Era mais uma dessas terças, e estávamos mais uma vez naquela porra daquele clube das terças: Rogério Coimbra, João Luiz Mazzi, Chico Moraes, Paulinho Faria, Luiz Romero de Oliveira, além de mim e da porra do narrador, que não vai narrar coisa alguma hoje. Chico levou um saquinho de biscoitos integrais de girassol, e deixou ali à mão de todos. Achei uma merda mas comi, e os outros comeram também, e dentro em pouco acabou e fui obrigado a reclamar com Chico que um saquinho só era pouco. Rogério veio convalescente dos efeitos brabos de uma bronquite associada a uma batida de carro que por quase quase não lhe rebentou os peitos. Batida por batida, está feliz porque o médico finalmente o liberou pra tomar a de limão. Beto Freire chegou trazendo numa das mãos a pasta, na outra uma cadeira pra pasta sentar, que só tinha uma cadeira vaga na mesa. Chegou berrando que prazer inoxidável em ver vocês outra vez. Tinha tempo que não participava das sessões do clube. Paulinho disse: Beto, você ficou reprovado por falta. Beto está todo saudadoso, como se dizia em português no tempo de Adão cadete. E Beto saudadoso é um porre. Está cheio de amizade atrasada pra dar pros amigos. Parece um veado e não é. A mim me pespega um beijo no topo do coco, aos gritos de I love you. Não satisfeito, ainda exige: Diz I love you too pra mim, diz! I love you too, Beto, é uma trolha no seu coo.
Mas não vou ficar aqui historiando as bobagens que se dizem lá naquele clube. Não sou narrador oficial de porra nenhuma. O que interessa é que Rogério levou pra mostrar pra gente a lista “Os 20 discos da ilha deserta” que o crítico de jazz Luiz Orlando Carneiro publicou no Jornal do Brasil. Lista que o próprio Rogério classificou de um tanto acadêmica, por conta da inclusão de certas obras-primas que ninguém ouve, em ilha deserta ou não. Tipo Early Ellington e alguma coisa dos Hot Seven de Louis Armstrong, tudo gravação feita entre 1925 e 1930, por aí. Rogério disse: Eu sei que não é fácil fazer uma escolha dessas. Mas falta emoção nessa lista, falta emoção.
A porra da lista deu um giro à roda da mesa. Luiz Romero gostou da inclusão do disco Sonny Rollins with Coleman Hawkins, que ele tem. E que eu não tenho porque não comprei nem me lembro mais por que razão de peso. Beto gostou da inclusão de Pithecanthropus Erectus, de Charles Mingus, que ele nunca ouviu mas diz que adora o título do disco, e fica repetindo e saboreando com volúpia as duas palavras. Aposto que na leitura dele pitecantropo ereto é um homem-macaco de pau duro, doido pra encontrar uma fêmea da espécie e mandar o porrete. João Luiz Mazzi esquadrinha o recorte e anuncia triunfal que não tem nem um só daqueles vinte discos. Chico fica tristonho de não ver ali na lista o disco Dizzy Gillespie Plays Duke Ellington, um dos seus favoritos. Paulinho não está nem aí pra lista, e diz que ou levaria todos os seus discos pra uma ilha deserta ou levaria um radinho de pilha. Fernando Achiamé não diz porra nenhuma, porque não está presente, entrou o ano cabulando as reuniões do clube. André Gurgel (que chegou lá pelas tantas, também reprovado por F) diz que o disco Free Jazz, de Ornette Coleman, que está na lista, é um dos discos mais chatos que ele já ouviu. E olha que André já ouviu de um tudo, desde os cinco ceguinhos do Alabama até Ahmed Abdul-Malik tocando oud, um alaúde maometano, acompanhado por um maluco tocando kanoon, um instrumento de 72 cordas, e outro maluco tocando darabeka, um tambor do deserto.
