Entrevistado: Gessiane Correia Mascarenhas, apelido Neném
Grupo ao qual pertence: Colônia de pesca de Itapuã
Entrevistador: Fernanda de Souza
Data da entrevista: 29/03/2014.
Local / data de nascimento: 1970.
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[Como foi sua infância e adolescência?]
Eu não tive infância e comecei a trabalhar com 10 anos de idade em casa de família. Perdi minha mãe muito cedo, fui morar com minha madrasta e fugi da casa do meu pai. Aí fui trabalhar como doméstica, conheci meu primeiro marido e tivemos três filhos, vivemos sete anos juntos, mas não deu certo e separei. Estava trabalhando quando conheci meu segundo marido, que já era pescador, moramos 27 anos juntos e tivemos três filhos. Vivíamos da pesca aqui [em Itapuã]. Com meu pai aprendi a limpar peixe e com meu marido aprendi a pescar. Tirei minha carteira de pescadora […] e criei meus filhos através da pesca, trabalhando e pescando aqui.
[Onde você morava quando criança?]
Morava na Ilha das Flores.
[Você tem irmãos?]
Sim.
[Do que vocês brincavam naquela época?]
Naquela época nós brincávamos de pique bandeira, amarelinha, de pular corda e de pedrinhas. Sentávamos na calçada e brincávamos com as pedrinhas, eram cinco pedrinhas. Brincadeiras de bola, queimada e, às vezes, vôlei. Hoje não tem mais essas brincadeiras.
[Você estudou?]
Sim, estudei até a 8ª série, quando estava com meu primeiro marido. Com meu segundo marido, tinha voltado a estudar e fiz até o 1º ano do 2º grau. Estudei no Ailton Lombar, em Ilha das Flores, e depois em Terra Vermelha. No próximo ano vou dar continuidade aos meus estudos, se Deus quiser, e pretendo terminar o ensino médio.
[Fale um pouco sobre seus pais e seus avós.]
Não conheci meus avós maternos nem paternos. Eles já eram falecidos. Minha mãe faleceu quando eu tinha cinco anos de idade, meu pai era aposentado da Cia. Vale do Rio Doce.
[Com quem você aprendeu a pescar?]
Aprendi com meu falecido marido. Aprendi a matar traíra, pescadinha, a baluar e a pegar camarão.
[Os seus pais, ou avós tinham contato com a pesca?]
Não. Na época em que eu era criança não.
[Como era a pesca antigamente?]
Era muito boa, o peixe dava aqui na beira da praia. A peroá pegava-se aqui, atrás da ilha, e pegava-se 100, 150kg de peroá. Hoje, não dá mais. Pescadinha nós vendíamos baratinho, hoje não se vende mais. Peroá está escassa. Antigamente no Morro da Barra se matava peroá branca, hoje não se acha mais. O ano retrasado deu muita sardinha e manjuba, esse ano já não deu nada. Galo e espada são peixes que não se acha mais aqui nessa beira de praia. Eram peixes que davam aqui na beira da praia. O pessoal que vinha pescar de molinete pegava muita espada e agora não pega mais nada. Está tudo se acabando.
[Faça um comparativo de como era antigamente, e como está hoje sobre os tipos de peixes e de quantidade.]
Antigamente dava muito pescadinha, xaréu, chicharro, espada, sarda e baiacu. Pescava-se tanto de linha quanto de rede. Hoje não tem mais nada. Já pegamos toneladas de pescadinha de rede. Uma vez meu marido deu uma estacada em um xaréu aqui, que pegou xaréu de 15 a 20kg. Foi uma batera e meia de xaréu. Hoje não se encontra mais esse peixe por aqui. A sardinha, a manjuba e o baiacu. O ano passado deu baiacu, esse ano cadê o baiacu? A pescadinha está dando porque está lá fora, aqui na beira da praia não dá mais. O peixe galo e o espada também davam muito. A cada ano que passa as coisas estão ficando piores, os peixes estão sumindo. Dava muita pescada amarela por aqui, hoje não se acha mais. Os peixes estão muito escassos. Para se trabalhar com peixe tem que se correr muito atrás e comprar na mão dos pescadores. Os barcos grandes trazem para cá para vender. Antes não havia necessidade, era só colocar uma rede e se vinha com várias qualidades de peixes: pescadinhas, pescada, e baiacu.
