Desenho: Gilbert Chaudanne. |
O Brasil é por excelência uma terra sincrética — quer dizer que ele justapõe vários elementos muito diferentes, por exemplo a cultura européia, a negra e a indígena.
Mas, se não há sínteses dessas culturas, há um jogo de coabitação harmônica criadora de uma cultura própria: a cultura Brasileira, a cultura Morena. Tudo acontece como se esses vários aspectos, no lugar de se erguerem como focos de conflitos e de asperidade friccional entre as diferentes culturas, foram, no decorrer do tempo, amansando seus aspectos mais extremistas, misturando-se com o outro absoluto, que é a cultura do outro, e encontrando nessa outra cultura semelhanças que permitem uma convivência pacífica — assim pode ser visto o papel duplo dos santos do cristianismo e os orixás do candomblé, ou a introdução de um pensamento europeu (Kardec) nesse mesmo candomblé africano.
E em geral, as várias facetas do gênio brasileiro estão sendo polidas para — de mosaico que elas formam inicialmente — transformar-se em um verdadeiro espelho capaz de refletir o Ser Brasileiro, sua identidade. E assim acontece nos pontos mais evidentes dessa identidade: Nordeste, Minas, Rio Grande do Sul, assim como em outros cuja identidade é mais complexa mas não menos solidificada: Rio de Janeiro, Maranhão, etc…
Porém há uma região, um estado que não parece obedecer a essa “política” do espelho brasileiro: o Espírito Santo — E por quê? É que neste estado o efeito mosaico tem uma presença quase que ditatorial do Brasil mosaico de povos, de culturas — sim, já fizemos esta observação —; mas o mosaico pelo sincretismo conseguiu fazer desaparecer as pastilhas do mosaico e fundi-las num espelho geral. O que acontece pois no Espírito Santo?
O efeito mosaico é, de fato, o efeito “espelho quebrado”, porque, viajando pelo estado, além de uma paisagem montanhosa que é como uma reformulação de uma antiga criação da mãe-terra e que participa do isolamento (ou da colocação em ilha, “ilhação”, de cada município —, as montanhas funcionam como muralhas naturais), há o cintilar do mosaico de várias culturas, etnias, línguas: alemães, pomeranos, italianos, austríacos, poloneses, luxemburgueses, suíços, negros, índios (esses de várias tribos) usando sua própria língua (nem sempre, entretanto) e até a roupa típica do seu povo, e isto provoca um efeito altamente onírico ou efeito de irrealidade.
Presenciar a atuação ao vivo, no espaço reduzido de alguns quilômetros, de um índio, de um louro, de um negro, de um mestiço, cada um carregando seus mitos, seus deuses, seus filhotes, assim como se essa terra do Espírito Santo fosse um imenso congresso permanente de todas as raças ou um caldeirão de antes da divisão da terra em países e onde elas podem conviver — essas raças — sem se defrontarem diante de uma balcanização (que é o caso da Iugoslávia hoje ou do ex-império soviético).
O plurilinguismo do estado (alemão, italiano, pomerano, línguas indígenas, etc… ) obedece casualmente ou logicamente ao “selo do nome próprio” já que o estado é dedicado ao Espírito Santo que é o que dá o dom das línguas. Ou ao contrário esse plurilinguismo pode ser visto como um efeito “Torre de Babel” — confusão das línguas, que seria confirmado pela estrutura de torre de certas montanhas.
Mas também sem que houvesse uma tentativa para casar a concertina com o batuque, ficando assim numa justaposição de elementos divergentes que consagra justamente o efeito mosaico — ou o espelho quebrado.
Quanto à capital, Vitória — ela se torna nessa maneira de conceber a identidade capixaba uma capital lógica no plano simbólico, já que é o mosaico do mosaico. Vitória é uma ilha, melhor, um agrupamento de ilhas (ilha do Boi, do Frade, do Príncipe, etc…), na verdade a baía de Vitória é um mosaico de ilhas, uma verdadeira renda marítima e terrestre.
Vitória é uma ilha e assim ela lembra a pastilha que é o elemento pelo qual se constrói um mosaico. Mas ela é a pastilha por excelência já que é delimitada da maneira mais nítida, mais franca possível — geograficamente falando — delimitada por água enquanto que as outras pastilhas (municípios, microrregiões) têm fronteiras não tão nítidas já que são puramente terrestres.
Mas se Vitória pelo fato de ser ilha é a pastilha por excelência, a pastilha-mãe, ela se manifesta ainda de outra maneira em relação ao efeito mosaico: é que ela é, em si, também um mosaico, como lugar de confluência dos povos vindos do interior (italianos, alemães, etc…) como de outros chegando diretamente do exterior (libaneses, gregos, etc…), além do fato de que sua geografia de montanhas conturbadas e de pedaços de mar entrando na terra, junto com o jogo das ilhas como visto anteriormente, participa também dessa divisão extrema e extrema diversificação do espaço na sua morfologia e na sua cor que é o caráter do mosaico.
Povos do exterior: gregos, libaneses. Os gregos? Participando do mosaico capixaba, parece até redundância, porque os gregos como alicerces do Império Bizantino se identificaram durante essa fase da sua história com a arte do mosaico, além do mais a Grécia, como Vitória, é um mosaico de ilhas e montanhas e a Grécia da antiguidade clássica não era uma nação unida mas uma constelação de povos diferentes embora todos gregos como acontece aqui também no Espírito Santo, todos diferentes e todos capixabas.
E certamente não é por acaso se encontramos aqui um artista e artesão grego que espalha seus mosaicos pela cidade-capital: Yannis Zavoudakis, obedecendo ao velho antigo instinto do mosaico greco-capixaba.
