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Férias escolares: 1937 e 1944, do livro O necrologista e outros escritos

Férias escolares em Santa Teresa, no casarão de meus avós na rua Jerônimo Vervloet. Julho de 1937.

Vindo de Vitória, “cidade grande”, e no entender da minha avó Maria local impróprio para se criar saudavelmente uma criança, dois ou três dias após a minha chegada aplicava-me a boa senhora um clister, para lavar a tubulação. Depois vinha, durante um mês, uma alimentação forte às horas certas, muita massa, legumes e frutas e Emulsão de Scott. Eu e meus primos corríamos e brincávamos o dia todo. O horário do almoço e do jantar era controlado pelo sino da Matriz; refeições a que todos os parentes compareciam e nós, meninos, netos e netas, mãos rigorosamente lavadas e bem caladinhos, compenetradamente quietos ficávamos ante a figura grande, respeitável, careca e bigoduda do meu avô Paolo (lembrava muito o Barão do Rio Branco) que presidia a comprida mesa. Ouvíamos a voz grossa do avô, ora em italiano ora em português e nós, miúdos, comíamos sem reclamações tudo o que era colocado em nossos pratos, que criança não tinha direito a muita escolha. Meu avô tinha o costume, antes da refeição, e à guisa de sopa, de tomar uma tigela de caldo de feijão preto, que lhe deixava manchas negras no alvo bigodão, objeto de discretos e cautelosos risos de nossa parte. Não me lembro de ter visto aquele italiano do Piemonte, em qualquer ocasião, a beber vinho ou comer polenta. A comida era preparada na cozinha enorme, guarnecida de um imenso fogão de ferro abastecido a lenha. Nas paredes da cozinha, em três lados, estavam colocados armários com portas de vidro, que guardavam toda a parafernália culinária da época: moinho de café torrado e de pimenta do reino, de farinha de rosca, formas de ágata e de alumínio de todos os feitios e tamanhos, vidros com condimentos usados no cardápio italiano e uma bela máquina de fazer toda a espécie de macarrões, de procedência peninsular. A um canto da sala de jantar, entre um elegante aparador e o armário das louças e talheres, exibia-se em sua brancura um frigorífico marca “Electrolux”, tocado a querosene, que conservava sempre aceso um foguinho azul na sua parte inferior, sinal de que estava em pleno funcionamento. Minha avó, mulher sem riso mas boníssima, controlava tudo com mão militar, molho enorme de chaves à cintura, vestido de tecido grosso e escuro até os tornozelos. Lembro-me bem de que estava sempre em desvantajosa luta contra as formigas. Em um armário alto eram guardados, também na cozinha, bolos, doces, biscoitos, pães, tortas e massas. Os quatro pés do armário eram colocados dentro de latas de goiabada, que continham uma mistura de água e querosene para, como nos fossos dos antigos castelos, evitar a incursão de predadores, no caso as terríveis formigas. Mas esses tenazes insetos atacavam por outra frente: caminhavam de ponta-cabeça no teto e, quando se achavam sobre o armário, deixavam-se cair, como os infantes alemães fariam quatro anos mais tarde, na II Guerra Mundial, desembarcando de planadores sobre o forte Eben-Emael e surpreendendo os belgas que bebiam vinho no interior da fortaleza. Nunca soube como escapavam as ladronas formigas depois de se banquetearem. Em seguida ao jantar o sino da igreja nos convocava e lá íamos nós, as crianças, relutantes, em romaria, acompanhadas de duas criadas e portando sacos de amendoim torrado, à “reza”. Depois da “reza”, às 21 horas, já em casa, café com leite, chocolate, bolo, biscoitos e um pulo para o convidativo colchão de penas, previamente aquecido por compridas botijas cor de laranja, de genebra holandesa, contendo água fervente, que eram distribuídas pelas camas. Passávamos, como disse, a semana toda brincando, correndo, pulando e, depois do lanche (o almoço era às 11 e o jantar às 17 horas), que sucedia à “reza” e antes do mergulho no colchão de penas, ouvíamos um pouquinho de rádio, quando a estática permitia, o que não era freqüente. Domingo à tarde íamos ao “campo” ver o futebol. Este “campo” situava-se onde hoje está o jardim de Santa Teresa (o mais bonito do Estado) e servia como arquibancadas o material das obras do Grupo Escolar Pessanha Póvoa, então em construção. Posteriormente o “campo” foi transferido para uma várzea à margem da estradinha para Vitória e lá chegávamos atravessando uma pinguela sobre o rio Timbuí. Íamos aplaudir os craques do Teresense F.C., que saíam de casa já uniformizados e enchuteirados diretos para o gramado, um verdadeiro desfile de ases pela cidade. Íamos torcer pelo nosso saudoso tio Fortunato Bonino, beque dos bons e muito viril, com suas longas e brancas canelas cobertas de pêlos dourados, despachando os atacantes do time “inimigo”.

