Não mudamos o mundo. Ameaçamos muitas coisas, mas nada construímos. Na impossibilidade de mudar alguma coisa, o máximo que conseguimos foi mudar-nos a nós mesmos. (Beto, personagem narrador de Romance sem Palavras) |
O dia amanhecia naquele 1º de abril de 1967. Terceiro aniversário do movimento militar dos generais que tomaram o poder no Brasil em 1964 sob a bandeira do combate ao comunismo e à subversão e do restabelecimento da ordem, como se ensinou exaustivamente nos quartéis e nas escolas pelas quase duas décadas seguintes. Mas, para evitar o popular Dia da Mentira, anteciparam-se para 31 de março as comemorações.
No alto da serra do Caparaó, entre o Espírito Santo com Minas Gerais, nada havia a comemorar para o que restou do primeiro movimento de reação armada ao regime militar. Eram oito homens, sete militares e um civil, exaustos, doentes, debilitados, famintos e, certamente, desnutridos.
O grupo chegara a ter pouco mais de duas dezenas no auge da empolgação com os ideais de se iniciar o que seria uma grande reação nacional contra o novo regime, mas o tempo foi passando, a inércia derrubando o moral da tropa, para se usar uma linguagem militar, e muitos não suportaram o clima hostil.
Qualquer morador da região saberia informar que sempre foi de chuvas mais rigorosas o período escolhido pelo grupo para o desenvolvimento do treinamento e do início das possíveis ações chamando a atenção da Nação para o processo que fora desencadeado com o golpe que derrubara o presidente constitucional João Goulart em 1964 e instalara no Palácio do Planalto, na ainda muito jovem Brasília, um grupo de generais golpistas de direita.
Desde agosto — quando começaram a chegar os primeiros homens para se instalar como “criadores de cabras” no pequeno lugarejo de São João do Príncipe, no município de Iúna, Espírito Santo, num sítio da família do sargento pára-quedista da Aeronáutica Adevanir Martins Leite, mineiro de Manhumirim —, até aquela fatídica manhã já haviam se transcorrido oito meses. E nada de ação.
Estavam reduzidos a oito, mas na noite anterior um deles, o marinheiro carioca Amaranto Jorge Rodrigues, havia descido. Tinha ido comprar remédio para tentar salvar a vida do seu colega de arma, Avelino Capitani, que há vários dias sofria terrível febre e alternava momentos de lucidez e de desfalecimento.
Havia Avelino sugerido ao grupo que o deixasse para trás, para morrer na mata, enquanto os demais se locomoveriam rumo a algum ponto relativamente seguro. Era a regra da guerrilha, mas ninguém quis abandoná-lo à morte.
Quando Amaranto se insubordinou e resolveu descer de noite à cidade de Alto Caparaó, no lado mineiro da serra, para comprar remédios, houve dura discussão com o comando. Havia o risco de acabar preso pela repressão que, tinha-se quase certeza, já estava bem perto. Ele teimou e desceu.
A insubordinação de Amaranto poderia custar-lhe a vida. Pelas regras da guerrilha, deveria ser punido com o fuzilamento. Mas, se não tiveram ânimo para deixar um companheiro doente, quase morto, no meio da floresta, muito menos teriam disposição para fuzilar um companheiro movido pelo sentimento de fraternidade.
A água era fervida em um fogão improvisado com pedras para o café da manhã. O comandante militar do grupo, o catarinense Amadeu Felipe da Luz Ferreira, sargento do Exército — a exemplo dos outros, expurgado pelo regime de 64 —, usando de seu poder como líder daquele movimento rebelde, havia forçado a troca de guarda e deveria estar de sentinela naquele horário.
O 1º de abril de 1967 amanhecia preguiçoso na serra do Caparaó. Ainda não dava para saber se seria mais um dia nublado, muito comum naquela época do ano, ou se o sol daria o ar de sua graça. Por isso, Amadeu ainda estava na rede, demorando mais do que o comum para assumir seu posto. Talvez pensando no conforto que poderia estar tendo naquela momento junto de sua família, descendente de Hercílio Luz, seu bisavô, ex-governador de Santa Catarina.
Avelino Capitani ardia em febre em uma rede. O marinheiro alagoano Jerônimo José da Silva, único negro do grupo, repousava em outra rede. Já dava os primeiros sinais de que também estava doente, mas ainda não chegara ao ponto de desfalecer em alguns momentos, como seu colega. O grupo se abrigava embaixo de árvores, em um local de onde dava para ver, lá embaixo, ainda dormindo, a pequena Caparaó.
De repente, do meio do mato, da passagem que dava acesso a uma das trilhas da serra, pela qual o grupo chegara ao local daquele acampamento, surge uma voz:
— Tem café aí?
Quase que fazendo eco, o sargento do Exército Araken Vaz Galvão, baiano, subcomandante de planejamento, responde:
— Tem café no bule e bala para todo mundo.
Não deu tempo para muita coisa.
O mato se abriu e rapidamente soldados da Polícia Militar de Minas Gerais imobilizavam cada um dos sete homens que ali estavam. Jerônimo, bravo nordestino, ainda pulou em cima de uma arma que era sua companheira e a engatilhou para reagir. Um pé grande, calçado com um pesado coturno de couro, o imobilizou.
Avelino fez menção de lançar mão de sua arma, mas estava debilitado demais para conseguir qualquer reação.
Seguiram-se desentendimentos entre os nervosos policiais. Um velho sargento insubordinou-se contra um oficial que engatilhou a arma para liquidar o grupo. Um cabo esbofeteou Amadeu Felipe, que mesmo com as mãos amarradas deu-lhe um tranco com o corpo. A tensão dominava o ambiente.
