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Lúcia e Michael Carasso com seus dois filhos. |
“Era uma manhã, bem cedo, como outra qualquer, quando de repente bateram à porta e disseram em alemão: ‘Fora! Fora de casa agora!’
Nós éramos sete. Meu pai, minha mãe, eu e mais quatro irmãos. Saímos do jeito que estávamos, com a roupa do corpo. Todos, com armas em punho, nos levaram para o carro. Foi uma longa viagem de trem, interminável, de Salonica, Grécia, para a Polônia. Todo mundo em pé, igual gado, quase sem se mexer, de tão lotado que estava. Fazia frio… Sentíamos fome, sede, medo, desespero, tudo! Não entendíamos o que estava acontecendo.
Nosso destino foi um campo de concentração na Polônia. Lá eles separaram os homens das mulheres, as mães de seus filhos, a minha mãe de mim e dos meus irmãos. Só não me separaram da minha irmã Mary, que esteve comigo durante todo o tempo e saiu viva de lá também. Meus outros irmãos eu nunca mais vi.
As crianças, na maioria dos casos, eram descartadas. Eu era muito nova, a filha caçula, não tinha nem 12 anos, mas sobrevivi porque era grande e esperta, boa para trabalhar. Além disso, tinha facilidade com línguas e aprendi a falar alemão lá dentro, o que me fez ser a tradutora oficial dos nazistas: traduzia do alemão para o grego ou espanhol. Facilitando a comunicação entre eles e nós, prisioneiras.
Os principais campos em que passei foram de Auschwitz-Birkenau, Dahau e Bergen-Belsen, na Alemanha, de onde fui salva.
O trabalho era inútil, praticamente com o objetivo de acabar com nossa força e ânimo: destruíamos casas novas, lindas, que eram dos judeus, tirando janelas, portas, tudo… As peças de valor eram separadas. Também cavávamos terra, andávamos muito, íamos e voltávamos de um lugar a outro. E sempre com gente nos vigiando. Quem parasse de trabalhar apanhava. Para podermos descansar, nós nos vigiávamos. Quando os nazistas estavam chegando, um avisava ao outro para todo mundo voltar a trabalhar. Começávamos cedo e só parávamos à noite, totalmente sem energia.
Banho era com água gelada e o sabonete era feito com os corpos das pessoas que eles matavam, ou de pancadas, ou com tiros ou nas câmaras de gás. Mas só descobrimos isso muito tempo depois… Tínhamos que estar limpinhos e arrumados no outro dia. Mas como? Lavávamos a roupa à noite, mas não dava tempo de secar. Por vezes tínhamos que torcer e colocar embaixo do colchão. Claro que não ficava seca. E aí, muitas vezes, dormíamos nus.
Da família só sobramos eu e minha irmã Mary. Muitas vezes ela dava a comida dela para mim, como um reforço, e acho que isso me ajudou a sobreviver. Com um jeitinho que não “era brasileiro”, muitas vezes ela pedia às chefes do nosso bloco algo a mais para comer, alegando qualquer desculpa. Algumas meninas, que não eram tão ruins, acabavam nos ajudando. No almoço era um caldo ralo, parecendo sujo, feito de casca de batata, sobras dos alemães. E esse caldo era muito salgado, uma forma de tortura também, porque não podíamos beber água a hora que quiséssemos. De manhã, era um café ralo apenas e, à noite, nem sempre tinha algo pra comer. Às vezes uns pedaços de pão tipo caseiro para dividir entre todas nós e só.
Dentro do campo de concentração de Auschwitz tocava uma sirene e ninguém sabia o que era aquilo. Depois, subia uma fumaça e um cheiro horrível. Só depois as pessoas foram desconfiando o que era aquilo. Eram os crematórios.
As pessoas lá dentro eram conhecidas como números. Tenho um número tatuado no braço até hoje: 39.422. Eu era uma dentre milhões de pessoas que estiveram sob a mira furiosa dos SS. Pessoas não! Porque pra eles éramos “sticks”, ou seja, peças. Nunca quis apagar esta tatuagem porque olhando para meu braço eu sei que sobrevivi.
O dia mais feliz daqueles dois anos e meio em que fiquei presa, foi quando os soldados do exército americano chegaram e gritaram: “Estão livres!” Saiu todo mundo gritando, de euforia, de surpresa, de gratidão, de alegria! Gente soltando as ferramentas de trabalho que tinham nas mãos, se jogando no chão, xingando, correndo desesperadamente de um lado pro outro, se juntando, dando as mãos… Teve gente que não acreditou.
Aí, nos levaram para o campo de refugiados na própria Alemanha. Depois, fomos para um refeitório, onde tinha lugar para todo mundo tomar banho e se vestir. Foi ali que encontrei minha felicidade! Conheci Michael, meu falecido marido, que também era grego e esteve preso como eu. E foi amor à primeira vista… Minha irmã também se apaixonou pelo melhor amigo do meu marido, se casaram e foram para os EUA.
Eu e Michael fomos para a Grécia. Ele queria ver se encontrava alguém da família dele e eu também tinha esperança de encontrar alguém da minha. Mas não achamos ninguém. Nós nos casamos e tivemos dois filhos, mas, em 1950/1951 fomos para Israel, onde meu marido tinha alguns familiares. Lá ficamos por cerca de três anos.
Pensando em sair de Israel, fomos numa agência de turismo e vimos cartazes de vários países. O do Brasil tinha uma bananeira e uma arara linda! Aquilo chamou nossa atenção, já que sempre gostamos da natureza. Vimos que ali podíamos ser felizes com nossos filhos. Foram mais de vinte dias de uma viagem terrível de navio.
Fomos para São Paulo, mas o navio parou no Rio de Janeiro e a primeira imagem que vimos foi o Cristo Redentor de braços abertos. Então tivemos certeza de que seríamos felizes aqui. Chegamos em 21 de abril de 1954, meu marido falava que era o dia do renascimento da gente. E foi mesmo! Até hoje não sei quantos anos eu tenho! rsrsrsrsr
Em São Paulo, meu marido foi camelô. Depois, viemos para Vila Velha. Ele foi camelô aqui também. Montou uma loja e fomos crescendo na vida. Construímos tudo aqui. Dois filhos, seis netos e cinco bisnetos. As últimas palavras do meu marido para mim foram: ‘Lúcia, não se esqueça da minha promessa’. A promessa era a de colocar nossa história no mundo, para que atrocidades como o holocausto nunca mais aconteçam.
Nossa história é muito triste, mas com um final muito feliz.”
Lúcia Carasso.
[Depoimento especial dado à Estação Capixaba. Reprodução autorizada pela depoente.]
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