Voltar às postagens

Macacos me mordam ou com todos os diabos

Naquela manhã, Pedro, o escrivão, ao despertar de sonhos agitados, sentiu-se um autêntico Gregor Samsa, isto é, uma barata. Apesar do seu decaído estado de espírito, encontrou forças para se firmar nas pernas e ir trabalhar.

“O senhor está doente, seu Pedrinho?” perguntou dona Lenilda logo que o viu.

“Por que a pergunta?” balbuciou o escrivão, fazendo-se de desentendido.

“Porque neste horário o senhor costuma pedir uma xicrinha de café e fumar um cigarrinho, mas hoje pediu apenas água. De mais a mais, está com cara de quem comeu e não gostou…”

Pedro bebeu a água em pequenos goles e quando terminou confirmou as suspeitas da faxineira: “Realmente, Lenilda, hoje acordei perrenguinho, como diria Hermógenes Lima Fonseca. Acho que estou com espinhela caída. Perdi o apetite e até a inspiração literária. Nem os meus comprimidos de alcachofra composta têm resolvido.”

“Espinhela caída pode ser. Mas não é só. Parece mais que o senhor está com encosto. Tem coisa ruim ‘garrada’ no seu lombo. Mostra a língua.”

Pedro não se fez de rogado e botou boca afora um palmo de língua crespa e cinzenta que a faxineira da delegacia examinou extrinsecamente.

“É encosto mesmo, seu Pedrinho. Eu consigo ‘ver’ pela língua das pessoas.”

“E tem cura, Lenilda?” agitou-se o escrivão em sua cadeira giratória.

“Depende…”

“Depende de quê?!”

“Depende de fazer uma simpatia …”

“Do jeito que estou, faço uma e até duas simpatias…” disse o escrivão num descuido zombeteiro.

“Está vendo! O senhor tem de levar a simpatia a sério. Com essas coisas não se brinca… É preciso fé e respeito.”

“Desculpe, Lenilda, foi apenas um modo de falar. Às vezes, abuso de piadinhas tolas. Qual é a simpatia?”

“Jura que o senhor vai fazer…?”

Pedro teve vontade de dizer “juro, pelo cu da tanajura”, como diria o velho Hermógenes, mas não quis se arriscar pela segunda vez a perder o antídoto contra a lombeira que o abatia.

“Macacos me mordam se eu não fizer”, respondeu, procurando se lembrar da última vez em que lera aquela expressão, já que nunca a ouvira pronunciada por ninguém.

Satisfeita com a resposta, a faxineira deu a receita: “O senhor compra um mamão que não seja muito maduro, abre um buraquinho nele na parte de cima e faz xixi dentro. Depois, enterra num lugar onde o senhor não passe mais… Mas tem de ser o primeiro xixi do dia,” instruiu a faxineira com jeito de macumbeira.

Pedro tentou se imaginar comprando o mamão no feirão da esquina, depois fazendo a incisão no fruto na parte de cima, depois segurando a fruta na posição adequada para a coleta da urina quando lhe assaltou a dúvida:

“Vou ter de botar no mamão toda a minha mijada matinal?”

“Quanto mais, melhor, seu Pedrinho…” recomendou a faxineira imperturbável.

“Mas vou encharcar o mamão e a mão, Lenilda! Eu não posso fazer xixi num copo e depois botar na fruta, para regular a quantidade?”

Lenilda olhou para o escrivão com cara de poucos amigos e advertiu:

“De jeito nenhum, senão a simpatia perde efeito. Toda simpatia tem um sacrifício. Nesta, o sacrifício é fazer xixi direitinho dentro do mamão e enterrar ele num lugar de terra preta.”

“Enterrar o mamão? Ainda tem este capítulo?”

“Enterrar bem enterradinho em terra preta,” confirmou Lenilda.

“Terra vermelha não serve?”

“Nem vermelha, nem amarela, nem na areia da praia… Tem de ser terra preta, se o senhor quiser ficar bom, para voltar a comer suas tripas de porco fritas com toucinho dentro, que eu sei que o senhor adora,” disse a faxineira como se prescrevesse uma receita médica.

“Mas onde é que vou arrumar terra preta, mulher? Você não sabe que eu moro em apartamento? Pode ser terra de vaso de planta?”

“Esqueceu que o senhor não pode mais passar por onde enterrar o mamão?”

“Você é que não entendeu, Lenilda. Além do mamão, eu compro um vaso com terra preta só para usar na simpatia. Depois jogo ele fora…”

“Quem não entendeu foi o senhor, seu Pedrinho. Num vaso de planta, como é que o mamão vai virar mamoeiro?”

“Mas, Lenilda, o mamão vai ser enterrado para acabar com a minha quebradeira ou para virar mamoeiro?”

“As duas coisas, seu Pedrinho. Pra virar mamoeiro e pra livrar o senhor do encosto,” afirmou Lenilda com as mãos na cintura.

“Com todos os diabos, não me diga que ainda vou ter de comer os mamões que vão nascer regados com o meu mijo” disse o escrivão, procurando se lembrar de quando havia lido a expressão com todos os diabos, já que nunca a ouvira pronunciada por ninguém.

“Lá vem o senhor com brincadeira, seu Pedrinho… Vai comer o mamão quem comer o mamão,” foi a resposta da faxineira.

“Você não acha isso asqueroso? Eu encho o mamão de xixi, planto ele em terra preta, o mamoeiro nasce, dá mamões que foram regados com o meu infectado líquido doentio, e outras pessoas vão comê-los para eu me livrar do encosto… A simpatia permite isso?”

