XVIII – Possidônia, o que tens?
A vila de Nova Almeida dista de Vitória sete léguas. Nela moram pescadores e agricultores que vivem em palhoças formando um casario sem grandeza alinhado perto da praia que é suja e estreita.
Por detrás dessas casas fica o morro onde sobressai o imponente colégio que foi dos extintos jesuítas e é da invocação dos Reis Magos o qual antigamente dava o nome ao lugar.
Defronte da vila, escorre o rio de turvas águas cor de mate com barra de pouco fundo. O rio admite embarcações de oito palmos de calado, sendo contudo necessário ir um prático dar-lhes entrada por causa dos bancos de areia movediços que tem na enseada onde se acha um bom ancoradouro bastante abrigado.
Enquanto me aproximava da vila onde o comércio é nenhum, crescia nos meus ouvidos o aceso batuque de um baile de congo. O som nascia de casacas, que são reco-recos com cabeças entalhadas, e de tambores tocados por um magote de gente, reunindo negros e mulatos. Os tocadores ora ficavam parados, ora andavam de um lado para o outro, sempre juntos, arrastando atrás deles uma porção de pessoas que cabriolavam levantando a poeira do chão. À medida que assim tocavam emitiam seu canto repetido e monótono que parecia não ter fim.
Com demasiado esforço pude entender, e apenas pela metade, aquele cântico gritado e fanhoso que o vento levava e que consistia para mim numa intrigante pergunta: “Possidônia, o que tens?” Não me foi possível, porém, atinar com o restante da frase que se espichava no ar.
O meu advento inesperado em trajes milicianos diante daquelas ingênuas criaturas fez calar-lhes a cantoria e o silêncio subitamente pesado e respeitoso só era rompido pelo marulhar leve das águas na prainha próxima.
Disse ao que vinha e prontamente estava na presença do subdelegado, alcunhado Chico Felisberto, indivíduo solícito, de cor amarela, trazendo na enorme boca rasgada fortes dentes pregados nela.
Sua pessoa não me conquistou a benevolência. Aquela criatura subserviente teve o Dom de me irritar sem aparente razão senão sua própria aparência. Confiei-lhe, sem perda de tempo, o propósito de ir ter com o mestre-escola do lugar, no que fui atendido pelo subdelegado que me levou à morada do professor Antunes, que essa era sua graça.
Não foi difícil chegar ao lugar, embora tivéssemos de galgar primeiramente uma encosta de duro chão argiloso escavado por profundos sulcos causados pelas chuvas.
Dita encosta, bastante íngreme em certos trechos, ficava por trás do casario miserável fronteiro à prainha por onde antes eu havia passado e onde o enfadonho batuque do congo tinha recomeçado.
Ao escutar novamente aquele baticum e cantoria, perguntei ao subdelegado sobre o preciso significado do que estavam cantando.
Abrindo num sorriso sarcástico sua boca de grandalhos dentes, explicou-me que na véspera da minha chegada uma mulher, moradora do lugar, de nome Possidônia, dera pelo sumiço de um grande peru que trazia na engorda, tendo em vão procurado a ave de casa em casa, muito se lamuriando do seu desaparecimento.
E depois dessa busca infrutífera, aos que indagavam o motivo de sua consternação, vendo-a pesarosa e triste, acotovelada à janela de sua casa na vigília paciente da ave sumida, dava como explicação a dó que sentia pela falta do peru.
Foi o quanto bastou para que a banda de congo improvisasse a toada, interminavelmente repetida, cujo completo significado me escapava e que, no entanto, era o seguinte: “Possidônia, o que tens? É dó do peru.”
Enquanto me narrava esse episódio, continuávamos subindo a ladeira que servia também de acesso para o extinto convento dos jesuítas, construído numa situação sobranceira, donde era possível, dilatando a vista, divisar o magnífico panorama daquele território.
A casa do mestre-escola era a derradeira das poucas naquele tabuleiro de morro, “rente a uma lavoura de abacaxizes” no dizer do subdelegado Chico Felisberto.
À medida que dela nos aproximávamos o subdelegado confidenciou-me particularidades da vida reclusa do professor Antunes, devotada aos livros e à leitura.
Tratava-se de pessoa de larga sabença, habituada a ler e declamar os poetas latinos com assaz desembaraço, embora seu mister consistisse apenasmente em dar as aulas régias. Como no lugar reinava a mais crassa ignorância e completa estultice, o professor era tido como criatura extravagante e arredia.
Em sua companhia viveu uma gentia bastarda, manceba e serviçal, de jeito maneiro, e que atendia pelo esquisito nome de Esmeraldina Especiosa.