Aí Rogério com modéstia quase sub-reptícia apresentou a lista dele, feita a toque de caixa naquele mesmo dia. Previsivelmente, Kind of Blue, de Miles Davis, e The Village Vanguard Sessions, de Bill Evans, encabeçavam a lista. Dei uma bispada rápida. Vi coisas como The Bridge, de Sonny Rollins, Giant Steps, de John Coltrane, Know What I Mean, de Cannonball Adderley, West Side Story, de Oscar Peterson, European Concert, do Modern Jazz Quartet. E The Köln Concert, de Keith Jarrett, que uma vez eu fiz uma namorada minha ouvir, que gostava de maçonaria e era rosa-cruz, e ela aprovou logo de estalo, dizendo: Parece música new age.
O narrador estranhou que não tinha nada de Charlie Parker na lista de Rogério. Disse Rogério: O que eu não gosto nos discos de Parker é o anacronismo entre ele e os outros músicos. Os outros estão tocando no presente, ele está tocando no futuro. Por isso o disco dele que eu gosto de verdade é a trilha sonora do filme Bird. Vocês sabem, pegaram as gravações de Parker, apagaram os músicos da época e acrescentaram músicos de hoje tocando junto com ele. Pela primeira vez, Parker pôde tocar com músicos do seu próprio tempo. Alguns deles nem tinham nascido quando Parker morreu.
Luiz Romero virou-se pra mim e disse: Taí, eu levaria pra ilha deserta dois discos que você me recomendou. Um é o disco de Louis Armstrong tocando os blues de W.C. Handy. Outro é o disco de Art Pepper que você gravou três faixas pra mim, inclusive aquela versão de “Summertime”. Se o disco todo for naquele nível, my boy, deve ser soberbo. Fiquei feliz com a opinião de Luiz Romero. E levaria também, acrescentou ele, aquele disco de Stan Getz com João Gilberto. Já não fiquei tão feliz com a opinião de Luiz Romero.
Pois eu, disse João Luiz, levaria Thelonious Monk, levaria Art Pepper, levaria aquele disco After Hours, com Thad Jones, Frank Wess, Kenny Burrell, Mal Waldron, e levaria The Seance, de Hampton Hawes. O cara é uma foda ao piano, principalmente tocando “My Romance”. Aliás, quem me vendeu esse disco e levou uma manta danada foi Garibaldi. Aí João Luiz ri, rá, rá, e varre com a mão uma poeira imaginária do meu ombro.
Levei manta nenhuma, disse eu. Tem um baterista ali, um pato Donald da vida, que estraga o disco. Donald Bailey. Dá porrada pra cacete.
E o narrador tinha de perguntar: E o que que você me diz da lista do Jornal do Brasil, Garibaldi?
Olha, respondi com serenidade, se é pra levar pra uma ilha deserta, até que eu gostei da lista. Tirando uns cinco ou seis, os outros servem realmente pra você levar pra ilha, abrir um buraco na areia, enterrar tudo dentro e deixar essa merda apodrecendo lá bem devagar. Mas o que me irrita mesmo é ver que mais uma vez Miles Davis aparece como uma espécie de Mr. Jazz: passa por ser a personalidade jazzística do século. Ele tem três discos na lista; tem mais discos do que Ellington, do que Armstrong, do que Gillespie, do que Parker. Tem mais discos do que todo mundo. Isso pra mim é um absurdo: qual a razão da deusificação desse cara? Tenho pensado muito sobre isso e um dia ainda formulo uma teoria a respeito.
Faz a sua lista também, Garibaldi, alguém sugeriu.
Não me cheirou mal a sugestão, até porque de já hoje que eu vinha coçando pra fazer algo semelhante. Aí decidi que era agora ou nunca. Estamos em tempo de listas. Assim, saí do clube fui direto pra casa fazer a minha lista dos melhores discos de jazz do século. Rogério tinha razão quando disse que não era fácil. Não foi fácil. Tanto que aumentei o número de vinte pra vinte e cinco e depois de vinte e cinco pra trinta. Mesmo assim muita gente boa ficou de fora. Mas fiz. E quem quiser botar defeito que bote, mas pode ter certeza que vai ser mandado tomar no cu.
Eis aqui a minha lista.
