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Fernando Achiamé: “Modo de estar no mundo”

Continuo dando razão a Rubem Braga que dizia mais ou menos desse jeito: sempre é constrangedor falar de si mesmo. Por isso que empurrei com a barriga, por uns dois anos, a elaboração deste texto para a página Bravos Companheiros e Fantasmas: Literatura do Espírito Santo do site www.estacaocapixaba.com.br. Sem contar as banalidades que um prático em poesia pode dizer quando teoriza sobre a arte. Feitas as ressalvas, aí vai.

Uma vez em certo monte
Ao atravessar uma ponte
Vi umas árvores belas
Com suas flores amarelas
Na suave natureza
Onde tudo é pureza
Como o olhar a pairar
No azul do mar.

Assim começava uma comprida “poesia” com o título de “A Natureza” que fiz aos onze anos (mudei algumas palavras depois). Adolescência é fogo, e escrever “poesias” acontece comumente: hormônios e sensibilidades à flor da pele. Continuei escrevinhando versos aqui e ali. A digressão estudantil entre Brasília (1965-66) e Rio de Janeiro (1967-69) decidiu minha aproximação com a literatura. Para cumprir o colegial, optei pelo curso clássico (na época, o científico era a alternativa mais escolhida); passei a estudar na Aliança Francesa e, em 1968, comecei a fazer Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, de onde fui expulso por “subversão” na também significativa era de 1969 que, como se sabe, só terá início quando o ano anterior terminar. Degustava alguma prosa, mas estava antenado, sobretudo, em poesia e conversava sobre ela com colegas e amigos — um gambá sempre cheira outro.

De volta a Vitória, concentrei-me na produção do trio maravilhoso Bandeira-Cecília-Drummond, além de Vinícius, e, se bem me lembro, em reler ou conhecer os cânones poéticos brasileiros — os coloniais, os realistas, os parnasianos, os simbolistas, os modernistas, os concretos. Dos estrangeiros, alguns sobressaíam na leitura — poesia russa moderna, muito Pessoa, muitos franceses (Baudelaire-Verlaine-Rimbaud, Mallarmé, Valéry, os surrealistas), haicais aqui e ali, Neruda, Garcia Lorca; Pound, mais perto de agora. E, se mal me lembro, tive contatos esporádicos com outros e outros cânones da poética mundial. Isso tudo para chegar, faz poucos anos, a uma conclusão evidente — só existem dois tipos de poesia, a boa e a má.

De maneira geral, ler versos é aborrecido; quer dizer, é aborrecido por sempre exigir algo a mais do leitor: uma certa concentração, um recolhimento apropriado, determinada erudição, transportes d’alma à la Teresa d’Ávila, ou alguma forma de distração. Para preservar os laços com a iniciação literária, mantenho de cor dois poemas de Drummond (“Nudez” — “Não cantarei amores que não tenho…” — e “Amar” — “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”), o soneto “Estátua falsa” de Mário de Sá-Carneiro (“Só de oiro falso os meus olhos se douram…”) e versos esparsos de alguns franceses. Ao escrever isto é que me dou conta de ser essa atitude uma espécie de voto, feito há muito tempo — enquanto trouxer decorados aqueles poemas, os meus compromissos com uma literatura viva não estarão frustrados.

Desde que comecei a dedicar-me à poesia, pouco redigia; ou seja, compunha poemas na cabeça e depois os esquecia. A perda desses poemas me limitou e me desanimou muito; levei tempo para descobrir que isso é um processo normal — para cada verso concretizado, se perdem vários outros. Nem sei mesmo se existe uma ligação forçada entre uma coisa e outra. A partir de certo tempo, passei a anotar algumas inspirações: é-me difícil relembrar uma ideia que tive para escrever; ou decorar o que escrevi (há exceções especialíssimas). Porque poesia assemelha-se a passarinho — é dono quem pega primeiro —, mas assemelha-se, sobretudo, a passarinho — para se sentir num breve instante e passar, como um insight-satori. Acredito ter criado essa expressão aqui e agora numa junção sem querer do Ocidente com o Oriente. Definir poesia como um insight-satori é, em si mesmo, um insight-satori, e o todo lembra Mário Quintana de mistura com o “samurai-malandro” Paulo Leminski.