Essa mulher, que depois vim a conhecer, possuía incríveis olhos verdes e demonstrava grande submissão ao professor que contudo a destratava de forma rude, abusando da mansidão daquele ser ingênuo e primitivo.
XIX – uma preciosa coleção de autores franceses
O mestre-escola recebeu-nos com circunspecta hospitalidade. Mandou que entrássemos e nos indicou um comprido banco de peroba escura onde nos assentamos no cômodo dianteiro da casa. Na parede fronteira ao banco havia abundante quantidade de livros enfiados sobre tábuas sobrepostas, apoiadas em tijolos cozidos, formando prateleiras.
No centro dessa sala apertada e diminuta, ma mesa rústica, à qual se assentou o professor, exibia outros tantos livros e mui velhos opúsculos. Uma pena de cobre de escrever descansava dentro do tinteiro.
O professor, de natural esguio, tinha feições com maçãs proeminentes; embora não tivesse os cabelos grisalhos representava já ser entrado em anos. Suas mãos revelavam o descostume das fainas pesadas malgrado as unhas encardidas e longas.
Como se colocasse à nossa disposição dizendo “sou todo ouvidos”, o subdelegado pigarrreou para tomar a palavra. Atalhei antes que o fizesse e me antecipei dizendo do objeto de nossa visita que consistia em conhecer os motivos que teriam levado os marinheiros do brigue Vinte e Nove de Maio a ir procurá-lo, consoante notícia de todos sabida na vila. “Isso deveras sucedeu?” perguntei.
Depois de ouvir minhas palavras o professor respondeu em tom grava e a resposta dele foi a seguinte: “Efetivamente, senhor Major, vieram-me cá à casa dois desses a quem vosmecê mencionou, sem que eu os conhecesse ou lhes mandasse aviso; um deles não passava de neófito grumete; o outro, todavia, era grandalhão e solerte e deu a graça de Simão. Movia-os o propósito de me alienar uma preciosa coleção de autores franceses que disseram trazer o Rio de Janeiro. Como eram clássicos do meu gosto, efetivei a compra.”
E, apontando-me para as obras de Rousseau e Voltaire que havia por essa forma adquirido, que não eram outras senão a perdida coleção de clássicos do Presidente Machado d’Oliveira, disse: “Preciosidades literárias, meu caro Major, cujo inexcedível valor ignoro se vosmecê alcança.”
Infelizmente, para o professor, eu alcançava o inexcedível valor daquelas preciosidades. E foi sobre isso que passei a lhe falar para seu incontido desespero, conforme podeis prever.
XX – um enérgico desabafo
É assaz embaraçoso exprimir o estado d’alma com que retornei da vila de Nova Almeida para Vitória, fundamente vexado com o que acontecera.
Nutria imensa piedade pelo professor Antunes o qual por tanto desejar, tanto perdeu ao adquirir obras de má procedência; e o que foi pior, furtadas à posse da suprema autoridade provincial. Mas não podia sufocar também o forte sentimento de indignação que me acometia ao lembrar das condições funestas do contrato de compra e venda realizado pelo professor: estando com o pagamento dos subsídios literários atrasado de quase um ano e não dispondo de fundos suficientes em sua jejuna bolsa para quitar o ganancioso preço cobrado por Simão Boncarneiro (que soube despertar no coração do velho professor a cobiça pelos livros franceses), não hesitou ele em completar a paga com a pessoa de Esmeraldina Especiosa.
Que negro impulso teria motivado tão imenso desatino nunca hei de compreender. Seja como for, o castigo veio a cavalo quando lhe dei a saber toda a crua verdade sobre o vero proprietário das obras e sobre o condenável modo como Simão Boncarneiro delas havia se apoderado.
Derreado debaixo de completo aniquilamento com o que de minha boca ouviu, o mestre-escola não pôde conter um enérgico desabafo: “Corja de larápios! Fui roubado e traído ao mesmo tempo. Desgraçado Rousseau, desgraçado Voltaire!”
Tão lamentáveis sucessos acenderam em meu espírito o desejo de voltar para a Capital com a maior brevidade. Contudo, para engrandecer meu desconforto, esse retorno era estorvado pela andadura lenta da animália a reboque da minha que levava, em dois balaios de fibra de coqueiro indaiá, a malsinada coleção dos livros por mim despojados ao professor. Tal circunstância agravava o estranho e descabido sentimento de culpa que inexplicavelmente me invadia. “Desgraçado Rousseau, desgraçado Voltaire”, repeti as palavras do velho e desalentado professor Antunes.
Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)