“A simpatia é para isso, seu Pedrinho. Para o encosto largar do senhor e passar para quem comer o mamão…”

“E só vou melhorar depois que isso acontecer?” preocupou-se Pedro.

“Não, meu amigo! Só de plantar o mamão o senhor vai ficar bom, se não passar pelo lugar outra vez. Já o encosto nunca mais vai voltar pra cima do senhor se outras pessoascomerem os mamões, entendeu? É como ficar vacinado pra toda a vida…”

“E se o mamoeiro não nascer, ou se nascer e não der mamão, ou se der mamão e ninguém comer, eu posso ter recaída?”

“Que pode, pode, seu Pedrinho, mas aí a gente repete tudo de novo.”

“Repetir a simpatia? Quer dizer, eu vou ficar novamente borocochô, vou ter de comprar outro mamão, botar nele minha bovina mijada matinal, enterrá-lo em terra preta, esperar que vire mamoeiro, que frutifique e que pessoas que eu não conheço comam os mamões para o encosto largar do meu lombo e me imunizar para sempre… É assim que a simpatia funciona?”

“Assim mesmo, seu Pedrinho. Só que eu não conheço nenhum caso de mamão mijado e plantado direitinho em terra preta, que não tivesse virado mamoeiro, dado mamão e passado o encosto para outro. O senhor não vai ser o caso que não deu certo,” explicou Lenilda com a proficiência de quem conhecia de trás para frente os procedimentos receitados.

“E o que garante que não serei a exceção à regra?”

“A fé, seu Pedrinho! Lembra do que eu falei no começo da nossa conversa? É preciso ter fé. Comprar o mamão com fé, fazer xixi com fé, plantar com fé… Afinal o senhor quer ou não quer ficar curado?”

“Quero, Lenilda. Tenho de me livrar dessa perrengueira o quanto antes…” disse Pedro sabendo, todavia, que sua fé era mais para o estilo de Graham Greene do que de São Tomás de Aquino. Mas sabia também que Lenilda estava falando de outro tipo de fé, a fé nas forças imponderáveis que fogem à vã compreensão humana e rondam entre o Céu e a Terra como diria o dramaturgo, se é que diria.

“Hoje mesmo vou comprar o mamão e amanhã já estou seguindo a simpatia à risca,” prometeu o escrivão.

“E o senhor já sabe onde vai enterrar o mamão?” perguntou Lenilda previdente.

“Estou pensando no Parque da Cebola, o que você acha?”

“O lugar é ótimo, mas o senhor não pode mais voltar lá, está lembrado?”

“Tinha me esquecido deste detalhe. Então, que tal o vale do Mulembá?” perguntou o escrivão.

“Pelo que eu sei, a terra do vale virou patrimônio capixaba… Não é de lá que as paneleiras recebem o barro para fazer as suas panelas?”

“É verdade, Lenilda… Tem de ser então em outra parte…”

“Por que o senhor não enterra o mamão na matinha do Convento?” indagou a faxineira.

“Macacos me mordam, por que não me lembrei da matinha do Convento? E ainda tem a vantagem do mamoeiro crescer sob a bênção de Nossa Senhora da Penha.”

“E dar mamão pra quem subir ao Convento e tirar eles,” acrescentou a faxineira debochada.

“Com todos os diabos, Lenilda, sabe que você é genial?”

“Obrigada, seu Pedrinho, muito obrigada.”

“Então, mãos ao mamão!” disse Pedro entusiasmado.

“Mãos e xixi nele, seu Pedrinho. Xixi colhido de manhãzinha, se o senhor quiser ficar bom.”

“Epa, Lenilda, mas como é que eu vou levar o mamão com xixi até a matinha do Convento?” perguntou Pedro, tocado pela questão que somente naquele momento lhe ocorria.

“Não tem dificuldade,” respondeu Lenilda. “Quando o senhor cortar o mamão pra botar o xixi, deixa uma bandinha pra servir de tampa, como se fosse um curativo pra prender com esparadrapo. Depois do xixi seca bem sequinha a casca do mamão para o esparadrapo grudar, bota o mamão dentro de um saco plástico bem ajustadinho e leva ele num baldinho forrado com papel. Assim o xixi não vai entornar. Na matinha do Convento, o senhor abre o buraco no chão, tira o mamão do plástico, tira a tampinha com o esparadrapo (não vai esquecer de tirar), enfia o mamão no buraco e cobre com terra preta. Tem que ser preta, não se esqueça.”

“Com todos os macacos, Lenilda, você é mais do que genial, é genialíssima,” elogiou Pedro.

“Mais uma vez obrigada, seu Pedrinho,” agradeceu a mulher, retirando-se para o interior da delegacia como uma bruxa que cumprira o seu papel. Só faltou ir cavalgando a vassoura das faxinas.

[Este texto integra a série intitulada CHAPOT PRESVOT 272, de Luiz Guilherme Santos Neves]

Luiz Guilherme Santos Neves (autor) nasceu em Vitória, ES, em 24 de setembro de 1933, é filho de Guilherme Santos Neves e Marília de Almeida Neves. Professor, historiador, escritor, folclorista, membro do Instituto Histórico e da Cultural Espírito Santo, é também autor de várias obras de ficção, além de obras didáticas e paradidáticas sobre a História do Espírito Santo. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

Deixe um Comentário