Santa Teresa, na época, produzia muito café e estabelecidos na praça havia meia dúzia de compradores do grão, entre eles meu avô, que dispunha de grande armazém e de dois caminhões para transportar o fruto para Vitória para os depósitos do D.N.C. (Departamento Nacional do Café) na volta de Caratoíra ou em Itaquari, em Cariacica. Os veículos eram um velho “Saurer”, alemão, cinza claro, volante na horizontal, apito de ar comprimido, transmissão ainda na base de correntes e pneus sólidos, de borracha, sem câmara de ar. O cansado caminhão estrebuchava, tremia, silvava e fumaçava mas dava o recado e levava para Vitória entre 45 e 50 sacas de 60 kg. Seu chauffeur titular era o Ettore Anechini, vermelhão e de mãos enormes. Tinha ele como ajudante o eficiente “Gatinho” (nunca lhe soube o nome), um dos dois ou três negros que havia em Santa Teresa, grande bebedor de pinga — quando empilecado dormia sob o vetusto caminhão — e arisco extrema esquerda do Teresense. O segundo caminhão era um “Chevrolet Tigre”, cabine de madeira e cortinas de oleado, que ficavam enroladas ao nível do teto e eram esticadas quando chovia. O valente caminhãozinho também carregava 50 sacas. A viagem demorava de 5 a 6 horas. Já o ônibus da linha Santa Teresa/Vitória/Santa Teresa era parecido com uma gaiola. Os bancos, com uma fina camada de acolchoamento nos incômodos assentos e encostos, admitiam quatro ou cinco pessoas, apertadas, sem corredor no meio. As laterais eram abertas e os passageiros que viajavam nas extremidades dos bancos tinham que estar atentos para não serem cuspidos da geringonça. A bagagem ficava amarrada em uma grade sobre o teto. Esse velho ônibus, no percurso Santa Leopoldina/Santa Teresa “chorava” o tempo todo, pois usava sempre as marchas fortes na íngreme subida. Mas levava e trazia o pessoal de e para a capital.

Os anos foram passando e eu me surpreendo agora nas férias de verão do ano de 1944/45. A cidade progredira um pouco, a calvície do meu avô já estava completa e vovó continuava aquela santa mulher. Com a guerra praticamente ganha na Europa e, no Pacífico, com os japoneses revelando sinais de que iam pelo mesmo caminho, os americanos nesse tempo já tinham bastante adiantado o seu programa de reconversão das fábricas de armas e veículos militares para a produção de bens civis. Enquanto nós, brasileiros, iniciávamos a discussão sobre se ficava ou não o Getúlio na Presidência, nossos vizinhos lá de cima pensavam na sua freguesia do após guerra e em capitalizar mais dinheiro ainda com o fim do conflito, não bastasse a fábula que tinham ganho durante o período crucial da luta, vendendo armas, munições e alimentos aos outros brigões. Começaram então a chegar os novos caminhões, com as inovações testadas nos campos de batalha e agora preparados para carregar 100 sacas de café. Cabines de aço, vidros de correr nas portas, bancos com suaves molas, apareceram os belos International KB7, de cor única — verde garrafa, os elegantes Mack, com a figura de um buldogue em aço escovado na ponta do radiador, metais cromados, e os potentíssimos Super White Power, cinza-azulados, com tutano para transportar 120/150 sacas. E os Fords, Fargos e Chevrolets da vida, também novinhos, para quem não podia adquirir uma daquelas maravilhas da mecânica yankee. Os carros eram carregados nos armazéns em Santa Teresa à tardinha e enfileiravam-se na rua Jerônimo Vervloet para, bem cedo no dia seguinte, rumarem para Vitória. Os motores, mesmo sendo o que de melhor havia na época e de estarmos no verão, custavam a pegar em virtude da friagem e da umidade da madrugada. Lateralmente às carrocerias lotadas eram colocadas, entre a sua parte inferior e o piso da rua, na direção das rodas traseiras, ripas de paraju, de 10 x 10 cm por 1,20 m de altura, que passavam a sustentar todo o peso da carga, para não forçar os feixes de mola, caríssimos. Era necessário ser hábil motorista para encaixar e equilibrar corretamente as ripas. Mas teresense sempre foi bom de volante. De madrugada, com o roncar dos motores que esquentavam e com a queda das ripas sobre os paralelepípedos quando se moviam os carros, era impossível dormir. Isso e mais as conversas e gargalhadas dos motoristas e ajudantes, entre os quais corria sempre, de boca em boca, uma garrafa da pura. E lá iam aqueles heróis, trafegando sobre o estreito e irregular leito da estrada, subindo e descendo ladeiras, parando para dar de beber aos caminhões, ou para colocar as correntes sobre os pneus quando chovia e tudo virava um barreiro. Os ônibus, por essa época, já tinham carroceria de lata e eram fechados nas laterais, como os de hoje. Causava-me admiração a atividade desenvolvida pelo ajudante/cobrador. Além de cobrar as passagens conforme o trecho percorrido pelo passageiro, receber e entregar os malotes do correio e agüentar o mau humor daquele que guiava, recebia dos que não viajavam o mais variado rol de encomendas como “compre no Copolillo o Correio da Manhã e o Diário de Notícias“, “passe no seu Antônio da Libanesa e apanhe dois metros deste fustão”, “vá até o Manuel Evaristo Pessoa e arranje uma broca de aço de 3/4″, “veja se tem Mirtonyl-Quinino na Farmácia Santa Teresinha”, “compre no seu Bichara, perto do Banco do Brasil, três metros de fita igual a esta, 12 botões como este e um carretel de linha Corrente n° 2 desta cor” e por aí vai. O rapaz, incansável, providenciava tudo e à noite, em Santa Teresa, já o estavam esperando os encomendadores. Davam-lhe sempre “um trocado para a cerveja”.

