Na literatura oral de cada povo, há um sem número de expressões pitorescas, que constituem aquilo a que se dá o nome de “frases-feitas”, “modismos”ou “modos de dizer”.
Muitas dessas expressões nos vêm dos longes mais distantes, transmitidas dos séculos XIV ou XV, até hoje, no curso eterno e renitente da tradição oral.
Vamos aqui desfilar algumas delas, colhidas da mesma límpida e saudosa fonte, e seja a primeira, esta: Lá se foi tudo quanto Marta fiou!…[ 26 ]
Emprega-se tal locução quando um trabalho se desfaz, ou se gora um plano, ou se frustra um desejo pacientemente acalentado, ou quando “lá se foi tudo que se estava fazendo”, como o diz Antenor Nascente, que registra a expressão à página 166 do seu Tesouro da fraseologia brasileira.
A frase-feita é bem velha, constando dos Provérbios, de Pereira Frazão (n° 458), na forma: “Lá se vai quanto Marta fiou”.
Também a deparamos no interessante livro de José da Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer usados na província da Beira Alta (p. 91), com os mesmos termos da nossa versão: “Lá se foi tudo quanto Marta fiou!”
Confirmando a presença do dito nessa Província portuguesa, Jaime Lopes Dias a registra em sua preciosa Etnografia da Beira, volume VIII, página 208.
À primeira vista poderá parecer que essa Marta seja aquela a que se refere o Evangelho, irmã de Maria Madalena e de Lázaro — mulher diligente e ativa “que sempre andava afadigada na contínua lida da casa”(S. Lucas, X, 40). [ 27 ]
O confronto, porém, entre esse dito popular lusitano e expressões equivalentes em outras línguas, esclarecerá melhor a origem dessa Marta fiandeira.
Em breve estudo que fez sobre essa locução, Leite de Vasconcelos, em seus Opúsculos — Etnologia (vol. VII, parte 2ª, p. 668), refere os seguintes “adágios” de Itália e França, evidentes versões ou variantes do nosso: “Non è piú il tempo che Berta filava” — “Du temps que la reine Berthe filait”.
Citando a Mitologia alemã, de Jacó Grimm, o sábio etnólogo português esclarece que Berta ou “Berchta”, era, na Alemanha, tida como “advogada cristã das fiandeiras” (p. 671).
A substituição de Berchta ou Berta por Marta na expressão vernácula pode-se explicar ou pela semelhança dos dois nomes (Berta-Marta), ou porque “Marta era talvez o nome português que ao tempo mais se aproximava do germânico com que se liga Berhte e Perhta, antigo alto alemão” (L. Vasconcelos, idem, ibidem, p. 672). Também se pode admitir que a troca de nomes se tenha dado por influência de outros provérbios em que se encaixa o nome de Marta, possivelmente aquela mesma diligente mulher da Betânia: “Morra Marta. morra farta”; “Lá se haja Marta com seus polos”; “Em louvor de Santa Marta, quem comeu que parta” (L. Vasconcelos, op. cit. ibidem); “Bem canta: Marta, depois de farta” (A. Delicado, Chaves); “Mente Marta, como sobrescrito de carta” (Delicado), igual no espanhol: “Miente Marta como sobrescrito de carta” (Rodríguez Marin, op. cit. p.1.207).
Outra expressão usual ouvida à mesma fonte é: …por dá cá aquela palha,[ 28 ] empregada em certas frases a indicar o somenos pretexto, o fútil ensejo, a sem-razão maior para uma discussão, zanga ou briga entre duas ou mais pessoas.
O modismo vem de longe, e data do século XVI ou dantes. Camões o utilizou no Auto de Filodemo, no seguinte passo:
— “Logo parece moça brigosa, que, por dá cá aquelas palhas, dará e tomará quatro espaldeiradas.” (Camões, Obras completas, Coleção Sá da Costa, vol. III, p. 214).
Também referida está ele na, Comédia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, no seguinte trecho, à página 165: “…sucede que se vos assanha que ela por dá cá aquela palha põem a barca no monte, a fogo e a sangue…”
A expressão é ou era corrente na Espanha, tendo sido usada por Cervantes em Don Quixote, mas equivalente a “num átimo, num santiámem, num instante”. Veja-se: “…no tengays ingenio, ni habilidad para disponer de las cosas, y para vender treynta, o diez mil vassalos, en da came essas pajas”. (Cervantes, edição citada, tomo I, 1ª parte, Cap. XXIX, p. 143).
Também no tomo II, 2° parte, Cap. XLI, página 154, se lê: “assi querria, que aora te retirasses en tu aposento, com q vas a buscar alguna cosa necessaria para el camino, y enun daca la paja te diesses a buena cueta de los tres mil y trecientos açotes”.
Da mesma forma, na célebre Historia del famoso predicador Fray Gerundio de Campazas, do Padre Isla, encontramos o dito, por exemplo, no seguinte trecho, à página 48: “…no hallándose noticia en la Historia de que jamas haya havido guerras entre los Principes Christianos por la defensa de un Libro, que se les haya dedicado; siendo assí, que muchas veces las ha havido por quítame allá essas pajas.”
No Palito métrico, de Antônio Duarte Ferrão, à página 147, se depara, num soneto, a mesma velha expressão popular:
“Por dá cá aquela palha irem-lhe ao couro;
E quando os mais dão fogo á artilheria,
Não ser senhor de dar o seu estouro.”
