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Identidade capixaba: alguns questionamentos

Foto: Guilherme Santos Neves, anos 1950.
Foto: Guilherme Santos Neves, anos 1950.

Nossa análise da identidade capixaba será feita a partir de dois enfoques: como “estudioso” das questões ligadas à Cultura, definiremos, a partir de uma abordagem sociológica, econômica e antropológica, o conceito de identidade cultural, para depois estudar as relações que existem entre o local e o global, ou seja, entre o particular e o universal. Por outro lado, o fato de sermos “forasteiro” nos permite ter uma visão exterior, ou seja, um olhar diferente sobre a realidade capixaba; neste sentido, cumpriremos, com prazer, nosso papel ingênuo de Voltaire, para fornecer uma visão, talvez diferente, da realidade cultural do Espírito Santo.

O conceito de Identidade Cultural Local é duplamente questionável: primeiramente, trata-se de ver que medida, numa sociedade estruturada em classes sociais, é possível definir objetivamente o conceito de Identidade Cultural como um processo capaz de abranger a totalidade dos grupos sociais que compõem a coletividade considerada. Segundo, na era da globalização e da “aldeia global”, qual é a realidade e quais são as especificidades da cultura local? Finalmente, forneceremos alguns elementos no que diz respeito ao que nos parece constituir as especificidades da “identidade” capixaba.

Alguns elementos de análise — Considerações sobre a identidade cultural

Numa sociedade dividida em classes sociais, os antagonismos econômicos se traduzem por antagonismos culturais. Historicamente, as culturas de classe aparecem, na Europa Ocidental, na Idade Média; a ruptura entre cultura popular e cultura erudita torna-se efetiva e irreversível a partir do Renascimento. As práticas culturais das diferentes classes sociais, ou subclasses sociais, se estabelecem a partir de uma hierarquia cultural em que o nível mais alto é ocupado pela cultura erudita. Esta se beneficia de um maior grau de legitimidade cultural, gerando um efeito maior de distinção social e se caracteriza pela complexidade estética e pelo fato de que sua apropriação simbólica implica a posse de códigos específicos. No seio desta hierarquia, ao contrário, a cultura popular se caracteriza por práticas culturais que não geram efeito de distinção social e que têm pouca legitimidade cultural, no seio desta hierarquia.

Cada grupo social se posiciona objetivamente nesta hierarquia e se define em oposição às práticas dos outros grupos sociais. A análise sociológica[ 1 ] mostra que cada grupo social se define diferenciadamente, ou seja, define suas práticas em oposição às práticas dos demais grupos. Conforme ressaltam as diferentes pesquisas qualitativas e quantitativas, esta dinâmica cultural funciona, essencialmente, a partir de uma lógica de exclusão e de diferenciação sociais.

Portanto, não é possível falar, objetivamente, em identidade cultural numa coletividade dividida em classes sociais, seja ela local ou nacional. A cultura não pode ser concebida como um processo social homogeneizador que permitiria abranger a totalidade da coletividade; o jogo de exclusão não permite definir elementos simbólicos comuns à totalidade dos membros da sociedade.

Pesquisas realizadas sobre as práticas culturais, tanto na França quanto no Brasil, ressaltam este fenômeno: a cada grupo social definido em função de certos critérios sociodemográficos (profissão, nível de renda e de instrução, principalmente) correspondem certos tipos de práticas culturais. Os grupos que têm práticas ligadas à cultura erudita (concerto de música clássica, teatro, exposições, etc.) rejeitam as práticas populares. No que diz respeito à prática televisiva, as pessoas que assistem aos programas culturais rejeitam os programas populares, como, por exemplo, “Domingão do Faustão”.

No Brasil, em função de certas especificidades históricas e sociológicas, seria possível, a priori, pensar que certos produtos culturais conseguem ultrapassar esses antagonismos; seria, por exemplo, o caso das telenovelas à medida que o conjunto dos grupos sociais assistem a este tipo de programa. Não obstante, cada grupo social se reapropria diferentemente deste produto, permitindo manter assim efeitos de distinção social; o “intelectual” mantém uma certa visão crítica, a qual o diferencia dos outros grupos sociais. Conseqüentemente, os efeitos de distinção social permanecem através de uma reapropriação socialmente diferenciada de um mesmo produto simbólico. É possível afirmar que o capitalismo não é uma civilização, à medida que este sistema social não permite criar uma homogeneidade cultural, ou seja, referenciais comuns à totalidade dos membros da sociedade.

