O que era Piúma para mim até então? Apenas sinônimo de contratempo. Explico. Nos primórdios das viagens de ônibus Vitória/Rio, circa 1955, havia só o trecho Campos/Rio em asfalto. O restante da estrada era de terra que produzia uma gorda poeira amarela. Lembro-me que, quando o ônibus chegava a Campos, um outro motorista assumia a direção de nossos destinos. Esse novo motorista, sempre muito janota, vinha com uma imaculada camisa de linho branco e um boné de almirante, cheio de dourados. Ao adentrar no ônibus tínhamos a impressão que nos lançava a todos um olhar de comiseração, a nós que vínhamos amarelados pela obesa poeira que, em dias de chuva, se transformava em grossas pastas de lama. Nos piores trechos da estrada que, como é da ordem natural das coisas, ficavam no Espírito Santo, quando o tempo era chuvoso, as interrupções eram constantes e, por isso, o caminho precisava ser desviado, o que significava sempre um bom acréscimo no tempo de viagem. Numa dessas viagens, à noite, nosso ônibus teve de ser desviado para Piúma. Ao passar pelo lugarejo recordo-me de ter visto apenas postes de luzes mortiças e uma triste rua deserta que não disseram nada. Claro, Luiz Guilherme ainda não havia dito fiat para que aquele local ingressasse no universo da criação artística, conforme a referida citação de Huxley/Almada. Se isso já tivesse ocorrido, quem sabe, os postes de luz e a rua deserta poderiam ter um significado diferente. Talvez até pudesse ser percebido o “alarido de vozes e canções sopradas pelo vento sudeste, oriundos das palhoças sitas na outra parte do rio” e que foram ouvidas inicialmente pelo major Marcelino de Castro e Silva naqueles idos de 1840, de acordo com a informação constante da Nau decapitada.
Ao chegar agora a Piúma, já devidamente criada por Luiz Guilherme, também fui marcado, de início, por um som, tal como o major, mas só que de forma bem diferente. Entre as demais razões porque se tratava de um segundo dia de carnaval e o baticum cavernoso que vinha de algum ponto da praia podia ser ouvido num raio de milhas. Chegando mais perto do povoado, o som já teria semelhanças com um terremoto do Armagedon. Não exagero. Os sons transpassavam minha camisa e me batiam no peito como se fossem pequenos tapas ou socos. Daí foi um pulo para, divertido, imaginar que seria talvez um truque de ninguém menos que o velho crápula Simão Boncarneiro, o vilão da história de Luiz Guilherme, que estaria querendo me impedir de entrar na cidadezinha onde fez as conhecidas estripulias com o governador Machado de Oliveira. Quem sabe o ordinário do Boncarneiro não estivesse morando por ali, posando de metralha regenerado que vai gozando a aposentadoria bebericando sua cerveja nos botecos de praia de Piúma. Talvez ele esteja querendo fazer o tipo bom velhinho que fica jogando ronda ou dama, a dinheiro, com os companheiros da praça. Seus companheiros ainda não perceberam seu jogo que certamente seria roubado. Graças a isso, com essa receita adicional, produto da rapinagem, viveria muito bem, comendo moqueca de robalo todos os dias e sempre imaginando novos golpes, como é de sua natureza. Portanto, seria bastante previsível que alguém que viesse de fora — como era meu caso — e conhecesse sua ficha, representasse uma ameaça de desmascaramento. Daí os tapas e socos enviados por ele através dessa usina do inferno sonorizado.
Apesar disso, fui me aproximando mais da cidade e os petardos sonoros atingiam níveis incríveis de intensidade. Agora até as folhas das árvores tremiam. Mas, lá na frente, afinal o mistério se desfazia e naturalmente nada tinha com o velho Boncarneiro, conforme a minha hipótese brincalhona. Um caminhão carregando duas caixas de som, altas como torres, despejava esse som desatinado em cima de uma pequena multidão possuída de fantástica alegria ou que pelo menos aparentava isso. Claro, o desastrado era eu mesmo, o que não é incomum. Você imagina doces praias ensombradas de coqueiros e ondas de brancas espumas quebrando na areia, como nas velhas poesias, e dá com a universal imposição de que é imperioso consumir o produto tal, tudo empurrado pela sua goela abaixo por esse som absurdo. Para suportá-lo é quase certo que essas pessoas não estejam mais ouvindo direito ou então que o problema seja de meus ouvidos que estariam já muito gastos e extremamente eletivos em matéria de gosto musical. Mas não fica nenhuma dúvida de que a culpa foi mesmo toda minha que estava no tempo e no lugar errados. A Piúma criada por Luiz, só em outro dia. Assim mesmo foi possível ver que a enseada é mesmo arredondada e que, olhando-se para o oriente, podem ser vistas as longas formas azuladas do dorso da cordilheira da Serra Geral. Fugindo um pouco da cidade, uma descoberta pessoal. O monte Agá, muito belo, não fica numa ilha, como eu pensava. Pode-se chegar até ele por uma pequena estrada. Nesse dia, ele estava sendo varejado por aviões ultraleves e teco-tecos. O que estariam querendo saber? Não sei. Mas fiquemos atentos, como diria um daqueles ultras de antigamente. De repente, constroem um prédio, uma torre ou qualquer outra coisa no cocuruto do morro e adeus monte Agá.