GARIBALDIANA
OS TRINTA MELHORES DISCOS DE JAZZ
NA MODESTA OPINIÃO DE JOSÉ GARIBALDI MAGALHÃES
Pra começar, vou relacionar os discos que também estão, não sei por conta de que milagre, na lista de Luiz Orlando Carneiro. São apenas três:
Um – The Complete Lester Young on Keynote. São gravações de dezembro de 1943 e de março de 1944, com duas formações diferentes, quarteto e septeto. O quarteto de 1943 é do caralho. Além da presença de Johnny Guarnieri ao piano, a cozinha tem Slam Stewart no baixo, que fazia o instrumento cantar em seus solos com arco, e o grande Big Sid Catlett na bateria. Já o septeto é um típico Kansas City Seven, formação que Count Basie empregava como uma espécie de orquestra de bolso. O próprio Basie está ao piano. Lester está alegre e à vontade em ambas as sessões. Nem sonha que o espera, logo a seguir, um pesadelo: a experiência traumática do exército, que o transformou de Lester Young, músico de jazz, no Soldado Raso 39729502 e culminou numa corte marcial por uso de maconha.
Dois – Jazz at Massey Hall. Em 1953 se apresentou no Massey Hall de Toronto um quinteto de jazz composto nada mais nada menos do que por Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Bud Powell, Charles Mingus e Max Roach. Quando foi lançado o disco, Parker era contratado da Verve, e por isso aparece na ficha técnica com o pseudônimo de Charlie Chan. Chan Richardson era a mulher dele na época, e Charlie Chan era um personagem de ficção que fazia muito sucesso em livro e em tevê, um detetive de Honolulu de origem chinesa. Nessa noite inesquecível Parker tocou com um sax de plástico, mas os mitólogos do jazz preferem cultuar o sax de plástico de Ornette Coleman. No cu. Mingus gravou o concerto em equipamento doméstico e preservou pros ouvidos da posteridade a música do que foi chamado de “maior concerto de jazz de todos os tempos”. (Donde se pergunta: por que o veado do Mingus não fez a mesma coisa com o maior quarteto de jazz de todos os tempos, que se apresentava no Open Door em tardes de domingo, também em 1953, com ele mesmo ao baixo, Parker ao sax-alto, Thelonious Monk ao piano e Roy Haynes à bateria? A foto do quarteto em ação serve pra gente curtir a maior frustração jazzística do século. Esses músicos tocaram juntos e a música se perdeu no ar.)
Três – Pithecanthropus Erectus. Esse disco de Charles Mingus gravado em 1956 é, segundo reconhece o próprio Luiz Orlando Carneiro, uma espécie de anunciação do free jazz. Sim, digo eu, mas um free jazz que dá pra ouvir e gostar, diferente do free jazz de Ornette Coleman, que é bom pra enterrar em areia de ilha deserta e mijar em cima. A faixa título é uma pequena suíte em quatro movimentos (evolução, complexo de superioridade, declínio e destruição) que tenta descrever em dez minutos quinhentos mil anos de história da humanidade, e acho que consegue. “A Foggy Day” reproduz, com buzinas, apitos, sirenes, o cacete a quatro, os sons de rua num dia de nevoeiro em San Francisco, com direito a você ouvir, no final da faixa, o som de uma moeda de dez centavos que escapole da mão de um bêbado e pinga no chão. Sou mais o tinido dessa moeda batendo na calçada do que a discografia completa de muito jazzman de nome.
A seguir, os títulos de minha própria escolha. Começo com seis músicos que também constam da lista de Luiz Orlando Carneiro, só que com discos diferentes.
Quatro – Quero lá saber de ouvir os Hot Seven de Louis Armstrong. Até tenho um desses velhos discos, mas a minha preferência renitente é por Louis Armstrong Plays W.C. Handy, de 1954, em que Armstrong toca e canta composições sagradas como “St. Louis Blues”, “Beale Street Blues”, “Aunt Hagar’s Blues”, “Hesitating Blues” e “Memphis Blues” (que numa versão instrumental já tinha rendido uns trocados a Handy como tema da campanha de um certo Mr. Crump pra prefeito de Memphis). É um disco do caralho. O repertório parece feito sob medida pra voz de lixa e pro trompete de prata de Armstrong.