Os libaneses, muito presentes, apresentam — se assim se pode dizer — características de mosaico: de etnia árabe, de religião cristã, falando várias línguas além da língua materna — com uma preferência tradicional pelo francês, vocação cultural de fineza e requinte —, com um talento nato pelo comércio (antiga herança fenícia provavelmente), com aquela antiquíssima tradição de emigração sem, entretanto, perder o contato com a pátria — aspectos muito diferentes que lembram o cintilar do nosso mosaico da identidade.
Assim Vitória, por causa da sua geografia física e humana, se torna no plano simbólico o mosaico do mosaico, o que a faz alcançar assim como naturalmente o estatuto de capital — ali temos um exemplo implacável de lógica dos símbolos.
Porém, além do efeito mosaico há outro efeito: é o efeito paraíso que é um fenômeno nacional no Brasil. Nesses povos, tão diversos, reunidos num espaço relativamente pequeno do Espírito Santo pelas vontades dos deuses ou os soluços da história, há uma antiga crença que está correndo debaixo das suas peles: é a busca do país perfeito, do país-maravilha, do Eldorado, o paraíso aqui e agora, nesta terra mesmo e não no céu do catecismo e da morte feliz do cristianismo.
Essa busca no estado do Espírito Santo apresenta um perfil perfeito: para os povos europeus e especialmente os louros germânicos, o Brasil sempre assumiu o papel de paraíso tropical, fartura e prazeres sobretudo.
E assim chegaram os louros e, no lugar da fartura tropical, depararam-se com a Via Crucis da subida na montanha, verdadeira epopéia mortífera, onde o paraíso não se concretizava e conseguiam, ao contrário do previsto, realizarem-se na paz de toda morte. Os sobreviventes entravam no inferno tropical até sair dele depois de uma longa luta de gerações contra a maldição da Terra. Mas essa busca do paraíso aqui e agora, se ela parece mais marcada pelo espírito europeu, não deixa de atuar também no índio, no próprio nativo.
Esses índios têm uma tradição que fala da “terra-sem-males” e por causa disso uma tribo saiu lá do Rio Grande do Sul à procura dessa terra e finalmente parou no Espírito Santo como os alemães, os italianos e outros, e concluindo como os louros que o paraíso não se encontrava nessa terra do Espírito Santo — apesar de todo o misticismo do seu nome — e o guia espiritual da tribo concluiu que pode ser do outro lado do mar… de lá onde os italianos, alemães e outros chegaram, pode ser que lá se encontrasse a “terra-sem-males”.
Trata-se de um verdadeiro vai-e-vem do efeito paraíso, nesse estado do Espírito Santo, que faz papel de verdadeira garagem desse paraíso. Neste aspecto o Espírito Santo encarna com força dupla esse efeito paraíso e nesse sentido ele é sintomaticamente brasileiro já que esse efeito paraíso é um dos mitos fundadores do Brasil e das Américas. Mas já que o paraíso não se concretizava todos, louros, índios, negros, ficaram ali mesmo, certamente cansados de tanta busca estéril, não tendo solução a não ser a de ilustrar mais uma vez a velha danação: “ganharás teu pão com teu suor”, em outros termos: “trabalha,e confia”.
E assim cada comunidade se organizou num espaço fechado (que a geografia proporcionava com abundância — efeito mosaico de geografia), pode ser para, depois do fracasso da busca paradisíaca, recentrar-se na saudade da terra-mãe, da pátria longínqua e rapidamente idealizada; mas esse fechamento provoca a fragmentação da identidade que é a do espelho quebrado, quer dizer, do mosaico. O paraíso aqui e agora, essa busca típica do imaginário brasileiro, desemboca, no Espírito Santo, no mosaico.
Esse espelho-quebrado-mosaico, se tem uma poesia que é a de uma pedagogia da surpresa, é também problemático. Olhar-se no espelho é o primeiro passo do reconhecimento da identidade: eu sei que sou eu quem está lá; aquela imagem, sou eu — bem — Mas se o espelho está quebrado eu vejo uns pedaços, pedaços de mim! E assim minha identidade está quebrada ou está para ser construída ou então no lugar de ver um só rosto eu vejo vários e isso me deixa perplexo no que se refere a mim — Quem sou eu, finalmente? é a pergunta que surge dessa multiplicidade e dessas rachaduras do eu regional.
E o perigo é que dentro dessas rachaduras se infiltrem elementos que não vão participar do mosaico mas que vão passar a orquestrá-lo segundo outra identidade, uma identidade que já se firmou na fase do espelho e que, próxima do Espírito Santo, pode investir nele no plano da identidade: geograficamente Minas Gerais e Rio de Janeiro com uma influência mais nítida do Rio porque assumindo ainda simbolicamente o papel de capital orgânica do país e porque o jogo de cintura, o samba carioca, em tudo se insinuam, reptilianos que eles são, achando sem dificuldade o caminho das rachaduras, enquanto que o mineiro monolítico, olhando para dentro, nas minas da sua identidade e do seu queijo (Guimarães Rosa: “O sertão está dentro da gente”) não tem essa vocação de insinuar-se quase que femininamente como o carioca.
Então o efeito mosaico do Espírito Santo tem como conseqüência essa onipresença do Rio de Janeiro que faz correr o risco de bloquear a construção da identidade capixaba. Porque essa identidade está em construção e ela consiste, essa construção, em juntar as pastilhas do mosaico capixaba e fundi-Ia num espelho que vai refletir um rosto único e imensamente rico e diverso dentro dessa unicidade e que será o do Estado Capixaba de conceber o mundo e as coisas.
O batuque e a concertina aqui e agora.
[CHAUDANNE, Gilbert. Identidade capixaba — O efeito mosaico. Revista Você, Vitória: Ufes, n.9, I, mar. 1993. Terceiro texto da primeira trilogia.]
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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)