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“Istambul, 1970″

Ilustração de Gilbert Chaudanne.
Ilustração de Gilbert Chaudanne.

Há muito tempo queria lhe falar de Istambul. Mas, como no amor, há sempre algo que impede de dizer a palavra justa, que seria como o abre-te-sésamo sobre a Cidade.

Seria fácil dizer que Istambul é a porta do oriente, a sublime porta que, como tal, sustenta todos os sonhos e devaneios dos cristãos europeus, do banho turco ao narguilé. Porta aberta sobre as cabeças cortadas de mulher que o eunuco joga, discretamente ou não, no Estreito de Bósforo — corpos esfolados de concubinas, dança de véus até a carne viva —, erotismo e crueldade como desejo encravado no ocidente: cravo e panela.

Istambul: porta para a Ásia enorme, seus platôs, seus impérios, suas estepes, sonho que anda nos templos, nos Budas, no grito de Alá, do deserto até as selvas mais profundas, a extrema fragmentação do homem e sua reconstituição no centro do Tibete, nas grutas dos monges-poetas. Será?

De qualquer maneira, uma porta.

Mas isso talvez não é o Espírito do Lugar, porém seu lugar-comum.

Passei em Istambul duas vezes: indo para a Índia e voltando. Indo: tinha uma carona feérica, da Macedônica até Ankara. Só vi, atravessando o Bósforo, aquela imagem clássica, porém eficiente, no plano emocional e estético: Aya Sofia, ex-basílica do finado Império Bizantino, transformada em mesquita, com seus minaretes e cúpulas arredondadas, que fazem pensar num soldado turco da época do Império Otomano: capacetes dos domos, minaretes-lanças. Visão fugaz no céu verde-pistache da aurora que deixei atrás de mim. Queria ir logo no Santo dos Santos: a Índia. Queria ver os deuses de mil braços e de cabeça de elefante — queria ver o culto vivo desses deuses, meu deus! — e o Islã estava no caminho, com sua pulsão da pureza — cristal do deserto —, o grito do muezim, que resume tudo, arrancando do paraíso as últimas esmeraldas, com a raspagem desse canto áspero, autoritário, mandão, absoluto. Deserto. Irã, Afganistão, Rajastã.

Na volta, carregando aquelas imagens barrocas da Índia, parei, tinha de, e me imiscuí na Sublime Porta.

Seus pas-de-deux: a cidade não sabe se é oriental ou ocidental, como os turcos: o boné que usam no lugar do turbante antigo parece estrangeiro nessas cabeças e faz deles uma espécie de antigos guerreiros soberbos que se sentem altamente desajeitados nessas roupas européias. É um problema de corpo e de corpo cultural. Os negros da África, quando de terno e gravata, perdem a elegância que têm quando se vestem como no Senegal, com uma espécie de vestido de uma peça só, azul ou branco, e bordado.

Istambul está a cavalo, por cima do mar. Sensação de estranheza esse pas-de-deux ocidente-oriente, mas não chega a criar um mal-estar. Ao contrário: é como se você hospedasse uma oriental em sua casa e ela aparecesse entre duas portas entreabertas, chispa de olhares — gazela de Borsalino na cabeça.

E justamente eu: eu numa avenida perto de uma ponte. “Where are you going?”: uma moça de minissaia, cabelo preto até a cintura, pele branquinha, oval tranqüilo do rosto, olhos negros sorridentes como uma criança. Nós conversamos assim, sem preâmbulos, no meio da avenida. Começou a juntar gente. Por que o oriente junta gente desse jeito? De repente — você está no deserto —, chega um beduíno de camelo, oferece água, pede pão, e, daí a pouco, um monte de beduínos surgem das dunas — junta-gente —, sedentos de saber sobre o ocidente e a França…

Essa moça — sim — me levou na casa de uns estudantes. No táxi coletivo, o dolmus, sua perna nua estava colada na minha. Eu olhava para ela. Ela sorria. Seu nariz era um pouco encurvado, o conjunto de seu rosto era leve e cheio de frescor. Chegamos à casa dos estudantes. Conversei, ela traduzindo, brinquei com um gatinho, que eu acariciava. Me explicou que os estudantes não estavam gostando da minha cara de andarilho. Estavam agora cochichando, na cozinha.

