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Fuga de Canaã: romance revisitado

Durante cerca de um ano o escritor Renato Pacheco foi juiz em Santa Leopoldina, na década de 60.

Historiador e sociólogo, além de magistrado, impossível que, morando ainda que por pouco tempo em Santa Leopoldina, onde, em 1890, Graça Aranha também foi juiz, não se interessasse Renato por aprofundar seus conhecimentos sobre o caso de Guilhermina Lübke, cujos autos criminais passaram pelas mãos de Graça Aranha, dando ao maranhense o insumo literário para escrever um dos mais chocantes capítulos da literatura brasileira – a morte brutal, nos dentes dos porcos, do filho recém-nascido da infeliz Guilhermina, a Maria Perutz do romance Canaã.

Impossível também que o tema geral de Canaã não motivasse – como motivou Renato – à criação do romance Fuga de Canaã, que trata da decadência de uma família alemã no Brasil.

Apenas para relembrar, o romance de Renato se compõe das narrativas de quatro personagens diferentes, às quais ele denominou Livros, apresentados segundo o ponto de vista dos narradores.

Não sei se já foi feita por algum estudioso do romance a observação que faço agora: sua leitura provoca em mim remotos ecos de O som e a fúria, de William Faulkner.

Graças a informações que ouvi diretamente a Renato, ele foi um grande admirador de Faulkner, tendo lido vários de seus romances, dentre os quais naturalmente O som e a fúria.

De saída, em reforço do que eu disse, estabeleçam-se os dois seguintes liames entre O som e a fúria e Fuga de Canaã: ambos têm por objeto a ruína de famílias ligadas à vida rural de regiões profundas (em Faulkner, o sul dos Estados Unidos; em Renato, o vale montanhoso do rio Santa Maria da Vitória, em Santa Leopoldina); além disso, nos dois romances, a história é narrada por quatro personagens, cujos relatos compõem o complexo arcabouço que forma o contexto estrutural das duas obras.

Mas não é só.

Tanto O som e a fúria quanto Fuga de Canaã se caracterizam, estilisticamente, pelo chamado fluxo de consciência, com que cada narrador dos capítulos de que se constitui o todo da história transmite a sua versão individualizada para conhecimento dos leitores.

Sabe-se que o recurso ao fluxo de consciência, com maior ou menor complexidade narrativa, foi usado por escritores em geral, com destaque absoluto, dentre os estrangeiros, para Joyce, Proust, Virginia Woolf, Faulkner, Cortázar, além de outros; e, no Brasil, com ênfase para Clarice Lispector. Renato dele se valeu em Fuga de Canaã – e o fez muito bem, no meu modesto entendimento.

Cite-se como ilustração o seguinte trecho do Livro Terceiro do romance, em que são expostas as tumultuadas confissões de Helmut Jank ao seu psiquiatra:

Eu fujo de mim mesmo, para um lugar onde possa resolver o enigma da vida. Mas doido, doido, não sou. Beber sim, bebia pra valer. Tenho é nojo de tudo que encontro, e horror pelo demônio que o lazarento colocou dentro de mim. A culpa é minha ou dele, ou de ninguém? Se minha, a lembrança estará comigo até a morte. Nem padre, nem juiz, nem médico (o senhor me desculpe), ninguém poderá purificar-me, não há cordeiro nem azeite que me expiem. Minha orelha, meus dedos não terão sangue que baste para começar vida nova. A praga veio e foi. Mas, limpar-me? Se matei ou não, às vezes vejo tudo como um pesadelo.

Aos leitores do romance, com base nas narrativas intimistas dos seus personagens, compete juntar as peças esparsas do quebra-cabeça que desvendará (tanto quanto possível) o quadro geral da narração em que soçobram os próprios narradores, envolvendo, de cambulhada, os demais partícipes da trágica saga familiar.

Além disso, no caso de Fuga de Canaã, evidencia o uso da técnica do fluxo de consciência o fato de os depositários das confidências narradas – o pastor-pai, o juiz de direito, o jovem psiquiatra e o padre, em cada um dos episódios capitulares do romance – não emitirem uma palavra sequer, no curso de cada relato que lhes é contado.

Funcionam, assim, como ouvidos sem voz, repositórios mudos e passivos do que lhes é dito, fazendo, no texto, o papel do leitor que toma conhecimento da história contada por pedaços – e contada num estilo linguístico que não difere de personagem para personagem.

Com muita propriedade observou Andréia Delmaschio no estudo “Herman e Helmut: duas faces da orfandade em Fuga de Canaã”, publicado na coletânea Reino conquistado: “Poder-se-ia dizer que o narrador de Renato Pacheco é muitas vezes – porque são sempre vários os seus narradores – uma espécie de escritor.”

Tudo isso faz de Fuga de Canaã a obra literária mais inquietante, intrincada e densa de Renato Pacheco, logo ele, que primou pelo estilo de narrar claro, econômico e sem rebuscamentos. Ele mesmo me disse, quando voltávamos num sábado de manhã da Livraria Logos: “Luiz, eu escrevo, mas não sou um estilista.”  

Dentro desta ótica, é licito perguntar se a mudança de técnica narrativa que Renato adotou quando escreveu Fuga de Canaã, constituindo exceção à regra da simplicidade que presidia sua escritura romanesca, não objetivava estabelecer um paralelo consciente com O Som e a Fúria.

Vamos deixar claro que não estou fazendo nenhum juízo de valor comparativo entre Renato e Faulkner, quanto ao emprego do fluxo de consciência como técnica literária. Nem o próprio Renato certamente receberia de bom grado este comparativo.

Seja como for, o tema aí está posto dentre muitos outros que Fuga de Canãa propicia para considerações e estudos críticos. À guisa de exemplo, podem-se citar os seguintes:

1. O diálogo literário entre Fuga de Canaã e o processo criminal de Guilhermina Lübke (tantas vezes evidente no romance);
2. O folclore, o social e o etnográfico nas páginas do romance;
3. A ambivalência de personagens reais e ficcionais no romance (basta dizer que até meu pai, Guilherme Santos Neves, faz uma ponta na história);
4. O dialogo literário entre os romances Fuga de Canaã e Canãa, de Graça Aranha, tema sobre o qual já se debruçou Andréia Delmaschio;
5. A informação com valor historiográfico no romance.

Sobre este último item, eu mesmo já tive oportunidade de apontar, em trabalho apresentado no Bravos Companheiros e Fantasmas – V Seminário sobre o Autor Capixaba, ocorrido na UFES em 2012, um texto analisando a presença do registro historiográfico com valor testemunhal na obra de Pacheco, em que me vali dos romances A oferta e o altar, Fuga de Canaã e Reino não conquistado.

É claro que com as sugestões apresentadas não esgotei as possibilidades de estudos que Fuga de Canaã enseja numa possível convocação a maiores aprofundamentos críticos-literários, se é que já não foram feitos, o que não foi meu propósito nesta apreciação sem aprofundamentos acadêmicos.

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Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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