Cinco – Coleman Hawkins é o Colombo que colocou o saxofone no mapa do jazz. Foi grande a tentação de incluir na lista The Complete Coleman Hawkins on Keynote, em quatro volumes, em que aparecem, em várias sessões de gravação feitas durante o ano de 1944, os grandes nomes do jazz daquela década: Roy Eldridge, Buck Clayton, Charlie Shavers, Jack Teagarden, Don Byas, Harry Carney, Teddy Wilson, Earl Hines, John Kirby, Slam Stewart, Denzil Best, Cozy Cole, Sid Catlett, entre outros. Foi grande a tentação e acabei não resistindo. Inclusive porque, embora mais volumosa, esta coleção se coaduna com a de Lester Young feita pro mesmo selo.
Seis – De Charlie Parker, que diz a lenda que foi chamado Bird não por ser canoro, embora o fosse, mas por ter roubado um frango de um quintal quando em excursão pelos estados do sul, escolhi o concerto Jazz at the Philharmonic 1946. Por duas razões. Primeira: ali Parker está ao lado de Lester Young, que foi a grande influência dele e que ele, de sacanagem, sempre negou. Segunda: foi nessa ocasião que Parker tocou seu célebre solo em “O Lady Be Good”, que ficou na história e no folclore do jazz. Conta-se que, quando engrenaram esse tema, Lester Young não estava no palco, tinha ido tomar uma birita ou dar uma mijada. Depois de um solo de piano de Arnold Ross, Parker veio como quem não quer nada e deu o recado dele. Mas que recado do caralho! O solo foi tão sublime que nenhum dos outros músicos presentes — o sax-altista Willie Smith e os trompetistas Howard McGhee e Al Killian — teve colhão pra tocar em seguida. Ross já tinha feito um solo no início, não podia fazer outro. Criou-se um limbo em que só a seção rítmica tocava, à espera de um solista, e nada de um solista se apresentar. Pra dar tempo ao tempo, o jeito foi Billy Hadnott engatar um solo de contrabaixo que não estava no programa enquanto se ia buscar a única figura capaz de responder ao solo de Parker: Lester Young. Depois de um longo solo de contrabaixo, lá vem Lester pra felicidade geral. “O Lady Be Good” era um dos seus temas de estimação, e ele mais uma vez tirou o tema de letra, com seu estilo cricaré, ou seja, preguiçoso. Depois dele, cada qual pôde então dar o seu recado sem pânico maior.
Sete – Dizzy Gillespie entra engalanado com o disco A Portrait of Duke Ellington, de 1960. Pra gáudio, espero, de Chico Moraes. Esse foi um dos discos em que aprendi a gostar de jazz. Aí Gillespie toca temas clássicos do cancioneiro do jazz, como “In a Mellow Tone”, “Perdido”, “Johnny Come Lately”, “Sophisticated Lady”, e “Do Nothin’ ‘Til You Hear From Me”. E um “Caravan” que só tem uma discreta passagem latina que nem chega a ofender. Os arranjos de Clare Fischer são do caralho e Gillespie está inteiro ali, com toda a sua lábia de enorme trompetista do jazz. Se Louis Armstrong Plays W.C. Handy é a interpretação definitiva dos blues clássicos, vejo este disco de Gillespie como a leitura mais do caralho que se fez do cancioneiro ellingtoniano.
Oito – Thelonious Monk, como Art Pepper, nunca fez um disco que não fosse um bom disco. Dele escolhi Monk’s Dream, de 1962, com Charlie Rouse ao tenor, John Ore ao contrabaixo e Frankie Dunlop à bateria. É um dos discos mais alegres e exuberantes do jazz. Monk está bem com o mundo. Também pudera, depois de tanto bater aquele piano duro no miolo mole do mundo, o mundo tinha aceitado incondicionalmente a sua música. Tinha entendido que aquele estilo cheio de desvios de sintaxe e de vícios de linguagem era um estilo de gênio.
Daqui pra frente, não há praticamente nada em comum entre as minhas seleções e as de Luiz Orlando Carneiro. Os discos não estão relacionados por ordem de importância.
Nove – Benny Goodman, Live at Carnegie Hall. Esse concerto de 1938 é uma espécie de evangelho do swing, e dele participaram os grandes músicos da época, como Count Basie, Lester Young, Gene Krupa, Teddy Wilson, Lionel Hampton, e muitos outros. A versão de “Sing Sing Sing” tem solos memoráveis de Goodman ao clarinete, de Harry James ao trompete, e de Jess Stacy ao piano, este que foi um dos solos mais surpreendentes da história do jazz. Essa faixa é um dos obeliscos musicais do século XX.
