filho de Eva, Bernardo Queixada, suspirando e gemendo no seu vale de lágrimas, suspenso agora ao segundo sobrado, e, logo, içado até a roldana como saco de carne, dai nele um trato corrido, ordena o Inquisidor, ai que me quebram, dois espertos e um corrido, ai que me estrepam, dois corridos e um esperto, ai que o estralam, a ele volvei, Virgem Rainha, os vossos olhos misericordiosos, nesse desterro, nesse terrível suplício, brandamente descido até o primeiro estágio sob o controle da mão verduga que não o deixa tocar o chão, e, de novo, um repelão, dois repelões, três pelões-ré, tem o carrasco olhos azuis cheios de doçura e esperança nossa, salve, reza salverreginamente o dominicano. Outro puxão estremecido, outra queda, salve, salve, gemendo e chorando Bernardo Queixada não mais solta urros, só rurros e bufos, estrebufos e estrebuchos, mais tratos, destratos, deztratos, um e dois e três, em cima, em baixo, no meio, parado e solto, manuseado estremecidamente, o corpo em solavancos, corda frouxa, corda tensa, corridamente, sacudidamente, leva a polé a vantagem de ser um suplício exangue e higiênico, aplicado em jejum, nele não se verte nem sangue, nem fezes, nem mijo, é limpo como convém ao pudor da Inquisição.

Salve-mãe, rainha nossa, reza Bernardo no finito de suas forças e o atinge novo estremeção, retesa-se a corda, está agora no alto, a cabeça colada à roldana donde vê, turvamente, a olho nulo, os supliciadores embaixo, dentre eles o carrasco encapuzado, a cara capuza a olhá-lo do chão, pressente Bernardo que será largado outra vez ao sabor da gravidade, e já o foi, em queda livre.

Basta, basta, tartamudeia o réu despencando no espaço, basta, quero confessar, confesso tudo, mas livrai-me deste desterro, senhores meus, senhora minha, olhos azuis, Virgem Maria.

E vos digo eu que em qualquer grau em que vai o tormento, se quiser falar o réu, logo se pára o suplício e são tomadas a termo suas palavras porque esta é a norma do Santo Ofício.

Assim confessa Queixada, aproveitando o resto de voz que ainda lhe resta, dizendo, confirmo que pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras e obras, por minha culpa, minha máxima culpa, anotai, notário, meus pecados cometidos e omitidos, jejuns e perjuras, judaísmos e bênçãos mosaicas, guaias e talmudes, razão tem o povo quando diz, cristão-novo não é nem cavalo nem mula, nem carne nem peixe, nem cris nem tão, mas sim marrão, marrano mesmo, marrão de si, marrano sempre.

Mas não é bastante o que confessa, são insaciáveis os inquisidores, exigem delações, insistem, ameaçam, tem o carrasco a corda e a carne nas mãos, não há como resistir. Cede Bernardo e se põe – Sem relutâncias, se põe a denunciar quem pela cabeça lhe passa, a torto e a retorto, dando neste e naquele, gritando, por terror da polé, nomes e alcunhas de vizinhos e companheiros, migos e imigos, vivos ou defuntos, numa escala crescente e sonante, fá-sol-lá-si de gente. E, como parentes são os dentes, não poupa aqueles para a salvação destes, dando em todos quantos ascendentes e descendentes tinha, legítimos e bastardos, pai e mãe e o avoedo inteiro, a consangüinidade contígua e descontígua de uma e outra geração.

Nesta perdição de desespero, poleado, desconjunto, havia dado, para remir a mísera vida judia, em mais de duzentas pessoas, um vilame de gente, um refestel de nomes servidos à Mesa não sobrando elias nem eliseus, amoritas nem filisteus, filhos teus que os pariste. E se mais nomes soubera mais desfiara, correndo suas terras e as vizinhas e o reino todo

Foi-lhe então dito por mim, notário, que bem procedeu em confessar com largueza de minúcias, sendo reconduzido ao cárcere com amparo de mãos pelo muito alquebrado em que se encontrava, apresentando, por maior ofensa, o braço esguerdo distorcido sem que lhe dessem conserto o cirurgião e o físico pelo muito de dor que demonstrava ao mais brando toque em virtude do grande trabalho que exigiu para confessar a ponto de não estar capaz de assinar a ata, fazendo-o eu em seu lugar, do que dou fé. E sendo posteriormente julgado foi dado por diminuto da pena capitalíssima embora condenado a degredo no Brasil.

Mas não mais será Bernardo d’Ávila o mesmo homem. Pelo resto da vida carregará um braço torto e no coração a dura culpa das delações feitas. Disso vos dá fé, não o notário que já encerrou seu trabalho, mas eu que esta subscrevo ad rei memoriam.

[As chamas na missa, Rio de Janeiro: Philobiblion / Fundação Rio, 1986 (Coleção Prosa Brasileira) ]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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