Com licença, que vou anotar adiante a ideia-verso que tive mais cedo, a partir de uma observação pessoal, para um possível poema: nada mais solitário que, numa calçada vazia, o telefone público tocando para ninguém. (Todos nós somos observadores participantes das cenas da vida; só que os poetas costumam surpreender tais cenas de ângulos inusitados e registrar, num código próprio, esses assombros. As pessoas costumam refugiar-se na realidade, no cotidiano de pegar crianças na escola, pagar contas no banco, etc. Como qualquer outro ser humano, o poeta também pode usar a realidade como refúgio, mas para exercitar a sua arte só existe uma rota de fuga possível — a própria poesia.) Ao revisar esse texto, achei melhor fazer logo os versos:

ORELHÃO

Na calçada vazia, telefone toca para ninguém.
Passo ao largo, mas alguém insiste.
De viés, olho para a solidão da chamada.
Se atendê-la, serei quem?

Noto que estão juntos neste texto parte do primeiro e o último poema (até o momento, espero) de minha autoria; por isso é que corro até o final desta redação para colocar local e data.

Mas volto.

(Uma ideia para os escritores em geral, e os poetas em particular: compor uma obra computadorizada, nela incorporando todas as correções feitas, ou, pelo menos, publicar em conjunto as diversas fases da elaboração de um escrito. Deixar à mostra as correções e modificações textuais deve ser importante, pelo menos para a história da literatura — os originais de A Educação Sentimental, freneticamente corrigidos por Flaubert, não foram destruídos e estão na Biblioteca Nacional de Paris, servindo, por exemplo, de fonte histórica para Carlo Ginzburg redigir um belo ensaio. Veríssimo tem razão, da literatura só nos mostram o recém-nascido, sem os ferros e o sangue do parto. A solução, talvez, seja contentar-nos com o resultado final, ou tentar surpreender no interior do texto alguns indícios do processo de criação. Ou ainda, arrancar dos autores depoimentos como o presente…)

Em 1972, pela primeira vez, vi versos meus publicados, em edição mimeografada como se usava na época, por terem participado do recital poético Ultimato no teatro Carlos Gomes. Publiquei poemas numa coletânea editada pela extinta Fundação Cultural do Espírito Santo em 1974 (houve concurso, com comissão julgadora e tudo), numa outra coletânea organizada por Elmo Elton em 1982 (ambas com o nome de Poetas do Espírito Santo), e nos jornais de Vitória A Gazeta e A Tribuna (onde a diagramação era ousada e bonita), quando ainda se estampava poesia em jornais.

Cheguei a organizar um livro com poemas desta fase (anos 60/70); deixei-o de lado por não ter sido aceito em concurso nacional de poesia. Chamava-se Expedição Diversa e teve até um estudo (desaparecido?) de Oscar Gama Filho. Casamentos, filhos e trabalhos me tomaram tempo e lançaram meus interesses para outros campos, o que me fez, em parte, relegar a poesia ao virtual — continuava compondo em surdina, sem a prova dos nove da escrita e da exibição pública. Por isso é bom o autor escrever e publicar sua produção mesmo que depois se arrependa, como é natural acontecer; mas ela estará sempre ali, testemunha de uma trajetória criadora.

Fui amigo de Fernando Tatagiba e, por meio dele, conheci figuras que também escreviam, como Arlon José de Oliveira, Olival Mattos Pessanha, Carlos Chenier e outros (dos outros, alguns ainda estão vivos, tempus fugit, tempus fugit). Participei de uma mostra de poemas visuais que Tatagiba promoveu na Galeria Homero Massena; participei a contragosto, pois tinha consciência de que esse experimento já estava datado, mas participei vaidoso, adjetivo inerente a todo artista. Dos poetas capixabas atuais, gosto da trinca de ases: Valdo Mota, Miguel Marvilla, Sérgio Blank.

Identifico-me com os faits divers, os acontecimentos aparentemente sem importância pinçados da realidade, os fragmentos do que sucede com o passageiro do ônibus ou dentro de um processo administrativo, por exemplo. E não penso muito no seguinte mistério, mas gosto de saboreá-lo: falou que é poeta, surge logo uma cumplicidade, uma irmandade atemporal. Pois se Bandeira sente com o persa do século XIV, Hafiz (“Poeta de Chiraz, teu verso / Tuas mágoas e as minhas diz”), nós sentimos com os dois e quantos mais. É que a poesia extrai o perfume da essência humana (extrato = perfume = essência), e se constitui na verdadeira linguagem universal, que ultrapassa línguas, tempos e lugares, tudo o que for limitado no homem. Para uso interno, adoto a “Concepção poética antropo-onto-fenomenológica” ou “Querer-é-poder-em-verso”, movimento lítero-existencial que acabo de instituir ao digitar estas palavras e possuidor de dois axiomas (para mim, velhos de guerra): 1º — Todo ser humano é poeta (só querer); e 2º — Pode-se fazer poesia a partir de todas as pessoas, coisas e fenômenos (só querer). Sem esquecer nunca que são 10% de inspiração e 90% de transpiração: o carma do carme. Senão, vejamos.