Dez – Os concertos do JATP, criados por Norman Granz, foram criticados por induzirem os músicos a digladiar entre si em duelos ferozes e a fazerem música pra sacudir as platéias. Lester Young, por exemplo, foi instruído pra buzinar com mais freqüência em seus solos, que as platéias iam à loucura com a buzinagem dele. Coisa que ele se negou a fazer, que afinal tem hora que dá pra buzinar e tem hora que não dá. Mas o JATP institucionalizou e divulgou mundo afora um dos elementos mais legítimos do jazz, que é a jam session. O disco Jazz at the Philharmonic: the First Concert, que reproduz o primeiro concerto da série, realizado em Los Angeles em 1944, é pura alegria. As presenças de Nat King Cole tocando um piano do caralho, de Les Paul à guitarra e de Illinois Jacquet ao tenor, somadas à presença audível e quase visível do público, dão o peso e a medida do espetáculo.
Onze – Art Tatum, The Complete Tatum Group Masterpieces, volume 1. Que Art Tatum foi um gênio do piano ninguém há de negar. Mas apesar disso me parece técnico demais e barroco demais e, o que é pior, repetitivo demais. As duas coleções que gravou nos últimos anos de sua vida são ovacionadas como um grande arquivo musicológico. Mas as suas performances em piano solo me deixam frio, e olha que eu bem que queria gostar, e as sessões em grupo não me empolgam. À exceção dessa, de 1954, com Benny Carter ao sax-alto e Louis Bellson à bateria. Só o blues de abertura já é antológico, e os solos de Benny Carter, muito elegante e muito escorreito como sempre, dão vontade de dançar.
Doze – Já me citaram em algum lugar dizendo que grande parte do legado de Clifford Brown está prejudicada pela presença do baterista Max Roach, que praticamente sola em todas as faixas, como se fosse, o filho da puta, o sócio majoritário do quinteto. Por isso fujo das gravações da Emarcy e prefiro, como registro da obra desse trompetista incandescente, os dois volumes de A Night at Birdland, de 1954. O que temos aí é o embrião dos Jazz Messengers de Art Blakey, com Horace Silver ao piano, e cintilando acima de tudo o trompete escancarado de Clifford Brown. Trompete é por natureza e vocação um instrumento efusivo, expansivo, extrovertido. Fazer carreira, que nem fez Miles Davis, em cima de um trompete assurdinado tem odor de perversão.
Treze – É, os Jazz Messengers entram na minha lista com discos atípicos, pois agora é a vez de Art Blakey’s Jazz Messengers with Thelonious Monk, de 1957. O grupo de Blakey nessa época tinha Johnny Griffin ao tenor, Bill Hardman ao trompete e Spanky DeBrest ao contrabaixo, que adotam com entusiasmo a gramática musical de Monk. Todos os solos de Monk nesse disco são do caralho, especialmente o de “Blue Monk”, em que a parcimônia de notas dá a impressão de que Monk está tocando com conta-gotas.
Catorze – Art Pepper, Modern Art. O que temos neste disco de 1957 que o torna digno de referência e de reverência? Temos a mais maravilhosa interpretação de “Summertime” jamais executada no sistema solar, além de dois blues quintessenciais, “Blues In” e “Blues Out”. Blues é um caso sério, porque é que nem cantiga de roda, pega a gente pelo pé do imaginário. Ou seja, a gente gosta por instinto. Você ouve uma daquelas “blue notes”, por mais banal que seja, e já entrega (vai rimar) o ouvido de bandeja. Mas na verdade são poucos os músicos de jazz que tocam um blues de forma original. Monk é um deles, Art Tatum é outro, e Clifford Brown, e Art Pepper. Isso Pepper prova nesses dois blues. Quem está acostumado com os clichês dos blues, que aliás são os únicos clichês dignos de respeito, vai até estranhar essas duas interpretações. E se todo mundo citou “Yankee Doodle” alguma vez, Art Pepper, suponho, foi o único que fez essa citação num blues. É o que ele faz em “Blues Out”. Cita a mais citada das citações num contexto inédito e de forma original: faz que vai citar, não cita; faz que vai citar, não cita; aí cita. Um portento e nem sabia que era.
