Durante os seus longos e bem ou mal vividos 425 anos, o Espírito Santo, modificando-se, através dos tempos, na sua feição sócio-econômica, também sofreu mudanças na sua fisionomia folclórica. Nesta, porém, muito menos acentuadamente que naquela. O caminhar, precipitado ou lento, rumo ao progresso atual, não deformou de todo a alma de nossa gente. E se é verdade que a civilização foi talando os singelos e bárbaros costumes, criando novos hábitos de trabalho e de vida, não conseguiu, todavia, apagar ou delir, em certas manifestações do nosso povo, as primitivas marcas de origem.
O artesanato popular nos vem dos tempos aurorais da colonização, ou de antes. As rendas, as redes de pescar, o trançar dos vimes, o tecer dos fios, a cerâmica utilitária, o embarreio das casas de taipa e sapé, o fabrico de esteiras nos teares de bilros… tudo ainda se faz, entre nós, repetindo técnicas primitivas de trabalho. Pesca-se nos mares, rios e lagoas do Espírito Santo pelos mesmos remotos e rústicos processos doutros tempos: o arrastão, a rede de espera, os covos, as camboas, os juquiás ou jiquiás, o fachear para pegar lagostas… A caça ainda utiliza hoje fojos, armadilhas e pios que nos vêm de longes eras. Em vários, em muitos recantos da terra capixaba, não é raro ouvir o chô-o-pám! Do monjolo ou pilão d’água, ou do pilão de mão, socando, triturando, pilando café, arroz ou milho. E nas estradas, nos caminhos, nos atalhos, levantando poeira, passam ainda as tropas de burros, com a “madrinha” retinindo à frente e gemendo, chiando, cantando nos eixos — o carro de bois, “o primeiro veículo que rodou em terras do Brasil…” (Bernardino José de Sousa, Ciclo do carro de bois no Brasil, São Paulo, 1958, p.103).
Quantas tradições populares continuam, teimosamente algumas, perenes e vivas em terras do Espírito Santo! As simpatias, superstições e crendices aninhadas no coração crédulo da gente simples: os romances versificados (Nau Catarineta; O conde Flores; A donzela guerreira; O bernal francês; O cego andante; Juliana e Dom Jorge…) — romances velhos esmorecendo, pouco a pouco, na memória cansada das velhinhas contadeiras de histórias; as cantigas de roda (Barca nova; Constância; Pobre viúva; Giroflê; Gata espichada; Penedo vai; Senhora Condessa; Valentim; Periquito maracanã… centenas delas) transmitidas através do vozelo alegre das meninas; jogos e folguedos infantis (raia, pião, gude, barra-manteiga, picolê, carniça, chicote-queimado, berlinda, seu lobo, Bento-que-bento… uma porção deles) — repetidos, em rodopios, pulos, saltos e carreiras, nos buliçosos brincos dos meninos; a arte rústica do povo, suas técnicas de trabalho (rendas, redes, cestos, gaiolas, cerâmica utilitária e figurativa, aparelhos de caça e pesca…) — resistindo, aqui e ali, ao incoercível ímpeto da máquina, os acalantos, singelos e dolentes cantarolados ainda (graças a Deus!) pelas vovós e mamães capixabas, que também não esqueceram felizmente — para deleite e gosto nosso — como se preparam os nossos pratos saborosos; as moquecas de papa-terra, de judeu, de robalo; as paneladas de caranguejo e de siri; a tradicional torta da Semana Santa e a doçaria gostosa: os manuês, os quindins, as brevidades, a canjica, a papa de milho verde , melado, ambrosia, baba-de-moça, cocadinhas, beijos, pés-de-moleque, suspiros, sonhos, papos-de-anjo, banana frita…
(Fecho) É difícil — bem se percebe — dar, numa só palestra (mesmo alongado como esta nossa) todos os aspectos folclóricos de um povo como o capixaba. Teríamos de focalizá-lo em suas festas padroeiras, principalmente a nossa tradicional Festa da Penha — da qual, desde épocas remotas, sempre participaram, piedosos e contritos, romeiros daqui de Campos. Teríamos de observá-lo nas cerimônias da Semana Santa e de Finados, nas festas de Natal e Ano Bom, nos festejos juninos, na esfuziante folia carnavalesca. Teríamos de registrar a poesia do povo: os cantos de trabalho e de velório, as toadas de congo e de folias, as cantigas de roda (com a profusão multicolor das quadrinhas ou trovas), os pontos de jongo e caxambu, as embaixadas e marchas das dramatizações. Teríamos de contar aqui os nossos contos e “estórias”, as nossas lendas bonitas, desfiando, para vós, todo o lendário da Penha, por exemplo. Teríamos que perscrutar os mil redutos de trabalho: como os lavradores, os tropeiros, as lavadeiras, as oleiras, os pescadores, as rendeiras, estivadores, doqueiros… ouvindo como aí se fala a pitoresca língua popular, fixando a sua gíria, os seus modismos, seus provérbios, expressões, juras e frases-feitas. Teríamos de percorrer as áreas de colonização estrangeira e de lá trazer, por exemplo, os rituais dos casamentos pomeranos, os quitutes da cozinha italiana, e suas festas, seus costumes, sua língua — mesclados com que é nosso, num constante trabalho de aculturação e simbiose. Teríamos… e seria um nunca terminar — e é preciso pôr fecho a esta longa palestra, mesmo contrariando aquele ditado típico, segundo o qual — o capixaba começa, mas não acaba… e o auditório pacientíssimo não diz, mas sente que é preciso acabar…
Todos esses aspectos — civilizados ou bárbaros, ingênuos ou ardilosos, impregnados de lirismo ou de epopéia, de comicidade ou de dor — se bem coligidos e sabiamente bem dispostos e expostos — por outro que não eu — todos esses aspectos, velhos e novos, talvez que vos pudessem revela, através do nosso opulento e variado folclore, a bela, a forte, a misteriosa alma do povo capixaba.
[Tópicos da palestra pronunciada na cidade de Campos, em 26 de abril, a convite do Centro Cultural Campista e publicados em A Gazeta, Vitória-ES, em 22 de maio de 1960]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)