Neste sentido, a identidade só pode ser concebida como uma construção ideológica, e não como um fato objetivo. O papel dos intelectuais consiste, justamente, em tentar articular, no sentido de tornar coerentes, as práticas dos diferentes grupos sociais, no seio de uma determinada hierarquia cultural,[ 2 ] assim como fornecer uma representação simbólica da sociedade. Certas produções são assim escolhidas com sendo representativas do conjunto da sociedade: a França se resume ao Moulin Rouge, aos vinhos, aos perfumes e a Edith Piaf, o Brasil ao samba, às mulatas e ao futebol, etc. Trata-se de uma escolha ideológica e, numa certa medida arbitrária, à medida que esses “cartões postais” não são, nem podem ser, representativos de uma realidade muito mais complexa.

A identidade de um determinado espaço pode se definir como um sistema específico de referenciais dentro do qual se expressam essas contradições. Se as oposições entre as práticas das diferentes classes permanecem, as formas que elas assumem são diferentes, em função das diferentes formações sociais consideradas.

O local e o universal

É legítimo formular a seguinte pergunta: em que medida a cultura de classe permite ultrapassar as especificidades locais, regionais e/ou nacionais? Isto implica analisar as relações que se estabelecem entre o local e o mundial, assim como as modalidades de inserção do local no mundial.

Do ponto de vista antropológico e etnológico, o local tem que ser concebido conto uma expressão concreta, e portanto particular do universal. Para o antropólogo Claude Lévi-Strauss, as diferentes culturas se caracterizam principalmente pela maneira como cada uma combina os elementos oriundos da cultura mundial.[ 3 ]

Da mesma maneira, na História da Arte, o local só pode ser definido como uma combinação particular de elementos que provêm de uma cultura mais abrangente. No caso da música barroca, os exemplos de intercâmbio entre as diferentes culturas nacionais são óbvios: Bach se inspirou nos compositores italianos, os compositores franceses, na música italiana e espanhola, etc.; da mesma maneira, Molière se inspirou na Comédia del Arte e chegou a convidar atores italianos. Hoje, a bossa-nova representa uma apropriação especificamente brasileira dos padrões estéticos do jazz.

A partir de uma análise econômica, é possível afirmar que, a partir da Segunda Guerra Mundial, aparece e se desenvolve um movimento de transnacionalização progressivo do capital assim como a criação de uma economia mundial autônoma. A esta desterritorialização econômica corresponde a autonomização de uma cultura mundial, cujos produtos mais representativos são o jazz, o rock and roll, certos gêneros cinematográficos, as produções de Walt Disney, etc.

Do ponto de vista antropológico, esta civilização mundial precisa preservar um mínimo de diversidade no que diz respeito às diferentes culturas que a compõem. Se, por um lado, o sistema mundial se traduz por uma certa uniformização cultural, por outro, a dinâmica antropológica e econômica desta civilização mundial torna necessária a manutenção de uma certa diversidade cultural, quer entre as diferentes culturas, a partir do intercâmbio cultural, quer no seio de cada cultura, a partir da divisão em classes sociais. Essa cultura mundial caracteriza-se por um mínimo de diversidade abaixo do qual a dinâmica antropológica se encontra comprometida.[ 4 ]

Por outro lado, a lógica do sistema econômico mundial é determinada a partir de uma relação dialética de uniformização/diferenciação. A própria produção industrial implica uma lógica de uniformização da produção; mas, por outro lado, à medida que as economias são cada vez mais oligopolizadas, a concorrência se efetua cada vez mais a partir de uma lógica de diferenciação dos produtos. De um ponto de vista mais geral, no âmbito da economia da difereticiação,[ 5 ] cada espaço geográfico precisa diferenciar-se para integrar o sistema de redes mundiais, para beneficiar-se do dinamismo do sistema mundial e, finalmente, para atrair o capital transnacional. Esta diferenciação será obtida através da construção de uma imagem midiática do espaço; esta é produto de elementos culturais característicos do espaço considerado e de certas políticas de comunicação. Operações como Rio 92 ou bicentenário da Revolução Francesa são representativas deste tipo de estratégia midiática. As oposições entre o centro e a periferia são progressivamente apagadas; os antagonismos aparecem entre espaços que conseguiram se conectar com essas redes mundiais e os que não conseguiram. Existem, portanto, no seio deste sistema mundial, estratégias diferenciadas e seletivas de reterritorialização.[ 6 ]

