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Maestro do jardim

Subindo na montanha.

Deixar para trás o caldeirão da Grande Vitória, a estufa tropicalista já com toque de babilônia moderna.

Subir — corpo mais leve —

Chegar no chamado lugar Vista Linda: um hotel. Deparar-se — neste hotel — com uma montagem de brinquedos e miniaturas mecanizadas; e já: essa sensação germânica tomando conta da percepção: arrumação, ordem, montanhas, brinquedos, lourice, calmaria.

Porém há mais: Campinho: Hotel Imperador, salas imensas, jardins labirínticos — mas labirinto sem minotauro, onde há como a expectativa de algo que pode surgir, mas não algo monstruoso — ao contrário — um senhor de meia-idade, daquela idade ingrata onde a pessoa não é mais jovem e ainda não se encaixa na categoria mítica dos velhos sábios — um senhor de meia-idade, muito elegante, de terno branco e chapéu Borsalino branco, uma bengala de ébano com botão de prata trabalhada, rugas discretas ao redor dos olhos azuis — imensamente — olhar de quem já viu muita coisa e que veio aqui para esquecer o mundo, para reencontrar o jardim — não o da sua juventude porque ele não tem no olhar aquele saudosismo lusitano — não. Ele veio a Hotel Imperador / pode ser / para se tornar imperador de si.

Porque estes jardins, com mil jogos de esconderijos com surpresas quase que femininas (fru-fru de grandes saias fantasmáticas), ali, imitam a mata mas censuram o lado desumano dessa mata, tirando da natureza somente o que adquire um sentido para o humano e assim essa estadia no Hotel Imperador é como uma romaria mas sem nenhuma conotação igrejeira — há ali uma romaria bem humana em toda sua delicadeza-fragilidade de verdadeira rosa do humano — crescendo talvez no jardim do Hotel Imperador.

E se o olhar é logo seduzido pelo jogo em quincunce do jardim e das suas diferentes partes, há nesse jardim assim como uma música implícita, ou um coro de vozes abafadas que, na verdade, parece cantar por dentro e cujo maestro é nosso homem de meia-idade, de terno branco, com o olhar azul dos desmaios vividos: o Maestro do Jardim.

E há uma piscina que parece ser como o coração flutuante do jardim — folhas mortas nos azulejos, algumas cadeiras de ferro branco, um ar meio bizantino, neo-romano, algo como um classicismo que teria caído na mão de um maquiador, a solidão — folha morta, a solidão povoada pelo grande silêncio do jardim/natureza que enfim homenageia a presença do homem, de um homem inteiro como o compositor ali presente, de terno branco com o olhar azul-flutuante.

Imperador de si — e não dos outros — e como?

O senhor de terno branco, compositor de meia-idade, com aquela elegância de quem já bebeu demoradamente de todas (ou quase) as taças, inclusive a do amor e da glória, e que lentamente foi enjoando daquilo tudo, como se essa bebedeira elegante não fosse o fino do prazer mas a sua negação — já que o prazer sempre desembocava num buraco no meio do seu próprio peito — um buraco onde o vento da montanha pura soprava e que, assim, confeccionava o que os homens, os cristãos-vivos, chamam de música. Ele se tornou músico por ausência porque nunca conseguiu estar realmente presente nas festas dos homens e nas igrejas dos cristãos-vivos.

Ele sempre foi um adepto da “Montanha Mágica” e isto apesar de um verdadeiro tomar-conta-de-mim que era o efeito do mar nele — um adepto das alturas sem cair nas acrobacias circenses dos alpinistas, nunca teve vocação para circo, a não ser / às vezes / diante do seu espelho — do espelho do armário, no quarto 12 do Hotel Imperador: mímicas privadas, como o fazer-cocô da manhã, o cigarro turco, achatado e perfumado, do almoço, sentado / de terno branco / na beira da piscina onde nunca ninguém tomava banho, a se lembrar dos seus amigos Gustav Mahler e Egon Schiele — outras épocas — outros impérios já falecidos como todos, e a conclusão estava escrita em letras de ouro na madeira lisa e envernizada do hotel: “Vós é que sois o Imperador” ou teria sido simples alucinação visual, essa frase escrita, porque ninguém conseguiu confirmar sua presença — Frase soprada no vento da montanha pura. — Talvez.

