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Longaterra

LONGATERRA

Toda, ou quase toda a história de meu país, eu, escrivão da Casa do Supremo, e cinco vezes chanceler, deliberei registrar. Procurei anotar, à luz de antigos documentos estelares, ou através da tradição oral, conforme me relataram os mais velhos. Juntei, também, ao texto, informações de fatos que eu mesmo testemunhei e dou fé.

Mas tudo isso, nesta hora que antecede a morte, me parece vaidade, e puramente vaidade.

Pois aqui, nesta Aldeia dos Anjos onde nasci, ninguém dá senhorio a quem merece. Aos sete anos de idade, por determinação paterna, passei a servir como pajem na Casa do Supremo, em cuja corte fui educado.

Eu, Roberto Alberoni, sou filho de um dos padres dessa Longaterra, jardineiro real que com sua paciência no trato das plantas, homem prudente e sábio, chegou a ser o segundo. Por seu trabalho os extensos campos além cordilheira foram cobertos de pomares viçosos e grandes plantações de milho.

Depois da derrota para os bárbaros do Ocidente, a quádrupla aliança o exilou na Serra Pelada, onde se dedicou a ampliar o Léxico de todas as línguas faladas nesse desertão. E, para meu uso, redigiu as seis razões de bem viver, a saber: “ter sempre em sua adega bons vinhos; gozar de amizades sólidas; beber quando tiver sede; comer quando tiver fome; transformar tristezas em alegrias; e última, mas não menos importante, qualquer outra razão que você, meu filho, possa imaginar para deixá-lo feliz”.

Meu maior amigo na Corte de Caixa Prego, depois conhecida como Aldeia dos Anjos, capital da Longaterra, antes da destruição, repito, pelos bárbaros ocidentais, meu maior amigo era Aléxio, filho de Mateus D´Alençon, sobre o qual falarei adiante. Miúdo, tinha a perna esquerda torta, e se valera, para ser sábio, das lições de meu pai, Júlio Alberoni.

Nos bons tempos, Aléxio, já rapaz de seus vinte anos, ambição à mostra, com sua perna cambota conquistou a Serra das Esmeraldas e fundou trinta povoações — comercinhos, como eram chamadas — todas com o nome de Aléxia.

A Escola em que estudávamos era uma edificação quadrada de madeira, único estabelecimento que possuía sala de música, com suas violas plangentes.

Quando havia saraus abriam-se os janelões e o povo ficava, lá fora, em pé, no sereno, e aplaudia minha mãe Serena, a grande virtuose da povoação.

Certo dia, Aléxio e eu afrouxamos as cordas das violas, e pela primeira vez na vida minha mãe enrubesceu, após ouvir aqueles sons cavos. As cordas frouxas solidificaram nossa eterna amizade.

Prometi-lhes falar de Mateus Alençon, pai de Aléxio. Era tipógrafo e havia ficado entre nós depois da primeira guerra contra o Ocidente. Escrevera novela picaresca, imitada (segundo ele) de um tal Rabelais, a qual foi muito apreciada por uns, e muito criticada por outros. Parece que este é o destino das obras literárias. Conquanto a gente, no dia-a-dia, usasse muitos palavrões, era a primeira vez que puta, merda, puta merda, cagalhão, apareciam impressos.

Quando o filho (Aléxio) se tornou o grande conquistador manco, o pai (Mateus) propôs reforma ortográfica e publicou uma aritmética e geometria nas 10 dimensões, cujo uso se tornou obrigatório em todo o país.

E, esquecia-me de dizer, Mateus era o mais fino mágico que por essas bandas andou. Dizem que ele fazia figuras de cera representando as tropas rivais do filho, e as fulminava com raios catódicos de antimatéria. Era, também, astrólogo, e previu, consultando planetas e estrelas, meu futuro tenebroso. Quando eu o consultei, em sua caverna ao pé do Monte Agá, creiam-me, é a pura verdade, ele (ao menos aos meus olhos atônitos) assumiu a forma de um dragão, dizendo-me que era um dos deuses de Selênio, que engravidou a Suprema, que veio a ser a mãe de Aléxio.