Finalmente, é igualmente possível formular a seguinte hipótese: se as culturas de classe já conseguiram ultrapassar, parcialmente, as especificidades locais, os antagonismos se situam, hoje, entre os grupos sociais que estão diretamente ligados ao sistema mundial e os grupos que, por razões econômicas e/ou sociológicas, não têm essa possibilidade. A nosso ver, isto constitui o verdadeiro debate no que concerne às novas tecnologias da Cultura, da Informação e da Comunicação.

Uma redefinição de identidade local — A realidade da cultura local

Dentro do conjunto de práticas dos diferentes grupos sociais que compõem uma sociedade local, quais são os elementos especificamente locais? Do ponto de vista antropológico, já vimos que não é possível definir uma cultura a partir de seus elementos especificamente locais; qualquer cultura é o produto da colaboração com várias outras culturas, e não é possível isolar os elementos locais. Uma cultura se define, essencialmente, pela maneira como ‘se utiliza’, como se reapropria dos elementos de sistemas culturais muito mais abrangentes.

Por outro lado, no seio de um sistema econômico, tecnológico e cultural mundial, existem modalidades de incorporação seletiva do local. O poder respectivo de cada espaço local depende de sua capacidade de impor, no seio deste sistema mundial, certos produtos; a dimensão universal do local se define em função da capacidade que possuem seus diferentes produtos para se incorporar neste espaço mundial. Existem várias estratégias possíveis: se aproveitar do exotismo, como fez Carmem Miranda, ou rentabilizar os produtos no mercado nacional para ser competitivo no mercado internacional, como fizeram a indústria cinematográfica americana, assim como as indústrias audiovisuais brasileiras e mexicanas. Hoje, o local torna-se universal através de sua validação simbólica e econômica no seio deste sistema mundial da Cultura e da Comunicação.

Finalmente, em função do caráter conflitual das práticas culturais, é logicamente impossível opor uma identidade cultural, que não existe objetivamente, a qualquer forma de imperialismo cultural, como faziam os discursos nacionalistas dos anos 60, fossem eles de direita ou de esquerda. Neste sentido, é possível reafirmar a tese segundo a qual, no âmbito de uma “world culture”, a identidade cultural só pode ser definida como uma identidade de classe. As especificidades locais se traduzem nas modalidades de apropriação particulares dos elementos que pertencem a esta cultura mundial; mais uma vez, a bossa-nova, assim com a telenovela,[ 7 ] representam modalidades de apropriação específicas de certos elementos estéticos, tecnológicos e de certas lógicas econômicas que provêm do sistema mundial.

E a identidade capixaba?

o problema da identidade capixaba tem que ser repensado tomando como base esses elementos. A própria evolução histórica do Espírito Santo, que apresenta, entre outras características, o isolamento dos grandes eixos de comunicação do país, assim como sua situação limítrofe na proximidade de três pólos culturais e econômicos (Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais), não lhe permitiu criar referenciais culturais próprios.

Por outro lado, o Espírito Santo é um Estado que conheceu, desde o final dos anos 60, um desenvolvimento econômico importante. Este desenvolvimento econômico torna necessária a construção de uma imagem midiática construída a partir de referenciais próprios capazes de “vender” sua imagem no exterior. Parece- nos que, até hoje, o Espírito Santo não conseguiu realizar e implementar este posicionamento midiático. Há um desenvolvimento desigual entre a infra-estrutura econômica e a superestrutura cultural, simbólica e “comunicacional”.