[Quais são os peixes que estão dando aqui?]
Para nós pescadores, só a pescadinha, e no máximo de 10 a 20kg por dia, isso quando se acha.
[Há quanto tempo começaram essas mudanças?]
De uns três anos para cá já vem diminuindo a quantidade de peixe.
[Em sua opinião porque aconteceu essa mudança?]
Eu creio que seja devido à presença das traineiras que vieram para cá. Muitos barcos grandes com três, quatro balões. As traineiras quando passam, elas vem arrastando tudo quanto é tipo de peixes que estão no fundo, seja peixe grande ou pequeno, camarão… Dentro do barco os pescadores vão selecionando, mas não adianta porque já está dentro do barco. Vão devolver o peixe morto para o mar?
Estão vindo traineiras de fora, do Rio, da Bahia, para pescarem aqui, e onde está a fiscalização? Só vem em cima dos pescadores menores, de baixa renda, de tem barcos pequenos, como um barco de sete metros, com só um balão. Quando meu marido era vivo ele tinha um barco com só um balão e não podia baloar aqui. Ele tomou multa do IBAMA por causa disso. Com as traineiras enormes passando por fora eles não faziam nada. Só vinham em cima dos pescadores artesanais.
[Atualmente a pesca é a sua única fonte de renda?]
Não. Como meu marido faleceu há dois anos, eu tenho uma pensão através da colônia dos pescadores, porque nós éramos registrados na colônia dos pescadores, no IBAMA e na Capitania. Tinha tudo certinho. Então através dele tenho minha pensão, que é de um salário mínimo, e trabalho aqui com meu filho com a pesca. Hoje eu tenho outra renda devido ao meu marido, que também era pescador. Se ele não tivesse falecido eu não teria outra renda a não ser a pesca. Não tenho nenhuma outra atividade a não ser a pesca.
[Como é sua rotina como pescadora?]
Quando meu marido era vivo nós saíamos às 2, 3 horas da madrugada e vínhamos de bicicleta. Às vezes pegávamos o bacurau e chegávamos aqui, ficávamos vigiando o peixe até certas horas. Quando não aparecia nada íamos para o mar, matar pescadinha, conforme estivesse o mar. Se o mar estivesse manso, nós íamos para as pedras arrancar sururu. Nós decidíamos o que fazer na hora em que chegávamos, ou ia pescar ou ia arrancar sururu, uma das duas coisas nós íamos fazer. Se aparecesse peixe de rede, nós colocávamos rede. Como ele faleceu, eu só venho para abrir a peixaria. Às 6:30h eu já estou aqui. Meu filho é que vai para a ilha e eu fico esperando ele chegar com o sururu para descascar. Agora eu não vou mais pescar com meu filho.
São muitas recordações e lembranças. Eu nem queria mais vir para cá, meu filho foi quem insistiu para eu vir ajudá-lo, depois que meu marido faleceu. Hoje eu diminuí bastante minha atividade com a pesca ou de ir tirar sururu. Já fiz muito, mas hoje não faço mais. Meu filho está com 26 anos e foi tudo através da pesca. Ele e os outros foram criados através da pesca.
[Quantos anos ficou casada?]
Fui casada por 26 anos. No dia 20 de junho vai fazer dois anos que ele faleceu. Ele faleceu devido a um problema de saúde de tanto trabalhar com a pesca, passava da hora de se alimentar. Pescador quando ele está trabalhando não tem hora para nada: ou ele trabalha ou ele se alimenta. Ele teve um problema de saúde, foi para o hospital e veio a óbito.