Quinze – Lennie Tristano. Tristano tem uma discografia muito curta pro tamanho de sua importância. O disco que escolhi na verdade são dois lps num cd, Lennie Tristano, de 1956, e The New Tristano, de 1962. Do primeiro consta “Requiem”, um dos melhores blues do século, além de algumas gravações ao vivo com o discípulo Lee Konitz ao sax-alto. O segundo contém uma série de tours-de-force de Tristano em piano solo. Gosto daquela mão esquerda imensa e densa marcando o tempo com notas mais pesadas que o ar, enquanto aquela mão direita se solta andarilha pelo teclado produzindo uma espécie de monólogo interior à la Molly Bloom, expresso sob a forma de longos períodos compostos tanto por coordenação e subordinação como por descoordenação e insubordinação. Que diabos será que eu quis dizer com isso tudo?
Dezesseis – Count Basie. Como pôde Luiz Orlando Carneiro incluir três discos de Miles Davis na lista dele e deixar Basie de fora? Na minha opinião, Duke Ellington foi o grande compositor do jazz, e Count Basie foi o grande band-leader. As várias orquestras de Basie, tanto as do Velho como as do Novo Testamento, deixaram um rastro de alegria ao longo deste século. Quase escolhi um dos discos dos anos trinta, com a presença indelével de Lester Young, mas acabei optando por um disco mais explosivo, adequadamente intitulado Atomic Basie, com gravações feitas em 1957 e 58.
Dezessete – Jimmy Giuffre, Western Suite, 1958. A formação do grupo nessa gravação já é um atentado ao pudor: clarinete (Giuffre), trombone (Bob Brookmeyer) e guitarra (Jim Hall). Sou possuidor dessa gravação em formato de bolacha preta. O lado 1 tem a “Western Suite”, uma composição de Giuffre em quatro movimentos inspirada na atmosfera do deserto do sudoeste dos Estados Unidos, com apaches e tudo. Nunca ouvi nada tão ruminativo nem tão introspectivo, e no entanto não enche o saco como as ruminações e introspecções de Miles Davis, talvez porque tenha mais alma e mais drama. O lado 2 tem versões de dois clássicos, “Topsy” e “Blue Monk”. Esse disco é uma obra prima de conjugação de elementos tradicionais e de vanguarda.
Dezoito – Dave Brubeck. Rogério Coimbra incluiu Time Out, de 1959, na lista dele. É um puta disco, que marca a busca e a descoberta de compassos insólitos no jazz, e que de quebra ainda contém dois grandes hits, “Blue Rondo a la Turk” e “Take Five”, e uma das grandes baladas jazzísticas do século, “Strange Meadow Lark”. Assino em baixo.
Dezenove – Charles Mingus, The Black Saint and the Sinner Lady. Este disco, gravado em 1963 com uma banda de onze músicos, revela em que termos grandiosos Mingus concebia o jazz. A música é grandiloqüente, altissonante e turbulenta, mas também de um lirismo em carne viva. Faço questão de citar as participações gloriosas de Charlie Mariano ao sax-alto, de Jerome Richardson ao sax-barítono e soprano e de Quentin Jackson ao trombone, além do soberbo acompanhamento de Mingus ao contrabaixo.
Vinte – Shelly Manne. Quando a Atlantic organizou sua coletânea de jazz da West Coast estampou na capa a figura de um baterista representando Shelly Manne. De fato, foi ele uma espécie de figura de proa do cool jazz da Califórnia. Gravou pra caralho e, embora líder de dezenas de discos, embora proprietário de um night-club histórico, o Buraco do Shelly, nunca pretendeu aparecer mais do que a banda, diferente, portanto, de bateristas egocêntricos como Max Roach e Buddy Rich. A série de discos gravados no Black Hawk, um night-club de San Francisco, em 1959, compreende cinco volumes. São todos do caralho, mas escolhi o primeiro volume, que tem uma versão jazzística em ritmo de pau dentro que redime a rumba “Poinciana”, e duas versões da valsa “Blue Daniel”, de Frank Rosolino.