Sempre gostei de modificar muito os poemas que faço, mesmo quando os considerava prontos (só em casos excepcionais, no entanto, mexo neles depois de publicados, por entender que nessa nova situação já não me pertencem). Mas tinha grande preguiça de reescrevê-los, à mão ou à máquina. A partir de 1995 intensifiquei a produção por escrito de poemas devido a fato, hoje corriqueiro, e que, no entanto, deve ser registrado: a utilização de um computador pessoal. Isso está de acordo com o que já disse: a obsessão de alterar os poemas, e a preguiça de fazê-lo. (De modo geral, poetas são chatos, entre outras coisas, por estarem sempre à procura domot juste; são enjoados também por considerarem que a verdade por eles descoberta é também a de todas as pessoas — o que nem sempre ocorre — e, numa espécie de loucura mansa, por falarem as verdades que os outros não dizem. Por isso, nunca devemos esquecer que na ficção poética tudo é verdade, e sempre lembrar — poesia é a verdade que deve ser dita.) Como o microcomputador contribuiu bastante para esse processo de fixar os versos na escrita e de os refazer incessantemente, às vezes, penso, semideus, que essa máquina (tida também como uma grande lata de lixo — provisória ou permanente — de textos) foi inventada só para que eu pudesse exercer mais produtivamente a criatividade poética.

A essa circunstância juntou-se, tempos depois, uma outra que ajuda muito no acabamento dos versos: o uso de dicionários eletrônicos, com suas definições, seus antônimos e sinônimos, ferramentas que podem estar sempre à mão do escritor digital. Parênteses: (deve ser interessante a experiência de ditar versos para um micro, na hora mesma em que são criados; e, em seguida, escutá-los na própria voz — mesmo um pouco distorcida —, para perceber o ritmo, o encadeamento da composição; mas sem essa de o poeta virar um tipo como aqueles executivos que ditavam memorandos autoritários para a secretária versada em estenografia).

Como qualquer autor, estou sujeito a variações: ocasiões de quase completo adormecimento criativo e, no extremo oposto, períodos em que quero poetizar tudo no mundo, transitando mais constantemente pelo meio-termo. Tenho alguns “projetos poéticos” recentes, mas não os revelo por receio de que não se concretizem (superstição mais comum do que se imagina entre escritores). Será que a maturidade de um autor é definida pela sua capacidade de transformar sonhos em projetos?

Participei de três números dos Escritos de Vitória, iniciativa da Prefeitura Municipal da capital capixaba, com uma crônica, um conto (os únicos que já fiz) e uma poesia. Em 2000 publiquei A obra incerta, construída com uns poucos poemas retirados da Expedição Diversa e com os elaborados nos anos 90. Participei, também em 2000, da coletânea A parte que nos toca — literatura brasileira feita no Espírito Santo, organizada por Miguel Marvilla e Reinaldo Santos Neves. Tenho pronto O livro simples ou Tudo por um triz (títulos provisórios), obra que reúne a produção recente.

Já paguei, e pago, tributo a burocracias diversas (fazendária, arquivística, cultural), à pesquisa histórica e ao magistério. Mas, para mim, o modo de estar no mundo, o traço-de-união (ou os traços-de-união, só nessa expressão existem dois) entre todas as atividades possíveis e imagináveis é fazer versos. Porque consola a alma, acalma-exalta o espírito, dá vazão aos sentimentos, cria-acaba com mundos à vontade, e humaniza — afinal, não é para isso que existe a poesia?

Ao repassar o presente texto, a última palavra que digitei foi colocada lá atrás, vai adiante, e significa também (Por que não? Valha-me a imagem batida!) verdadeiros livros de poemas em constante refazer — filhos.

Praia do Canto, em Vitória, novembro de 2003.
Fernando Achiamé

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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