Devo sim, Reinaldo Santos Neves. Bem mais do que você diz no final de sua denominada chorumela sobre a minha pessoa, publicada na Você n° 23.
Fique registrado que o prazer a honra foram minhas por ter participado, como colaborador permanente, de uma publicação hoje indispensável na vida cultural do estado. Como já fiz algumas vezes pessoalmente, vão aqui mais cumprimentos a você e ao Joca pela competência, persistência e garra.
Mas há também várias coisas na nota que credito à sua generosidade. Calma. Conheço você o bastante para não correr o risco de incomodá-lo com rasgação de seda. Mas há o fato. Sua nota deixou-me sozinho no meio da praça e a única coisa que consegui dizer foi “não mereço”. Peço calma outra vez. É preciso declarar que menções daquela natureza, vindas de um escritor de seu naipe, foram a melhor recompensa neste meu retorno às lides impressas. E isto porque, a despeito da supra declaração de ceticismo quanto ao merecimento, confesso que, ao menos num fugaz instante, me concedi o benefício da dúvida. Será mesmo? Então vi — como se diz biblicamente — que esse momento foi bom. Aí não tem conversa: muito obrigado e não aceito reclamações.
Prosseguindo. Fiquei surpreso com alguns detalhes citados por você. Como essa lembrança da leitura de Júlio Verne num dia de chuva. Mas fui puxando pela memória e me recordei. Claro, foi no verão passado. Havia comentado como geralmente sofro com o calor. Daí que, numa certa manhã, dentro desse verão de fogo que espero tenha sido comido para sempre pela grande galáxia recém-descoberta, avistei uma nuvem enorme em cima do Mestre Álvaro. Algumas horas depois, essa nuvem enorme desceu da montanha e, indômita, derrotou o calor com grossas bátegas refrescantes. Saudei a chuva e a baixa temperatura como o renascer de coisa remota mas muito desejável. Por um desses fenômenos climáticos esquisitos que vêm acontecendo ultimamente, dentro do verão instalou-se um clima de quase inverno. Um providencial resfriado leve, um chá de laranjeira feito por minha mulher, uma aspirina, um cobertor, ouvidos apurados para a possibilidade de ouvir o anjo todo molhado que, em dias de chuva, costuma ficar em cima do telhado soluçando no seu flautim, conforme a sugestão de Mário Quintana e… Júlio Verne. Um equipamento de primeira para navegar dentro desse bem-vindo invernico chuvoso, uma entidade renascida das cinzas de remota lembrança. Tão remota como esse professor Fergusson às voltas com seu engenho maravilhoso, o tal balão com que pretendia atravessar a África, toda a África em apenas cinco semanas.
A nostalgia subitamente apagada pelo bom clima e a atmosfera criada por Júlio Verne desaguaram numa nostalgia maior, a do tempo em que se acreditava, com entusiasmo, no poder infinito da ciência experimental. A certeza no progresso automático e a felicidade criada nas retortas dos laboratórios. As aventuras de Fergusson, Kennedy e Joe faziam viver dentro do meu quarto a generosa convicção de que a ciência resolveria todos os problemas humanos. Enfim, nesse nosso tempo tão impiedoso com as utopias eu podia viajar tranqüilamente naquela utopia do mundo em vias da perfeição absoluta. Uma viagem sensacional onde as certezas graníticas de Fergusson podem ser verificadas num trecho típico: “Falava-se um dia da direção dos balões e pediram a opinião de Fergusson a este respeito. — Não creio — disse ele — que se possa chegar a dar direção aos balões. Conheço todos os sistemas ensaiados ou propostos: nem um teve bom êxito, porque nenhum é praticável, etc. etc.”
Bom, nosso patrício Santos Dumont e os boeings intercontinentais nos fazem sorrir dessa declaração peremptória. Os de minha geração ainda chegaram a conhecer esse tom imperativo da palavra da ciência e, em alguns casos, diga-se, de uma forma positiva. Permita-me, Reinaldo, mencionar um caso pessoal. Nos anos quarenta peguei uma hepatite. Por recomendação médica saí de Vitória e fui para a casa de meus pais, na montanha. Visitado em minha casa pelo médico, o bom doutor Artur, ele me recomendou repouso e disse que ia fazer um remédio em seu laboratório que ficava nos fundos de sua casa. Lembro-me que, pouco mais tarde, ele próprio me trouxe umas cápsulas que eram muito grandes, difíceis de engolir. Recomendações peremptórias do médico: — Tome uma dessas cápsulas pela manhã e depois deite-se do lado direito durante pelo menos uma hora, procurando ficar imóvel o maior tempo possível. Em seguida, com ar absolutamente seguro, decretou:
— Em oito dias você fica bom.