A maneira como os diferentes agentes de comunicação social, ou seja, os jornalistas, as mídias locais, os poderes públicos e os produtores culturais, tratam e divulgam o local não foi capaz de criar referenciais especificamente capixabas, de exportá-los e, a partir deles, construir uma imagem midiática do Estado. Os atuais formadores de opinião capixaba refletem um certo provincianismo (Celso Furtado falaria em bovarismo), à medida que não conseguem fornecer uma dimensão universal aos diferentes aspectos do local. Muitas vezes, o discurso se limita a um discurso bairrista legitimador do poder local e, simbolicamente, não consegue ultrapassar os limites do Estado. No lugar de revelar o mundo, a maneira como o local é apresentado esconde este mundo. É um local atrofiado, cortado de suas raízes universais, que está sendo apresentado.

Quando o escritor americano Henry Miller, no seu livro O Colosso de Maroussi, descreve uma aldeia grega miserável e pobre, ele a descreve de tal maneira que os gestos, as preocupações e os sentimentos dos habitantes desta aldeia se nos tornam familiares. Quando Charles Baudelaire nos fala de Paris do fim do século XIX, descreve a cidade como o símbolo da rnodernidade ocidental; as andanças do “promeneur solitaire”, viajante solitário na multidão anônima, se relacionam tanto com Paris, quanto com Londres, Berlim ou Nova York. Em outras palavras, a força e o gênio da Arte, concebida como uma construção estética e intelectual que possui uma lógica própria, consiste no fato de conseguir construir uma dimensão universal a partir de fatos “particulares”; neste sentido, a Arte, e o discurso a ela ligado, consegue ultrapassar, no espaço e no tempo, as particularidades do lugar onde nasceu, para expressar certas preocupações e temas universais. É óbvio que esta universalidade é limitada a um certo tipo de cultura, a cultura ocidental no nosso caso; não obstante, ela permite ultrapassar o específico, o local, e ter uma significação que vai além das condições imediatas de produção da obra.

A cultura local deve, ou deveria, ser apresentada como uma janela aberta para o mundo, e não como uma cortina que, ao contrário, esconde o mundo. Como qualquer cultura local, a cultura capixaba tem elementos universais; em outras palavras, a nosso ver, o problema não se situa no objeto do discurso, no tema escolhido, mas sim na maneira como é construído o discurso.

Como conclusão, tendo em vista estes elementos de análise, é possível afirmar que, no caso do Espírito Santo, tanto do ponto de vista da dinâmica cultural, quanto das necessidades impostas pelo desenvolvimento econômico, é preciso construir uma identidade local específica (à medida que qualquer identidade cultural é, obrigatoriamente, uma construção simbólica, social e ideológica) capaz de permitir construção da imagem simbólica e midiática do Estado.

Isto implica evitar qualquer forma de bairrismo, redefinir o discurso sobre o local, para poder restaurar a dimensão universal da identidade capixaba…

Referências bibliográficas

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.

HERSCOVICI, Alain. Economia da Cultura e da Comunicação. Vitória, UFES/Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1995.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Race et Histoire. Paris, Denoël, 1987.

MATTELARD, Armand. La communication-monde: histoire des idées et des stratégies. Paris, La Découverte, 1992.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988.

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NOTAS

[ 1 ] Ver os diferentes trabalhos do sociólogo francês Pierre Bourdieu, como, por exemplo, La Distinction. Une critique sociale du jugement. Paris, Les Editions de Minuit, 1979.
[ 2 ] Antonio Gramsci. Os intelectuais e a organização da Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
[ 3 ] Claude Lévi-Strauss. Race et Histoire. Paris, Denoël, 1987, p.50.
[ 4 ] Idem, p. 15.
[ 5 ] Alain Herscovici. Economia da Cultura e da Comunicação. Vitória, UFES/Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1995.
[ 6 ] Armand Mattelard. La communication-monde. Histoire des idées et des stratégies. Paris, La Découverte, 1992.
[ 7 ] A este respeito, ver Renato Ortiz. A moderna tradição brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988.

[In Escritos de Vitória: Identidade capixaba (20), Vitória, Prefeitura Municipal de Vitória/Secretaria de Cultura, 2001. Reprodução autorizada pelo autor.]

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© 2001 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
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Alain Herscovici é doutor em Economia pela Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e de Amiens e professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo.


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