Eu, Roberto Alberoni, alguns anos atrás sonhei que conversava com Ernesto Sábato e ele me falava dos problemas terminais da condição humana: MORTE, SOLIDÃO, VONTADE DE MANDAR, DESESPERO, ESPERANÇA. Só não tenho (nem posso ter) vontade de mandar e esperança, mas tenho horror à morte e à solidão.

Foi quando recebi uma embaixada no Oriente (era a primeira vez que substituía meu pai como chanceler) que o príncipe do Monte Nevoso, o homem mais bonito que aparecera na Longaterra, me disse:

— O senhor é o homem mais bonito que eu já vi.

Sorri, ruborizado e envaidecido.

Ele, do alto de seus dois metros de altura, simplesmente pedia-me paz, e o elogio fora um prólogo propiciatório.

Desconfiei do artifício e respondi-lhe irado:

— Porém, por que vocês usaram o sangue de nossos soldados para fazerem o pão de suas festas religiosas?

— Calúnia. Na guerra, mentira como terra, — respondeu-me o príncipe D’Amito. E concluiu: — Nunca matamos um soldado de Longaterra.

Fizemos a paz, que se desejava perpétua. Mas logo os geribetas começaram a guerrear os hoplitas, por causa de uma função do que. Uns diziam que podia ser verbo, e usavam a expressão quequear. Os primeiros negavam. Vi-me numa entalada, pois tinha amigos nos dois partidos, e seus chefes, Hermógenes e Alfredo, eram íntimos meus. Que me importava, então, esse negócio de direita ou esquerda. Eu sou um técnico, apartidário. Nesta Aldeia dos Anjos quem não toma partido é chamado, duplamente, de traidor.

Chegou o dia dos tolos, quando era costume dar uns aos outros presentes falsos. Ninguém conhece a origem desse costume, mas dizem que veio da Índia. Mandei (como sempre fazia) uma torta recheada de algodão para meu vizinho e amigo Aléxio, que, pela enésima vez, caiu no logro e muito rimos, e muito rimos.

No Léxicon de Mateus D’Alençon (relembro: o pai de Aléxio) há muitas palavras arcaicas, já em desuso. Só na letra B, que tenho à mão, anotei Ben-senhor; Boná-Senhora; Bondub-cidade; Bonbrida-ponte, e, o mais engraçado Bondicô-ratazana, tantas ratazanas por aqui transitam.

Voltando ao tratado de paz, foi ele firmado apenas com os latuchos, sinal de que brevemente haveria outra guerra, terroristas não faltam nesta terra.

Os outros inumeráveis ocidentais, sem senso de cheiro, fustigavam os pantanais do sul, plenos de petróleo, onde nunca ousamos penetrar.

Com surpresa, D´Amito pediu asilo, logo concedido. Demos a ele uma cátedra científica e, contra o parecer do Sumo Sacerdote, ele começou a ensinar a teoria que chamava de seleção natural. De madrugada, sua casa foi apedrejada e, só com muita diplomacia, consegui que ele mudasse o discurso: Deus criou, mas sua lei é a da seleção natural, como as esferas podem movimentar-se sem um impulso inicial? Todos ficaram satisfeitos e o príncipe do Monte Nevoso, chamado D’Amito, continua feliz entre nós.

Em velho alfarrábio, o Senhor Supremo encontrou leis de Uruque e procurava adotá-las, na íntegra, aqui. Não deu certo. As rebeliões estouravam por toda Longaterra. Nossa lei é a do mais forte, e nosso povo não gosta de obedecer nem a chefes, nem a costumes, e muito menos a leis. É uma gente desabrida, das montanhas, que fala quando não é preciso e agride sem necessidade. Uns criadores de caso, que se tornam inconvenientes onde quer que vão.

A torre, segundo dizem, tinha quatro janelas, e nelas, ao alvorecer, se postavam as santas Ágata, Agnes, Bárbara e Cecília; todas defendiam a virgindade, o que me parece bom, com a população que temos. Lá de cima onde moravam, em altos brados, porém com harmoniosa voz, ensinavam aos passantes a carta do ABC e as virtudes morais que todos devemos perseguir: fé, esperança e caridade.