Mas, pensando bem, uma visita ao espaço criado pela ficção de Luiz seria apenas um requinte, a degustação da azeitona do martini, pois a fina degustação fica mesmo por conta da própria Nau decapitada em si. O livro, além do valor literário, é também muito importante para que o capixaba vá tomando consciência maior do seu espaço/tempo. Mas há ainda uma observação a ser feita. Depois da visita ao monte Agá, a fome chegou. Achei um discreto restaurante num canto de rua onde pude comer uma excelente moqueca de papa-terra. Mas afinal me esqueci de esclarecer um ponto que tencionava verificar in loco, relacionado com um detalhe da preparação desse imbatível prato regional. Pela boca do major Marcelino, Luiz Guilherme dá uma receita de moqueca que deixou uma dúvida: deve-se ou não adicionar uma pequena quantidade de água no preparo do prato? A água que as postas de peixe vão soltando durante o cozimento seria suficiente para fazer o caldo (receita constante da novela) ou haveria necessidade da adição de um copo d’água suplementar, como já vi em outras receitas? Eis a palpitante questão. Um detalhe aparentemente sem importância mas que talvez tenha sido decisivo na resistência inicial, que me parece ter havido e, em seguida, na aceitação generalizada do prato. Senão vejamos.
O major Marcelino fornece essa receita ao governador lá por volta de metade do século passado. Ora, pelo que sei, até meados deste século a moqueca preparada de uma forma aproximada como a atual ainda não era um prato muito aceito. Para quem não sabe, os divulgadores da moqueca têm até os seus mártires. Certa ocasião, uma pessoa amiga me contou que, nos idos dos anos quarenta, num almoço oferecido numa daquelas antigas casas da Praia do Canto com seus vastos pomares, ocorreu um fato marcante. A mesa do almoço ficava debaixo de um arvoredo e a cozinha também foi improvisada no quintal. Era um almoço para muita gente e o anfitrião, ele próprio, iria fazer o que, na época, se chamava de peixada. Sei, sei, o resto é peixada, etc. Mas isto foi depois. O fato é que, queiramos ou não, a nossa sagrada moqueca era chamada assim naquela época. Porém, esse almoço acabou não acontecendo porque, quando o peixe começou a ferver dentro da panela de barro, o anfitrião, autor da obra-prima, ficou tão emocionado que teve um enfarte e precisou ir para o hospital. Segundo meu amigo, esse cidadão recuperou a saúde e ainda comeu muitas moquecas mas nunca mais se atreveu a entrar nos domínios da preparação desse prato que, entre outras dezenas de virtudes, tem uma essencial, isto é, não leva azeite de dendê.
A questão portanto é a seguinte: o prato leva ou não água adicional? Nas minhas primeiras averiguações constatei discordâncias. Não me meto na história porque, como um dos oriundi, a minha praia é outra e só me atrevo a dar palpite quando o assunto é polenta, macarrão e assemelhados. Quanto à moqueca capixaba, limito-me a comê-la e louvar os deuses por ter inspirado seus inventores.
Bom amigo Reinaldo, fica aqui o meu abraço. Espero ter respondido às questões pendentes. Quanto ao saldo de minha dívida com a revista, meus capitais são muito escassos para liquidá-lo. Fico no vermelho.
Cordialmente
[Transcrito da revista Você n° 25, agosto de 1994.]
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Ivan Anacleto Lorenzoni Borgo é cronista e nasceu em Castelo, ES, em 21 de fevereiro de 1929. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Espírito Santo (Ufes), com especialização em Economia pelo Conselho Nacional de Economia em convênio com o MEC. Foi professor da Ufes de 1961 a 1989 e diretor regional do Senai/ES de 1969 a 1990. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)