Vinte e um – Earl Hines. Como Coleman Hawkins, Hines atravessou várias décadas da história do jazz sem envelhecer. Quando Louis Armstrong começou a inventar o jazz, no final dos anos 20, Hines estava a seu lado ao piano. Nos anos 40 Hines teve uma orquestra que abrigou o rebelde do bop, Charlie Parker. Depois de um período de ostracismo, Hines ressurgiu das cinzas nos anos 60, tornando-se um dos mais instigantes solistas de piano jazzístico. Entra na lista com Live at the Village Vanguard, gravações de 1965 na companhia de um inspiradíssimo Budd Johnson ao tenor e ao soprano.
Vinte e dois – Art Pepper. Tem duplicata nesta lista, dirá o leitor. Mas Art Pepper tem duas fases distintas em sua carreira. Na primeira fase, que vai até 1960 mais ou menos, Pepper é alegre, jovial, cristalino, embora sempre pungente em seus blues e em suas baladas. Na segunda fase, que vai de 1975 até sua morte em 1982, a alegria dá lugar a uma euforia mortificada e o lirismo é ácido e cheio de agonia. É a música de um músico que desperdiçou quinze anos de sua vida sem soprar uma só nota e que agora toca contra o relógio, tentando aproveitar o que lhe resta de vida pra mostrar, sobretudo a si mesmo, que é o melhor sax-altista do mundo. E o crítico Scott Yanow disse que, ao morrer, aos 57 anos, Pepper era realmente o melhor sax-altista do mundo. Desse período de redenção de Pepper escolhi Arthur’s Blues, gravação de 1981. O blues-título é o testamento do artista.
Vinte e três – Charles Mingus. Agora uma triplicata? Sim. Charles Mingus é tão múltiplo a ponto de ser inesgotável, apesar de umas cagadas fedorentas como Tijuana Moods. Em Blues & Roots, de 1959, Mingus se debruça exclusivamente sobre os blues, e o resultado são seis leituras diferentes, todas elas do caralho. E se na lista de vinte de Luiz Orlando tem três discos de Miles Davis, por que é que na minha lista de trinta não pode ter três de Charles Mingus? Tietagem à parte, Mingus foi um músico muito maior do que Davis em todos os sentidos.
Vinte e quatro – Taí, eu gosto da sonoridade agressiva e pressurosa do sax-alto de Eric Dolphy, do seu fraseado cheio de vieses, de voragens e de vertigens. Gosto dele ter se dedicado a tocar clarone, ou clarinete baixo, instrumento difícil de domesticar mas que produz belos sons roucos próximos à voz humana. Gosto dele também tocando flauta, chilreando e trinando igual passarinho. Entra na lista Eric Dolphy in Europe, volume 2, de 1961, que tem uma versão de sua composição parkeriana, “Miss Ann”, e uma longa ruminação em torno de “Laura”.
Vinte e cinco – Queria incluir um disco de Stan Getz, como representante daquela tribo de tenores melódicos do cool jazz, mas este é um artista extraordinário sem nenhum disco extraordinário. Focus tornou-se cult em Vitória entre o pessoal que gostava de jazz. Ouvi esse disco em casa de Luiz Paixão e no dia seguinte já tinha comprado uma cópia pra mim na Fígaro. Depois passou. Comecei a desprezar o emprego de seções de cordas no jazz e criei uma relutância contra baladotas arrastadas, e o disco está cheio delas. Estou até vendendo a minha cópia por dez patacas. Enfim, acabei ficando foi com Stan Getz at the Shrine, um disco de 1954, com Bob Brookmeyer ao trombone, escolha que Rogério vai aprovar, porque está na lista dele, e João Luiz Mazzi também, nem que seja pela presença do pianista John Williams no quinteto.
Vinte e seis – Por falar em João Luiz, outra escolha que terá decerto o seu aval é California Concerts, em dois volumes, com gravações feitas em 1954 pelos grupos pianoless de Gerry Mulligan. Além de serem um bom exemplo da concepção cool de Mulligan, algumas das faixas contam com a participação de Jon Eardley, um desses trompetistas do caralho que ninguém conhece, e de Zoot Sims no tenor e Bob Brookmeyer no trombone.