O fútingue em Santa Teresa era nos sábados à noite na rua Cel. Avancini. Os rapazes de maiores posses, engravatados, entupiam-se de cerveja e de francês e italiano (fernet com cinzano) no bar do Pasolini, que na minha terra, infelizmente, só era macho quem bebia — e a cidade só tinha machos! Ao cinema, também de propriedade do Pasolini, cada qual levava a sua cadeira e se deleitava com as performances de Gary Cooper, Ginger Rogers, Ingrid Bergman, Joan Crawford etc. Depois da sessão, quando se recolhiam as pessoas convencionalmente chamadas de sérias e responsáveis, a cachaçada nos bares se prolongava, de portas fechadas, até 1 ou 2 da matina.

Começávamos a semana com os mesmos folguedos de sempre, inclusive longos passeios nas excelentes bicicletas “Bianchi” e pequenas caçadas com umas também ótimas espingardas “La Porte”, que já haviam servido de lazer a meus tios e tias, agora deixadas para nosso uso. Depois do jantar ouvíamos rádio, que tinha a ele acoplados dois poderosos alto-falantes para compensar a surdez do avô. Eram quase que exclusivamente notícias da guerra, os aliados na Europa empurrando os alemães para o coração do seu país e os americanos no Pacífico reconquistando as ilhas ocupadas pelo Japão desde 1941. O Correio da Manhã, do qual era assinante meu avô, estampava na 1ª página um clichê com o mapa da Europa Central, que se repetia diariamente, mostrando a evolução do avanço dos aliados a oeste e a leste, em tinta preta, emagrecendo a perdedora Alemanha. A Itália já se passara para o lado dos “bons” e havia cessado aqui o clima de constrangimento de quando pertencia ao “Eixo”, e formava ainda ao lado dos alemães e dos japas. Alguns italianos e 1 ou 2 alemães de maior importância estavam exilados em Santa Teresa porque o governo brasileiro achava que, em Vitória, eles representavam perigo para o País, esquecido de que esses “súditos do Eixo”, como eram chamados, possuíam filhos brasileiros e aqui tinham construído suas vidas. A burrice (ou a cegueira) dos nossos dirigentes não percebia, ou não queria perceber, que, no Brasil, convivíamos com o Estado Novo, regime semelhante àquele que combatíamos na Europa. Tão Brasil…

Mas já revelávamos um tédio das férias, mais saudades dos pais do que das aulas, evidentemente.

Acabadas as folgas, retornávamos a Vitória para o Colégio Estadual, para as sessões de cinema do Politeama, Carlos Gomes e Glória, para a praia e o Governador Bley e passeio aos sábados o domingos na Costa Pereira. Mas isso já é outra história.

[Transcrito do livro O necrologista e outros escritos, IHGES, 1998.]

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João Bonino Moreira nasceu em Santa Teresa (ES) em 1931. Estudou em Vitória e, em 1949, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por vinte anos. Ele foi um dos talentos literários revelados pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo no auge de seu investimento na publicação de obras de literatura. (Para obter mais informações sobre o autor clique aqui)

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