Ela olhou para mim, fixamente. Tive medo. Assim, o olhar dela era quase desesperado. “Tenho de ir.” E se foi. Não demorou, me fui também.

Fora, na rua, os transeuntes cinzentos não sabiam de nada.

O que foi?

Entrei no bazar e encontrei nele o labirinto que era meu coração naquele momento.

“Mas não esquecemos de Constantinopla” era a frase que corria no meu peito, depois de ter perdido a moça turca.

No labirinto — bazar —, vou encontrá-la de novo? Esqueça. Não há busca, só uma espécie de “errância”, em que os seres aparecem e desaparecem, como no Bazar, entre dois tapetes, e reaparecem, não há o fio de Ariadne, apenas o tempo que passa.

Não esquecemos Constantinopla — a cidade de Maria magnificamente encaixada em Istambul, a Turca, com seus ícones de ouro e pedra, e essa eternidade de Império que morreu sem morrer, porque tomando conta dos espaços eslavos pela sua ortodoxia. A ternura absoluta de Maria-Sofia ainda cintilando no Bazar, nas mesquitas: restos de mosaicos, restos de Império gélido.

Não esquecemos de Constantinopla. Não esqueci e, andando nas ruelas do Bazar, eu vejo, uma espécie de alucinação histórica, o último imperador bizantino, despido de suas insígnias imperiais, lutando contra o turco, de espada na mão, num certo dia de 1453, e morrendo em combate. Mil anos de uma decadência mais bela que todas as ascensões — esse Império que recuou, cada vez mais soberbo, mais, mais, os navios turcos deslocando-se sobre a terra, as correntes enormes, inumanas, fechando o Estreito de Bósforo, o canhão fálico do sultão explodindo, o fogo grego e, finalmente, a última brecha das muralhas em pé, ali. E a queda de joelhos, diante do Divino: Pantocrator e Alá.

Não esquecemos Constantinopla. Porque cada ocidental e cada oriental carregam a Constantinopla no peito — cruzado ou não. É a cidade de todas as cidades, a mãe das cidades, aquela mãe que todo mundo queria ter tido, num canto vertical e dourado, mais eterna que Roma no seu desaparecimento.

O que foi que sobrou de Constantinopla? Quase nada, mas esse imenso remorso de o ocidente ter deixado fluir a cidade no seu subsolo, como se ela não fosse um símbolo vivo, enorme e intocável, que todos os povos deviam respeitar.

História cruel, como o desaparecimento da moça turca.

Esses cabelos negros até a cintura, ó imenso ser de fuga, talvez você é a essência dessa cidade. Filha de turcos, ou, talvez, descendentes dos últimos bizantinos — de qualquer maneira, aquele desespero, de repente, nos seus olhos e sua fuga.

Talvez isto é Constantinopla?

Ilustração de Gilbert Chaudanne.
Ilustração de Gilbert Chaudanne.

Essa moça nem tinha nome. Será que existiu? Se não fosse o contato justamente existencial, no dolmus, não teria certeza, mas esse contato era algo como umas bodas secretas com o coração antigo da cidade, a sua “constantinopleidade”. Vou lhe chamar de Maria, já que a cidade é dedicada a Ela, já que você tem todas as qualidades de uma Maria que o deus ainda não tocou. Só eu a toquei e me queimei, como no fogo grego, me queimei. Incêndio de Constantinopla debaixo da pele turca do lobo cinzento — lobo das estepes, Steppenwolf — o lobo, Maria, Istambul, Constantinopla.

[Da série “Memórias de um maluco de estrada”, transcrito da revista Você, da Universidade Federal do Espírito Santo, n. 59, julho de 1998.]

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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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