Em oito dias, obedientemente, fiquei bom.
Sim, Reinaldo, os equívocos da palavra da ciência e o perigoso caminho do meu tempo. Mas vamos e venhamos, quantas vezes você já não leu em jornal a notícia que o café abre a inteligência, deixa todo mundo burro, dá ou não dá câncer, a vitamina C combate o resfriado, não, absolutamente, não tem qualquer efeito sobre o resfriado, etc.? Tudo sob a chancela de pesquisadores lotados de credenciais. A acusação menos grave é a de que se trata de uma frenética embora desordenada busca da verdade e a mais séria é de que são meros expedientes usados para atrair verbas sob o patrocínio da chantagem. Concordemos que, neste panorama, o velho cientista e o velho médico que acreditavam e lutavam por seus dogmas caminhavam em trilhas diferentes. Não tenho aqui à mão a peça de Brecht mas acredito que muito da personalidade de seu Galileu se deve ao Fergusson, ao Dr. Lidenbrock de Viagem ao centro da terra, etc., de Verne. A veemência, a convicção profunda no que acreditam, a alegria do fazer, a integridade intelectual são muito semelhantes. O Galileu, preocupado com trivialidades como comprar pão e leite ou em dar conselhos ao casal de namorados enquanto em sua desorganizada mesa de trabalho vão sendo esboçados nada menos que os fundamentos da física moderna, é uma personagem muito distante de Strangelove, por exemplo. Amigo Reinaldo, sem a menor intenção de transformar esta carta em epístola, mas também preocupado em não deixar muitas dúvidas em torno dessas notas que vão saindo no estilo de uma conversa sem maiores compromissos, quero dizer que a importância do conhecimento científico só pode ser negada por representantes do obscurantismo. A preocupação fica em outro ângulo e principalmente na idéia de que afinal a ciência nos livrará de quaisquer responsabilidades de decisão e tudo se resolverá de forma automática sob o patrocínio do Estado ou não. É só um estalar de dedos para que as emoções sejam organizadas com vistas a fins determinados. Ginger e Fred de Fellini é só um exemplo disso. Mas todos nós estamos cada vez mais espremidos dentro de espaços que ainda ousamos chamar de próprios. Desculpe, Reinaldo, mas o professor que mora aqui debaixo do pijama às vezes fica indócil e quer sair do invólucro natural, pegar no giz e lembrar dos velhos tempos.
Reinaldo, está na hora de desembarcar do balão. Seria possível ficar aqui dando tratos à bola e navegando por esses ares azuis da utopia. Antes porém de chegar à aldeia de Yula, no coração do continente africano, vamos mudar de rumo. Admitamos que os ventos alisados (da tradução do Dr. Francisco Augusto Correia Barata, lente de filosofia da Universidade de Coimbra) nos permitam cruzar o Atlântico e nos tragam aqui para o litoral do nosso Espírito Santo. Mais precisamente, para Piúma. Nesta antiga aldeia de pescadores foram locados os primeiros capítulos da novela A nau decapitada, de Luiz Guilherme. Registre-se que alguns dias antes eu havia acabado de reler essa novela e me bateu aquela necessidade de “checar padrões de emoção… criados pelo intelectual ou pelo artista, que encontram expressão e forma verbal adequadas para tornar conhecido e interessante o que antes era desconhecido e desinteressante”. Uma idéia de Huxley mencionada por Roberto Almada em Vocên° 15.
[Transcrito da revista Você n° 24, de julho de 1994.]
———
© 1994 Texto com direitos autorais em vigor. A utilização / divulgação sem prévia autorização expressa dos detentores configura violação à lei de direitos autorais e desrespeito aos serviços de preparação para publicação.
———
Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)