[Como é sua rotina hoje?]
Acordo às 5 ou 5:30h e venho para a praia ajudar meu filho a descascar o sururu e a vender o peixe. Fico até no máximo 7h, guardo as coisas no barracão de pesca e vou embora. No outro dia é a mesma coisa. Quando o mar está manso ele vai pescar ou vai tirar sururu e eu fico aqui sozinha tomando conta da mercadoria. Meu filho de 26 anos é que vai para o mar, ele aprendeu comigo e com o pai de criação.
[Com que idade ele começou a pescar?]
Com dois anos ele já ia para o mar com o pai. Naquela época não havia fiscalização, os pescadores levavam os filhos para o mar com dois anos de idade e já ensinavam, isso quando o mar estava mansinho. Desde novinho ele já estava indo para o mar com o pai, eu ficava com o coração na mão, e está aí até hoje. Hoje trabalhamos juntos, só não vou para o mar com ele.
[Qual o tipo de pesca que você praticava com seu marido?]
Quando nós íamos para fora [alto mar], era de linha e de rede de arrasto para pegar camarão, de baluar. Com grapuá, para arrancar o sururu em cima das pedras. Aqui em terra era de rede de arrasto, na beira da praia, quando aparecia o cardume. Nós cercávamos com a nossa rede e depois colocava para vender.
[Fale um pouco de cada um dos tipos de pesca.]
De linha tem que ter o anzol e a isca, que pode ser camarão ou tainha. Essas iscas são usadas lá fora, lá se pescam de linha a pescadinha, a pescada e o baiacu. De rede de arrasto é o chicharro, a espada, o peixe galo, a sarda, a manjuba e a sardinha, que davam muito aqui na beira da praia. Nas pedras era o sururu e o búzio, que nós pegávamos com o grapuá.
[Você sempre pescou aqui nesse ponto de Itapuã?]
De linha, sim. De rede de arrasto íamos para a Barra do Jucu, quando estava dando muito peixe, e na Ponta da Fruta, que dava muita pescadinha de rede de arrasto. Nós pagávamos o frete para levar nossa rede. De linha só aqui.
[Há quanto tempo você está nesse ponto da Praia de Itapoá?]
Estou aqui há 27 anos.
[Quais são as suas lembranças desse ponto da praia de Itapuã?]
Daqui tenho muitas boas lembranças. Teve época de eu vender dois barquinhos desses de peixes, vendendo de balança para não entregar barato para o mercado. Hoje não se consegue vender uma caixa de peixe aqui.
[Quais são os pontos positivos e negativos da vida de um pescador?]
O ponto positivo era que na época do verão dava muito peixe. Era uma época que nos ganhávamos dinheiro com força. Pegávamos toneladas, pegávamos duas, três bateras. Já teve pescador aqui de pegar quatro bateras de peixes. Um pouco se vende aqui para os moradores mais próximos de Itapuã e o restante nós vendemos para o mercado, porque em um dia não se consegue vender três bateras de peixes. Então tem que entregar para o mercado da Vila Rubim. O caminhão vem e entregamos. O lado positivo aqui era no verão, porque agora não tem mais isso.
O negativo é no inverno porque não dá nada. Nós somos iguais a formiguinhas, temos que trabalhar o verão todinho, sem comer ou beber, para poder sobreviver no inverno. No inverno quem tiver disposição de encarar o mar bravo, de mirar uma rede, aí ganha um dinheirinho.
[Quais são as maiores dificuldades da vida de um pescador?]
O pescador sofre no inverno, não tem como entrar o inverno, se entra morre. Nós esposas ficamos preocupadas com nossos maridos que estão no mar – Será que ele vai voltar? Quantas vezes fiquei aqui na beira da praia no inverno, rezando para o meu marido conseguir chegar vivo, devido o mar estar bravo. Uma vez ele foi baluar e o barco quebrou devido ao vento sul […], foi meu filho que foi ajudar o pai, e conseguiram chegar em terra. Não se sabe se vai retornar ou não. Aqui no inverno é muito difícil, se não guardar um dinheiro para sobreviver no inverno nós passamos fome. A colônia não ajuda: nós pagamos a colônia e há pouco tempo é que viemos a receber o defeso.