O que deixava o observador meio aturdido neste hotel era isso: essa presença-não-presença.

Ao mesmo tempo havia algo como um abandono, uma presença levemente sorridente — que podia ser ou não o rosto de uma moça loura e encolhida no seu corpo e sua saia frufrutando entre os galhos, uma pálpebra feminina abaixando-se lentamente, o olho ocupando repentinamente o espaço todo do jardim e fazendo-o flutuar dentro do seu azul absoluto, para desaparecer da maneira mais doce possível — esvanecimento quase que imperceptível e que deixava dúvidas a respeito do princípio de toda realidade e especialmente a, incontornável, da dor; essa presença-não-presença do hotel e do jardim do hotel confirmada na presença dos casais, no restaurante em nível inferior comprido e bem aberto sobre o jardim e que parecia com uma estufa (sem dar a essa palavra aquele sentido de calor estonteante) dando-lhe o sentido de “casa-dentro-do-jardim”, casa completamente filha do jardim e assim servindo de ponte. Esse restaurante orientado perpendicularmente ao resto do hotel parecia ser uma ponte entre o jardim que o cercava e o hotel “a casa dura” solidificada nos quartos fechados sobre si, e essa “casa dura” olhava o resto da cidade que então assumia o papel de casa-das-casas. Restaurante embaixador entre a Mãe-Natureza (já um pouco humanizada pelo jardim) meio maluca lá nos arredores da cidade e a casa dos homens por excelência: a cidade. E os casais ali presentes comiam, em silêncio ou deixando apenas escapar sussurros, como se o espaço do restaurante fosse algo parecido com uma capela (pode ser porque ali o fato de comer era um ato quase que sagrado: o da deglutição pelo humano da Mãe-Natureza sob a forma dos alimentos, uma comunhão que criava o espaço humano do restaurante e a partir dali do hotel e da cidade).

Entretanto essa semelhança com uma capela era apenas superficial. Espaço místico com todos os arrebatamentos que isso supõe? Não — nada de arrebatamento — calmaria, analgesia, fantasmáticos ou quase — os casais — mas nada de morte rodeando, ou então uma morte lógica e doce que contradiz as mortes naturais que apesar de serem naturais nunca deixam de ser idiotas. E esses casais jovens ou velhos ou maduros não tinham o aspecto de casais legítimos no sentido da lei. Eram casais tranquilamente fora de toda lei e que se amavam perfeitamente, compartilhando seu jantar como uma ceia, mas uma ceia que é apenas uma ceia de frutos da terra e não o prelúdio a mil arrebatamentos celestiais por cima deste hotel, dessa montanha pura e borbulhando de tanta pureza. Os seus corpos, à noite, se encontravam como sempre se encontram os corpos dos amantes, com aquela infinita aproximação e estremecimento dos dedos formigando, com aquele suspender do fôlego e de toda visão do mundo, até que a mão se deita sobre uma anca e nesse momento — nos quartos do hotel — a madeira canta para se lembrar também do tempo em que ela era amada, lá na montanha, para se lembrar do tempo em que ela cantava, essa madeira, no vento puro da montanha, junto aos pássaros-reis e aos macacos pré-socráticos.

[Este texto faz parte de uma série que tem como objetivo uma tentativa de evocação, no plano mítico-poético e no plano conceitual, da identidade capixaba. Este texto, ao contrário do anterior, “O barco ébrio”, que mostrava o lado dionisíaco dessa identidade, quer apontar agora seu lado apolínico.]

[CHAUDANNE, Gilbert. Maestro do jardim. Revista Você, Vitória: Ufes, n.8, I, fev. 1993. Segundo texto da primeira trilogia. Reprodução autorizada pelo autor.]

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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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