Em vão. Nesta minha arte não premeditada, Aléxio, meu amigo, condenou-me a beber cicuta, por crime de alta traição.

Qual foi a alta traição?

Ângela, a mais bela mulher do reino, me preferiu ao ditador.

Mas, no dossiê secreto a que não tive acesso, dizem meus carcereiros que consta que eu pretendia fugir para a terra dos brancos, atravessando o Mar Oceano do Leste. Para lá eu iria levando todos os códigos e segredos de Longaterra, que eu acumulara, ano após ano. Invencionice pura. Não farei, todavia, como Lope de Aguirre que, segundo se diz, na busca do Eldorado matou o chefe e se tornou capitão. Por rios e florestas, andou com sua tropa, até que escreveu ao rei dele acusando-o de ingratidão. Saqueava nessas vilas e povoados e foi morto pelos próprios comandados.

Eu, Roberto Alberoni, serei morto por ordem de meu amigo e comandante, Aléxio, assassino pragmático, só pensando no poder, que eu ajudei a conquistar, contra o Supremo, a quem tanto devia. Um ambicioso, que não se conformou com a negativa do amor de Ângela.

Vejo que não terei tempo de cumprir o que de início prometi. Nem história nem estórias, que o professor Carvalho me perdoe.

Não posso, ao menos, delinear minha árvore genealógica, nem falarei do céu sempre azul de minhas serras. Só há um livro onde me encontro: A gesta dos sábios de Caixa Prego, atribuído a Felipe Vinetti. Livro antigo. Já o li dez vezes e cada vez o entendo menos. No livro se fala de uma tal Juliette Adam (Era Cristã 1836-1936), a mulher de meus sonhos, avatar de Ângela Moriz, meu amor.

Em viagem, encontrei Ibn Ezra na Espanha, e cavaqueamos sobre tudo e sobre nada, e o poeta, em salão imenso de pedras lavradas, ele sentado, eu respeitosamente em pé, o poeta disse:

— No universo nada existe de absoluto.

— Nada.

— Nada. O absoluto está fora do universo.

Entrou no aposento a belíssima Vitória Mondale, trazendo chá e torradas (consta que o primeiro marido dela, Mario Canetti, riquíssimo, foi apunhalado e morto pelo poeta, que a desejava ardentemente). Mais tarde me disseram que Vitória envenenara Ibn Ezra e se casara com o médico Pedro Alvarez, considerado bruxo e autor da obra Os venenos como remédio. (Lembro-me do chá venéfico que vou ingerir amanhã.)

Lá fora os carcereiros discutem uma permuta de moedas, de nossos dinheiros por asiáticos. Isto me tira de minha reflexão. Querem eles passar o fim de semana no Grande Lago do Oeste. A meu ver é mentira, pois o ganho deles não dá nem para chegar à periferia desta Aldeia dos Anjos, na piscina pública da superquadra 91.

Mexo e remexo no meu ábaco, e o retângulo com pequenos discos de ossos humanos, mais que unidades, dezenas e centenas, representa apenas minha pobre vida, sempre envolvida nos negócios alheios, eu filho do jardineiro-mor, que chegou a chanceler e a segundo e foi exilado.

Eu, que atuei em Toledo e Bagdá, morrerei como um reles traidor.

Depois das guerras, só eu defendia maior entendimento com os ocidentais. Vejo milhares de refugiados descendo montanhas cobertas de neves eternas. Rebeldes, hostis a Deus e ao mundo. Rasgam, como de valia alguma, toda a literatura sacerdotal, milhares de anos de evolução. Nem os lingüistas escapam de sua fúria assassina.

Enquanto isto caravanas nas estradas trazem para o ditador e a primeira dama, a ex-minha Ângela, ouro, incenso, mirra, aloés e macela.

O que este amigo que me mandou matar tinha de bom era sua capacidade inesgotável de beber vinho (Regra 1 de meu pai) e, enquanto saboreávamos o vinho da África do Sul (o preferido por ele), fazia versos horríveis, endeusando Ângela, e fazendo com que eu mordesse os lábios, de ciúme.