A prefeitura colocou chuveiro para os quiosqueiros e para nós? Nós não precisamos de água para limpar o peixe, e até para atender melhor os fregueses do que já atendemos? Aqui, não temos ajuda de nada e de ninguém, só vêm aqui para criticar ou para nos tirar daqui, para dar melhorias, não. Estávamos pensando em fazer uma banca de lajota, com azulejo, mas a prefeitura embargou. Como nós vamos trabalhar? E querem exigir isso e aquilo. Como podem exigir se não nos dão oportunidades para fazer uma coisa melhor? Mesmo se fizermos com nosso dinheiro, eles não deixam. Custava colocar um chuveirinho aqui, para os pescadores dessa área? Só colocaram para os quiosqueiros, e para o pessoal que vende coco. Não tem um chuveiro para lavarmos as pernas ou as mãos, não tem estrutura para nós pescadores e não temos ajuda de ninguém.
[Até quando você acha que o pescador vai poder viver da pesca?]
Ah, não vai muito tempo. Muitos pescadores estão colocando seus filhos para estudar, para fazer cursos, porque pescador não quer saber de filho dele enfiado aqui na pesca. Olha quantos anos tem que meu filho está na pesca e veja os de hoje, veja se eles querem saber de pesca? É daí para pior. Não querem seus filhos o mar. Como já são pescadores velhos, preferem ir sozinhos a levar um filho ou um neto. Mais tarde isso não vai ter mais futuro.
Eu criei meus cinco filhos com a pesca, hoje não se consegue mais porque a renda é muito baixa. Não se consegue criar nem um filho, quanto mais cinco.
[Porque você acha que isso acontece, e o que poderia ser feito para mudar essa situação?]
Para mudar vai ter que ter muitas reuniões e muita fiscalização. Primeiro dentro d’água, porque os grandes barcos que chegam de fora estão acabando com tudo. Depois, procurar ajudar os pescadores em terra, procurar fazer melhorias. Aqui, vinha muita gente de fora, em Itapuã ficava lotado, e agora não vem porque os próprios pescadores não procuram manter a praia limpa. A culpa não é só dos governantes. Os pescadores, muitas vezes, são relaxados, largam madeira na areia… Se todos se unirem talvez dê para se fazer uma melhoria. Não só os governantes, mas também os pescadores. Quantas vezes eu também larguei as coisas por aqui, sem limpar, fui embora e deixei sujo? […] Ganhava meu dinheirinho, colocava no bolso e rachava fora. A culpa aqui em terra não é só dos governantes, é dos pescadores também. Lá fora é dos governantes, lá têm que ter fiscalização por causa das traineiras e dos grandes barcos que estão acabando com tudo. Não achamos mais peixes grandes.
[Por quanto tempo mais você pretende pescar?]
Eu já estou em tempo de me aposentar da pesca, já estou com 44 anos, e vamos ver se consigo chegar aos 60, mas não quero mais pescar, só quero ficar aqui ajudando meu filho. Meu marido já se foi e agora tenho muito medo, com ele eu tinha confiança. Não estou dizendo que meu filho não tenha capacidade, mas meu marido tinha mais experiência. Se acontecia algum problema ele sabia resolver e chegávamos em terra. Eu sei que meu filho aprendeu com ele, mas não tem a experiência que ele tinha. Prefiro ficar em terra limpando os peixinhos e cuidando do meu sururu.
[Qual foi a maior lição que você aprendeu na sua vida de pescadora?]
É saber tratar os fregueses com educação e os amigos que trabalham na mesma profissão com o devido respeito. Procurar respeitar a todos, porque todos nós precisamos uns dos outros. Respeitar o direito de ir e vir de cada um.