Não poderia faltar a frase-feita, nos livros de Camilo Castelo Branco, em cuja obra quase sempre registrou a língua viva e colorida do povo. Lá está ela no livro Duas horas de leitura, no primeiro escrito, sob o título “Dous Santos não beatificados em Roma”, breve romance que, coincidentemente, se passa nos arredores de Leça da Palmeira, “o mais pitoresco retalho de terra que […] os olhos [do autor] viram”. O passo é o seguinte: “Basta de choramingar. Isto não é para sempre… O diacho das mulheres choram por dá cá aquella palha!” (p. 26).
Também estoutra expressão ouvíamos, outrora, à querida informante: E ela a dar-lhe, e a burra a fugir…[ 29 ] locução pitoresca, provavelmente retirada a um conto popular que se perdeu. Era ela empregada (hoje em dia não mais se nos depara) para indicar certa teimosia pessoal, certa insistência num desejo, erro ou capricho qualquer.
No citado livro de José da Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer, vamos topar, à página 46, essa frase-feita, no seguinte diálogo, que melhor lhe esclarece o emprego:
“…o rapaz prometeu-me que se emendaria e creio bem que foi daqui resolvido a isso.
— Pois sim; espera-lhe pela volta, e verás. Tu sempre acreditas em cada uma!
— Mas se ele me jurou que, de futuro, estudaria!
— E ela a dar-lhe e a burra a fugir! Pois ainda tomas a sério os protestos daquele menino?”
Esse mesmo dito vulgar é corrente na fala de várias personagens dos romances de Camilo. Podemos referir este expressivo exemplo:
— Muito obrigado, menina.
— Menina! tornou ela. Eu sou mulher, não sou menina.
………………………………………………..
— Que linda ia! Fiquei a pensar em si muitos dias…
— Mas esqueceu-se, e nem me conheceu agora. Uma rapariga em dez anos muda de cara; já estou velha…
— Não está sequer mudada, menina.
— E ele a dar-lhe! …não gosto que me chame menina. Chame-me Tomásia. (Coração, cabeça e estômago, p. 211)
De igual sorte em A filha do arcediago, às páginas 84, 151, 180 etc.
Um dos ditos mais constantes que, ultimamente, ouvíamos da Mãezinha, era este:
Saudades são securas,
Meu amor, dá cá a borracha…[ 30 ]
A “borracha” aí é o velho depósito de vinho ou água, usado em Portugal e no Brasil, como se pode ver de certas expressões e provérbios. Consta ela, por exemplo, do Anatômico jocoso, de R. Francisco Rey de Abreu Matta Zeferino, no capítulo “Sátira a um homem bêbado”: “Oh desventura de bêbado! Queres ver o teu ídolo? Adoras a uma borracha” (tomo I p. 208). Nos Adágios portugueses, de Antônio Delicado (p. 109) está averbado o provérbio: “Não vás sem borracha a caminho, e, quando a levares, não seja sem vinho”; e, à página 199, este, ligado talvez à referida frase-feita: “Borracha vazia não tira secura”.
Segundo o testemunho de mestre Câmara Cascudo, “a nossa borracha, saco de couro cortido para conduzir líquidos, preferentemente água, ‘é de uso contemporâneo no sertão do nordeste'”. (“Com Dom Quixote no folclore do Brasil”, estudo in Dom Quixote de La Mancha, José Olímpio, vol. I, p. 31).
A velha expressão popular foi incluída no livro de Fonseca Lebre, Locuções e modos de dizer, (p. 155): “Saudades são securas; oh amor, dá cá a borracha!.”
Também em Camilo Castelo Branco, vamos encontrar a mesma expressão que, de tanto uso, julgou o autor desnecessário registrá-la completa. Lá está ela no romance A filha do arcediago (p. 120): “— São saudades de sua amiga Rosa? — Não, minha senhora… eu não tenho saudades de amiga nenhuma. — Diz muito bem. — acudiu o jocundo negociante — saudades são securas…”
Igualmente em Duas horas de leitura, no trecho anteriormente citado do esboço de romance Dous Santos não beatificados em Roma, cujo enredo transcorre, quase todo, nas imediações de Leça da Palmeira: “O cavalheiro do hábito, que presenciara o quadro triste, resmungava um monólogo de que sua filha ainda ouviu: ‘Saudades são securas…’ Et coetera.”
No Cancioneiro de Viana do Castelo, de Afonso do Paço, se coletou a seguinte trovinha, sob n° 1.288, em que se encaixa, como pé-de-verso, a parte inicial da mesma frase-feita:
“Saudades são securas
Elas em mim reverdecem;
Contadas são maravilhas,
Triste de quem as padece”
No Brasil, deparamos a expressão no interessante repositório de material histórico e demológico Tradições e reminiscências paulistanas, de Afonso A. de Freitas. Nele o autor refere o velho dito português: “Saudades são securas, dá cá a borracha”, e a variante em que diz — foi ele “restringido e convertido pelo paulista: ‘Saudades não se curam, matam-se’ (p. 93).
Recordando, agora, no fecho deste livrinho, a sempre querida ausente, digo baixinho comigo:
Saudades são securas…
NOTAS
[ 26 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 27 ] Tal o que entendia o culto Alberto Faria, segundo se lê em Aérides, no capítulo ‘Paremiografia'(p. 221), com argumentos. porém, que não chegam a convencer.nos.
[ 28 ] Informação colhida de Albina da Silva Neves, mãe do autor.
[ 29 ] Idem.
[ 30 ] Idem.
[Alto está e alto mora — Nótulas de folclore. Vitória: edição do autor, 1954.]
Guilherme Santos Neves foi pesquisador do folclore capixaba com vários livros e artigos publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)