Vinte e sete – Joe Albany, The Right Combination. Esta sessão de gravação, feita em 1957 na sala de estar da casa do engenheiro de som Ralph Garretson, em Long Beach, Califórnia, reuniu um músico lendário, Joe Albany, e um músico legendário, Warne Marsh. A música, embora produzida sem maiores pretensões, é de você querer ouvir toda hora. Joe Albany era um dos melhores pianistas do estilo bop, e Warne Marsh, discípulo fiel de Lennie Tristano, tirava do sax tenor uma sonoridade turva, suja, e solos engenhosos em que revelava matutações harmônicas que deixavam outros saxofonistas de queixo caído.
Vinte e oito – Dexter Gordon. Escolhi um disco que quem tem é meu amigo João Luiz Mazzi, que é Our Man in Paris, de 1963. A seção rítmica que acompanha Gordon é de você tirar o chapéu sem precisar ouvir uma só nota: Bud Powell, Pierre Michelot, e Kenny Clarke. Recomendo sobretudo a versão de “Willow Weep For Me”.
Vinte e nove – Carmen McRae, Carmen Sings Monk, de 1988. Se Louis Armstrong Plays W.C. Handy é o disco de blues vocal por excelência, este é o disco de jazz vocal por excelência. Como o próprio Luiz Orlando assinalou, Monk foi o criador dos melhores temas jazzísticos da história, ou seja, temas destinados basicamente à improvisação instrumental. Quem diria que esses temas jazzísticos, tipo “Rhythm-a-ning”, “I Mean You”, “Well You Needn’t”, pudessem ser transformados em canções e, melhor que isso, em grandes canções?
Trinta – John Lewis, Grand Encounter: 2 Degrees East – 3 Degrees West, 1956. Nesse disco podemos ouvir o piano mais límpido e requintado do jazz sem ter de ouvir a porra do vibrafone de Milt Jackson junto. Além do mais, aí está a versão original da composição de John Lewis, “Two Degrees East, Three Degrees West”, que dá nome a esta série de crônicas (algum dia ainda será também conhecida como “Garibaldi’s Blues”). É um blues meigo e sutil, um blues de porcelana, com solos do próprio John Lewis ao piano, de Bill Perkins ao tenor e de Jim Hall à guitarra.
Dita e feita está a lista. Entrei por uma porta e saí pela outra, quem quiser que faça outra.
Assinado, G de jazz.
EPÍLOGO: RÁPIDO DIÁLOGO
ENTRE GARIBALDI E O NARRADOR
N: E cadê Duke Ellington?
G: Grande compositor, mas não dá pra agüentar aquela orquestra dele com Johnny Hodges e Paul Gonsalves tocando baladas.
N: E Bud Powell?
G: Uma ausência respeitável. Mas pra mim Bud Powell está espalhado em todos os discos que fez, não dá pra escolher só um e dizer, é este aqui.
N: E Miles Davis? Nem um disco sequer de Miles Davis?
G: Em parte, uma atitude política. Depois de agüentar anos a fio todo tipo de deusificação, confetização, mitificação, legendificação, glorificação, consagração, santificação e caralhificação de Miles Davis, vê se vou perder uma oportunidade destas pra cagar na cabeça desse sujeito. Não digo que não tenha méritos. Tem. Mas não a ponto de ser considerado o capitão-mor do jazz.
N: E Sonny Rollins?
G: Minha relação com Sonny Rollins sempre esbarrou na porra do repertório dos discos dele. Mania que ele tinha de tocar a porra de um calipso, ou baladas de gosto duvidoso como “Moritat”, ou aberrações do tipo “Don’t Stop the Carnival”, que você não tem nem coragem de ouvir.
N: E John Coltrane?
G: Sou mais Eric Dolphy.
N: E o Modern Jazz Quartet?
G: Não gosto de vibrafone.
N: E Bill Evans?
G: Tem uma música dele entre as trinta melhores músicas de jazz, outra lista que fiz e que está aí adiante em apêndice.
N: Só quero ver o que Rogério Coimbra e os outros sócios do clube vão dizer dessa lista.
Reinaldo Santos Neves é escritor com vários livros publicados e foi responsável pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)