Havia vários dias que a polícia, a de Minas e a do Espírito Santo — e não as tropas do Exército ou quaisquer das Forças Armadas —, estava à procura de homens barbudos que circulavam em atitudes suspeitas pela serra do Caparaó, e que foram denunciados por moradores.
As forças de repressão já tinham se incumbido de espalhar o pânico entre os moradores das cercanias atribuindo-lhes a fama de “perigosos guerrilheiros comunistas”. Ninguém tinha intimidade com a região mais do que o guarda florestal Joverci Emerich, que guiou o pessoal da Polícia Militar mineira pelas trilhas das matas do Caparaó.
Alguns dias antes, dois dos guerrilheiros, o subtenente pára-quedista Jelci Rodrigues Corrêa e o sargento Josué Cerejo, ambos da Aeronáutica, haviam sido presos. Estavam em uma barbearia da cidade mineira de Espera Feliz, logo na divisa com o Espírito Santo, esperando a hora do embarque num trem para o Rio de Janeiro.
Longe dali, alguns dias depois, após comprar remédio em uma farmácia de Caparaó, Amaranto havia sido detido, como suspeito, por policiais. Estava quase convencendo de que era apenas um turista que comprava remédios preventivamente para subir a serra quando foi “apresentado” aos sete prisioneiros e não tinha mais nada o que falar. Cumprimentou-os um a um e juntou-se a eles.
Sem saber que os companheiros já haviam sido presos, seis membros do grupo de apoio urbano, quase todos bem jovens, entre civis e militares, haviam se dirigido para um ponto de encontro com Araken, na região de Realeza, entroncamento das BRs 262 e 116, no município de Manhuaçu. Foram levados durante a noite na kombi da Kellogs pelo promotor de vendas Edson José de Souza. Por seu envolvimento com o movimento, ganhou o apelido de Edson Caparaó.
Sem encontrar Araken, aqueles jovens marcharam, à luz do dia, armados, por estradas da região em direção à serra para “apoiar” a guerrilha. Foram surpreendidos pela polícia, armando um tiroteio que infernizou a vida de moradores. A impressão era de que a região estava tomada de guerrilheiros.
Pelo menos cinco mil homens do Exército foram mobilizados, com aviões, armas de grosso calibre e bombardeios intimidatórios na serra.
Fantasmas da repressão. A primeira tentativa de instalação da guerrilha rural no País havia fracassado.
— O que eles queriam aqui mesmo? — pergunta Joverci Emerich, o guarda florestal que ajudou a prender os guerrilheiros do grupo remanescente nas montanhas entre o Espírito Santo e Minas Gerais, o que demonstra o nível de informação sobre o que aconteceu ali entre 1966 e 67. Ou seja, nenhuma.
Afinal, o que levou esses militares da Marinha, Exército e Aeronáutica a se revoltar e a pegar em armas para resistir ao regime instalado pelos quartéis?
Qual o papel de Leonel Brizola, então no exílio no Uruguai, nesse movimento guerrilheiro?
Teria mesmo Fidel Castro colocado dinheiro cubano para financiar as ações da guerrilha?
E, se havia dinheiro de Cuba, por que os guerrilheiros ficaram abandonados na serra e chegaram a passar fome?
Um dos guerrilheiros presos na serra, justamente o único civil que ainda estava lá, um metalúrgico gaúcho, morreu na prisão em Juiz de Fora. Suicidou, como divulgou o Exército, ou foi assassinado?
Teria sido a guerrilha derrotada pelas forças de repressão, pelos seus próprios erros ou pelos ratos, transmissores da peste bubônica, que empestavam a serra na época?
Qual a influência da guerrilha do Caparaó sobre os demais movimentos de resistência armada que a sucederam?
Que ligação poderia haver entre Caparaó e a guerrilha do Araguaia, desmantelada em 1974 pelo regime militar, com um banho de sangue?
Que vergonha, ou que temor é esse, que fez com que Caparaó caísse no esquecimento da memória histórica nacional?
Onde foram parar os personagens que fizeram a Guerrilha do Caparaó?
Dos oito que foram presos no último dia, um morreu na prisão, outro tem destino ignorado, mas seis foram localizados e entrevistados em diferentes pontos do País. Mais de dez outros, que tiveram participação de alguma forma, também deram seu depoimento.
O que fazem e como pensam esses senhores, todos com mais de 60 anos, sobre o movimento que realizaram em sua juventude?
É sobre estas e muitas outras indagações que “Cabras e Ratos” pretende lançar luz, quase quatro décadas depois dos fatos transcorridos.
[COSTA, José Caldas da. Cabras e Ratos — Por que lutaram militares da Marinha, Exército e Aeronáutica na Guerrilha do Caparaó, primeira tentativa de reação armada ao regime de 1964. Textos introdutórios ao livro Caparaó, a primeira guerrilha contra a ditadura, baseado em depoimentos e entrevistas, com prefácio de Carlos Heitor Cony. Rio de Janeiro: Boitempo, 2007. Reprodução autorizada pelo autor.]
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José Caldas da Costa é jornalista e nasceu em 1960, em Alegre, Sul do Espírito Santo, no sopé da Serra de Caparaó. Escreveu para as principais revistas do Espírito Santo, atuou como repórter, redator e chefe de sucursal de A Gazeta (ES) e redator de O Globo, e voltou ao jornal A Tribuna como editor, respondendo por cinco anos (1996-2001) pela coluna política Plenário