Então, saímos em expedição, para descobrir as nascentes do rio AB. Naquele dia tudo eram festas, e jamais poderia supor que próximo estava meu triste fim.

Eu, Roberto Alberoni, não posso, entanto, esquecer-me de que, em priscas eras o pai dele, Mateus, previu, olhando os astros, meu tenebroso futuro.

Quando Aléxio gritou:

— Você está querendo conquistar Ângela…

Aqueles laços entrelaçados em menino, quando afrouxamos as cordas das violas, aqueles laços se romperam. Vi a morte à minha frente. Poderia matá-lo e assumir o comando, eu era mais forte, mas não o fiz.

Ainda tentei homiziar-me na Vila Franca de meu amigo Darcy Xavier, que nas horas vagas escrevia para os almanaques sob o pseudônimo de Tupinambá Tupiniquim, mas ele me vendeu, a Aléxio, por não mais que vinte dinheiros.

Eis-me acorrentado numa barca, rio abaixo, enquanto Aléxio, na volta, se proclamava o novo Senhor Supremo.

Antes de morrer, quero registrar o porquê de Aldeia dos Anjos.

Um marido enfurecido tirou a faca da cinta e matou a esposa, dizendo-lhe:

— “Vai viver com os anjos…”

Ela se negava a ele, informando que fizera secreto pacto com um anjo, seu amante, dono de seu corpo.

Daí, desde aí, Caixa Prego Aldeia dos Anjos se chamou, cresceu, cresceu, mas aldeia ficou para sempre.

Quando meninos, eu e Aléxio chamávamos o inspetor de quarteirão Jucundo de Macaco Simão. Foi ele reclamar ao Senhor Supremo, o qual, vestido em seu esplendor de púrpura, justificou-nos:

— Não esquenta a cabeça, não. Esses meninos só me chamam de Pombo Roxo…

Foi quando morreu meu pai que os sábios da aldeia atestaram que a alma dele reencarnara num asno que nascera naquele mesmo dia. Pois minha amorosa mãe Serena mandava servir, todos os dias, ao animalzinho, bife com ovos fritos, a comida predileta de meu velho pai.

Sei que vou morrer, com dia e hora certos. Pior, dizem, e tenho compaixão dele, foi Baudelaire que, unindo-se a uma mulher de cor, deu-se ao ópio, e morreu pobre na Maison de Santé de Bruxelas.

Pobre Baudelaire!

Pobre Roberto Alberoni!

No chão da cela encontrei pequenas contas de vidro, em forma de bolinhas de gude que os meninos chamam de olhos de gato. Herança que recebo de algum preso anterior. Olhando-as, vejo o passado, o presente e o futuro.

Vejo o mar verdíssimo, que, muitas vezes, atravessei.

Vejo os políticos, defendendo, da boca para fora, as necessárias reformas.

Vejo o Intendente, antes de qualquer ato público, fazendo o sinal da cruz, cristão, herança dos ocidentais, e dizendo em língua dos indomáveis bororós:

Poera.
Tatra.
Langa.
Tupanga.

Seja isto o que for, é dito.

Vejo um túnel de luz que, veloz, se encaminha para a décima dimensão.

Você está dizendo que minha história está muito confusa e desenxabida.

Está. Concedo. Mas, que é que você queria se amanhã é o grande dia?

Das ruínas do templo, entre cinzas satânicas, acompanharei a glória de meu amigo de infância, Aléxio.

Já sei o que vai acontecer.

No grande salão oval, presente a fina flor da nova corte, dão-me a ingerir uma beberagem amarga. Cicuta? Arsênico? Suco da água-marinha?

Para mim, pouco me importa, o fim é o mesmo.

Terei náuseas. Vômitos. O intestino, vergonhosamente, não me obedecerá. Onde estarão, então, minhas normas e etiqueta diplomática? Sentirei dores no corpo todo, especialmente na cabeça. Tomarei meu pulso: cada vez mais fraco. Entrarei em coma. Morrerei. Quem se lembrará de mim?

[Reprodução autorizada pelo autor.]

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Renato Pacheco foi importante pesquisador da história e folclore capixabas, além de escritor, com vários livros publicados. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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